Postado em 07/03/2006
Captura descontrolada ameaça espécies populares como sardinha e corvina
ALBERTO MAWAKDIYE
Arte PB
Pelo visto, não é só a floresta Amazônica que vem sendo devastada pela exploração econômica sem critérios, que já fez com que perdesse o equivalente a 20% de sua cobertura vegetal. De modo bem menos visível – mas nem por isso menos danoso –, o oceano brasileiro parece estar seguindo o mesmo caminho. Segundo um levantamento realizado por diversas universidades brasileiras e coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente – o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), que, apesar de concluído em 2004, só foi entregue oficialmente à ministra da pasta, Marina Silva, em setembro do ano passado –, nada menos do que 80% das principais espécies marinhas exploradas comercialmente na costa brasileira estão no limite de sua capacidade de recuperação.
Ou seja: se algo não for feito para disciplinar a pesca dessas espécies – das quais as mais ameaçadas são peixes populares, como a corvina, a sardinha, a pescada, a tainha, o badejo e o cação, além de alguns tipos de camarão, lagosta e caranguejo –, logo os brasileiros precisarão importá-los, se quiserem tê-los à mesa. De acordo com o estudo, já chegam a 24 as espécies de peixes marinhos e a 79 as de invertebrados, como o guaiamum e a estrela-do-mar, sob risco em decorrência da sobreexploração – neste último caso, devido principalmente ao impacto provocado pelo excesso de capturas, que acaba afetando a cadeia alimentar.
"A situação, de fato, é preocupante", afirma o pesquisador Antonio Olinto Ávila da Silva, do Instituto de Pesca do Estado de São Paulo, órgão ligado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento paulista. "O Brasil chegava a produzir cerca de 130 mil toneladas de sardinha em meados dos anos 1980, por exemplo. Hoje, devido à pesca indiscriminada, não alcança 25 mil toneladas por ano."
O pior é que essa superexploração do pescado, que começou nos anos 1970 e veio crescendo dramaticamente de duas décadas para cá, nem mesmo conseguiu dar ao Brasil papel de destaque nessa área. Apesar de ter dobrado de tamanho desde meados da década de 1990, a produção brasileira ainda mal ultrapassa 1 milhão de toneladas anuais, somando as modalidades artesanal e industrial.
O volume coloca o país na modesta 27ª posição no ranking mundial, atrás de concorrentes sul-americanos como Peru, Chile e Argentina e distante de gigantes do setor, como Japão, Estados Unidos e os países do norte da Europa. A pesca responde por menos de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. O consumo também está abaixo da média mundial. O brasileiro consome por ano não mais do que 7 quilos de peixe, quando a média mundial é de 15 quilos e o mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 12 quilos por pessoa.
Ambição
São várias as razões que levaram o setor pesqueiro do país a essa situação no mínimo extravagante – embora dê mostras de querer crescer, tem de conviver com uma cada vez mais palpável escassez de peixes num mar de dimensões realmente oceânicas. Todas elas têm a ver com uma ambição comercial algo desmedida, tanto dos pescadores artesanais como dos empresariais, acrescida da falta de cuidados e sustentada por uma visão estratégica que se mostraria tragicamente equivocada: a de que, por causa do tamanho da costa brasileira, a quantidade de peixes seria ilimitada.
Hoje está bastante claro que esse estoque não era infinito, mas, é preciso reconhecer, trata-se de um erro de certa forma desculpável – mesmo porque, até a conclusão do Programa Revizee (que começou em 1994), um levantamento científico sobre a dimensão dos recursos pesqueiros brasileiros – assim como seu mapeamento – jamais tinha sido feito. E, afinal, o Brasil dispõe de 8,6 mil quilômetros de costa e tem, há décadas, uma área marítima para atividades de pesca de 3,5 milhões de quilômetros quadrados, pouco menos da metade da própria área terrestre do país, que é de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
É uma das maiores áreas pesqueiras do planeta, que ainda por cima se tornou economicamente exclusiva do Brasil quando o país aderiu, com outros 118 Estados, à Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, na década de 1980, encerrando um longo litígio geopolítico com as potências pesqueiras que operaram livremente na costa brasileira até a virada dos anos 1960 para os 70, quando o regime militar de então estendeu a faixa de mar territorial de 12 milhas para 200 milhas marítimas (equivalentes a 350 quilômetros). Essas potências nunca esconderam o desagrado com a decisão brasileira e, na verdade, jamais a respeitaram muito.
Com a entrada na convenção, o Brasil renunciou a essa imensa faixa territorial, voltando às antigas 12 milhas. Como compensação, toda a área incluída desde a linha de 12 milhas até o limite de 200 milhas foi transformada em uma zona econômica exclusiva (ZEE), ou seja, apenas o Brasil tem o direito de explorá-la comercialmente – além da pesca, na extração de petróleo e gás, por exemplo. Os outros países podem usufruir somente do direito de navegação e sobrevôo, além da liberdade de instalação de cabos e dutos submarinos. Na época do controle geopolítico das 200 milhas, havia necessidade de autorização do Brasil para que estrangeiros realizassem essas atividades. De qualquer forma, barcos de outros países podiam pescar na costa brasileira, desde que contratados por firmas nacionais, no processo conhecido como "arrendamento". O caminho do país para se tornar também uma potência pesqueira parecia livre – um sonho que hoje dá a impressão de ter se desvanecido no horizonte.
"O problema é que o Brasil não soube como explorar seus recursos marinhos com o necessário planejamento, ou com um mínimo de parcimônia", diz a economista Ana Luisa de Souza Soares, pesquisadora do Grupo de Estudos Pesqueiros da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), de Santa Catarina. "Como não havia uma política específica para o setor, as empresas e os pescadores autônomos acabaram trabalhando em áreas pesqueiras já conhecidas, quase todas perto da costa e muito próximas umas das outras. O resultado foi uma severa redução dos estoques."
Na falta dessa política, segundo Ana Luisa, o governo compensou o setor, principalmente sob os auspícios da extinta Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe), com uma série de medidas de fundo econômico e logístico que estimularam um tipo de exploração mais propriamente extensiva (da qual a modalidade "arrastão" é quase um símbolo) do que tecnológica e comercialmente avançada. Assim, entre as décadas de 1960 e 80, o governo concedeu às empresas e mesmo a particulares generosos incentivos fiscais, facilitando ainda o crédito para a compra de barcos e equipamentos de pesca, por exemplo. Foram criados também centros de processamento do pescado em vários pontos do país.
O setor rapidamente entrou em uma espiral de desenvolvimento: nada menos do que 228 mil toneladas de sardinhas foram capturadas em 1973, um recorde que permanece até hoje e certamente jamais será superado. A própria cadeia produtiva se fortaleceu. A frota pesqueira multiplicou-se, até atingir as atuais 30 mil embarcações, divididas entre a zona costeira e a costa oceânica – embora 90% delas sejam artesanais ou tecnologicamente antiquadas. Hoje, a atividade envolve direta ou indiretamente cerca de 4 milhões de pessoas, entre pescadores autônomos e empregados das cerca de 300 empresas relacionadas à captura ou ao processamento do pescado, e movimenta pouco mais de R$ 2 bilhões por ano. O único senão: o declínio crescente da quantidade de peixes, que ameaça comprometer a própria existência do setor pesqueiro nacional, ou pelo menos de boa parte dele.
"O setor também nunca levou em conta as condições oceanográficas do litoral brasileiro", critica Carmen Lúcia Rossi-Wongtschowski, pesquisadora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e uma das coordenadoras do Programa Revizee. "O país tem um mar composto de águas quentes, com poucos nutrientes, e bastante pobres na área que vai do Piauí, no nordeste, até o Espírito Santo, no sudeste. É um mar que não propicia a existência de muitos peixes."
De acordo com ela, os hábitats mais favoráveis estariam no sul do país – que sofre a influência da corrente marítima das Malvinas, com suas águas frias e onde, de fato, vem se desenvolvendo boa parte da pesca marítima brasileira atualmente, com destaque para Santa Catarina – e na região norte, onde o rio Amazonas despeja no oceano Atlântico águas altamente ricas em nutrientes.
Reação
Obviamente, o governo não está assistindo impassível à já anunciada agonia do setor pesqueiro do país. A Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (Seap), órgão ligado diretamente à presidência da República, participou ativamente do Programa Revizee e já adotou, inclusive, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, algumas medidas com base em levantamentos do programa, como o estabelecimento de critérios técnicos e geográficos para a pesca do raro e valioso peixe-sapo e de outros animais marinhos como o polvo, o caranguejo-real e o caranguejo-vermelho, todos também de alto valor comercial, especialmente no mercado externo.
A secretaria também pretende "empurrar" a pesca brasileira mais para o alto-mar, já que até hoje, principalmente pela precariedade naval e tecnológica dos barcos, boa parte da pesca é feita próximo da costa. O governo já tem um programa, batizado de Profrota, destinado a financiar a compra de barcos modernos de pesca por empresas ou mesmo particulares interessados. "Não é que o mar brasileiro não tenha mais peixe", explica Alexandre Lantelme Kirovsky, coordenador do Programa Revizee dentro da Seap. "Há ainda enormes reservas, e de animais muito valorizados, no alto-mar. Precisamos apenas nos equipar para buscá-los, o que hoje só é possível com barcos arrendados."
Iniciativas como proporcionar maior instrução técnica aos pescadores artesanais – que respondem pela metade da produção pesqueira brasileira – também estão nos planos do órgão, que pretende disseminar entre eles tecnologias mais modernas de captura e de armazenamento (nada mais comum do que barcos pesqueiros artesanais desprovidos de refrigerador). Outras medidas de fundo mais estrutural também já foram tomadas pela Seap, como a implantação de fábricas de gelo perto de centros de pesca, a ampliação de terminais pesqueiros e a adoção de um sistema de subsídios ao óleo diesel. A secretaria também está desenvolvendo quase meia centena de projetos de assistência técnica, tudo isso a um custo superior a R$ 100 milhões, verba proveniente do orçamento da União.
A Seap está ainda estimulando a criação de novas linhas de financiamento para o setor e vê com bons olhos a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já aprovada pelo Congresso Nacional, de tornar mais dinâmico o sistema de arrendamento de barcos estrangeiros, permitindo que alguns deles naveguem com bandeira brasileira, após registro temporário em solo nacional. Assim, essas embarcações passariam a ser legalmente brasileiras, e as cotas de pesca, quando existissem (como no caso do atum), não poderiam ser atribuídas a outro país.
Tida como mais importante do que todas essas medidas, porém, é a intenção da Seap de aprofundar alguns aspectos do Programa Revizee, principalmente com vistas a estabelecer um adequado zoneamento geográfico e temporal da pesca oceânica no Brasil – considerada essencial para estancar a sangria de peixes na costa do país e diversificar a produção, preservando as espécies mais ameaçadas. Esse é o objetivo do Programa de Avaliação do Potencial Sustentável e Monitoramento dos Recursos Vivos Marinhos – ou simplesmente Programa Revimar –, que deve começar a ser tirado do papel ainda neste primeiro semestre, contando com a participação de uma parte dos quase 300 pesquisadores que desenvolveram o programa-matriz.
"Esse disciplinamento é essencial. O Brasil tem de compatibilizar sua atividade pesqueira com a disponibilidade e o futuro dos estoques", explica o pesquisador Agnaldo Martins, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e que também foi um dos coordenadores do Programa Revizee. "Hoje, onde a pesca comercial atua, a exploração está no limite da sustentabilidade. Ou seja, se aumentar o número de barcos ou de pescadores, ou a duração das viagens, os recursos poderão entrar em colapso."
Fauna de água doce também corre risco
As espécies marinhas não são as únicas que estão ameaçadas no Brasil. De acordo com outro estudo encaminhado ao Ministério do Meio Ambiente, a situação dos peixes de rios e lagos não é muito diferente. Nada menos do que 135 espécies de água doce já foram igualmente prejudicadas pela pesca excessiva e sofreram drástica redução de suas populações, como o pirarucu e o lambari.
A situação desses peixes é agravada por fatores ambientais, que por enquanto não afetam tanto o oceano brasileiro. Dentre as ameaças, as mais sérias são a poluição, o desmatamento das margens dos rios e a destruição dos mangues.
"Na verdade, boa parte da fauna aquática brasileira, seja marinha seja de água doce, está sob algum tipo de risco", resume André Martins Vaz dos Santos, professor da Universidade Santa Cecília, de Santos (SP), e também pesquisador do Instituto Oceanográfico da USP. "Ambas necessitariam de um trabalho mais consistente em termos de preservação e exploração comercial."
A ironia é que a situação não melhora muito quando as espécies são cultivadas em cativeiro. A afluente criação de camarão em viveiros (carcinicultura) em vários estados do nordeste do país – especialmente no Rio Grande do Norte – está, por exemplo, prejudicando os pescadores autônomos da região. Alguns proprietários, além de monopolizarem o cultivo, estão dificultando para os pescadores artesanais a captura não só do camarão, mas também de outros peixes.
Esses proprietários degradam os mangues com material orgânico, cuja utilização polui as águas dos rios e mata os peixes. Tem havido também influência no fluxo das marés, extinção de áreas de mariscagem e até mesmo a contaminação da água destinada ao consumo humano.
Diga-se que as ameaças às espécies aquáticas não se restringem ao Brasil. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) calcula que de 9% a 10% dos estoques pesqueiros mundiais já entraram em colapso, e entre 15% e 18% encontram-se sobreexplorados. Uma porcentagem entre 47% e 50% está sob exploração plena, e não existe qualquer possibilidade de ampliação de captura, nesse caso, sem o risco de extinção.
Presença estrangeira sempre foi comum
O emprego de barcos de pesca estrangeiros no Brasil já é antigo, remonta à década de 1950, quando embarcações principalmente japonesas capturavam atum em águas profundas, sob encomenda de empresas brasileiras. Nos anos 1990, o total de barcos pesqueiros arrendados chegou a quase 150, o maior número já registrado no país. Hoje, eles são cerca de 60, de diversas procedências, mas ainda com predominância asiática.
Naturalmente, o virtual desinteresse do Brasil em pescar por si mesmo em águas profundas – já que nunca foi bem equipado para tanto – abria espaço a alguma pirataria, depois que o mar territorial foi ampliado para 200 milhas, primeiro em termos geopolíticos, nos anos 1970, e depois econômicos, na década seguinte. A ação dos piratas foi sempre facilitada pela dificuldade encontrada pela mal equipada marinha de guerra brasileira em vigiar uma área oceânica tão grande.
Descobriu-se recentemente que barcos japoneses não autorizados – verdadeiros navios-fábrica – vinham às águas brasileiras capturar espécies valiosíssimas, que o Brasil nem mesmo desconfiava habitarem a região, como o calamar, um molusco de águas geladas vendido como iguaria, ou o caranguejo de águas profundas, que é comercializado nos mercados de Tóquio a mais de R$ 60 o quilo.
"O Brasil tem o direito de apreender esses barcos e levar os proprietários aos tribunais internacionais", explica o advogado Welber Barral, coordenador do Instituto de Relações Internacionais (IRI), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). "Mas o fato é que poucas vezes lançou mão dessa medida, ao contrário de países como o Uruguai, onde essa prática é comum, inclusive contra navios brasileiros."
De qualquer forma, Barral lembra que o principal argumento que permitiu ao governo militar obter o reconhecimento internacional para o mar territorial de 200 milhas, na virada dos anos 1960 para os 70, foi um litígio de pesca.
A chamada "Guerra da Lagosta", travada entre Brasil e França em águas nordestinas na década de 1960, resultou da presença constante de navios franceses em águas próximas da costa brasileira. Embora a área estivesse, oficialmente, localizada além dos limites do mar territorial, o Brasil defendia que o crustáceo, como espécie predominantemente rasteira e não nadadora, tinha seu hábitat na plataforma continental.
A França insistia que capturava a lagosta quando ela estava longe da zona costeira. Navios de guerra brasileiros chegaram a ser enviados ao litoral do Rio Grande do Norte. A decisão internacional favorável ao Brasil, nesse caso, ajudou o país a estender seu mar territorial para 200 milhas, uma medida que seria depois cancelada com a transformação da área em zona econômica exclusiva (ZEE), sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 1980.
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