Postado em 01/04/1999
Adequar-se ao espaço arquitetônico e desvendar as características do lugar através de diversas linguagens são as propostas de alguns eventos artísticos singulares
Quando o SESC Pompéia teve suas portas abertas, em 1982, ocorria no cenário cultural brasileiro uma silenciosa revolução. E que teria reflexos não apenas no comportamento, mas operaria também modificações na visão das pessoas sobre a relação entre espaço e atividade artística. Dali para a frente, a construção idealizada pela arquiteta Lina Bo Bardi, que "nasceu italiana e morreu brasileira", iria se tornar um referencial em todo o país se o assunto fosse meio urbano, reciclagem de materiais e interferência em geografias degeneradas da cidade.
Pela primeira vez, uma antiga fábrica (de geladeiras) dava lugar a um centro de lazer. Era algo inédito em São Paulo e no Brasil. De outro lado, jamais se fizera uma intervenção urbana a partir da cultura e do esporte com tanto radicalismo. Num bairro, Pompéia, de tradição fabril e operária, o SESC erguia seu mais arrojado projeto arquitetônico para abrigar um espaço dedicado ao lazer. A partir das antigas estruturas, com tijolos aparentes, com os canos à vista do público, mantendo-se os altos pés direitos, além de galpões abertos, sem interrupções, cujas revelações foram mantidas pelo projeto, surgia o SESC Pompéia, mostrando a possibilidade de unir cultura, esportes e arquitetura num mesmo palco, preservando-se ainda a história e o ambiente dessa saga industrial. "Atualmente, a arquitetura da unidade é consagrada pelo reconhecimento nacional e internacional através de prêmios e citações que a obra já recebeu. Serve como referência constante para estudantes e profissionais da área que, habitualmente, visitam as instalações", explica Cristina Madi, gerente-adjunta da unidade.
Num espaço singular, Lina Bo Bardi conseguiu confrontar o moderno e o antigo, o lugar de trabalho com o lazer. Para ela, o desenho arquitetônico apresentava "espaços amplos e abertos que permitem um bom aproveitamento lúdico". Apesar dos dezoito anos que se passaram desde a transformação da fábrica em moderno centro de lazer, as idéias arquitetônicas de Lina continuam vivas em cada canto e em cada evento do SESC Pompéia.
Tijolos lúdicos
Um exemplo que comprova a teoria de Lina é o projeto Palco Aberto, que, por meio de intervenções artísticas, transforma a obra da arquiteta em cenário para manifestações culturais. O princípio é o de planejar as apresentações seguindo a orientação arquitetônica do espaço.
A primeira edição do projeto aconteceu em 1997 e as intervenções resumiam-se a espetáculos de dança. Cada grupo escolhia a melhor maneira de adequar o seu trabalho ao desenho da unidade e montava sua coreografia. Durante as tardes dos finais de semana, as pessoas podiam desfrutar de um bom programa sem necessariamente terem se preparado para ele. Usava-se do inesperado, do elemento surpresa. Ou seja, bastava estar no SESC Pompéia e, de repente, presenciava-se um espetáculo de dança. Fora do palco tradicional, sob as estruturas inusuais do Pompéia.
Neste ano, o Palco Aberto entra na sua terceira temporada. O projeto continua privilegiando intervenções artísticas que se adequam aos espaços da unidade, porém está mais diversificado: "Antes, o Palco Aberto era mais voltado para a dança. Agora, ele recebe outras linguagens corporais; assim, podemos diversificá-lo e atender a um maior número de preferências", explica Maria Aparecida Ceciliano, técnica do SESC Pompéia. "Mais do que linguagem corporal, os trabalhos irão abordar diferentes manifestações artísticas, como a música, a dança, o teatro, etc., revelando realmente um palco aberto", completa.
Além de estar mais eclético, o Palco Aberto de 1999 foi inaugurado com outra novidade: durante todo o mês de março, os quatro grupos que se revezaram nas intervenções nos finais de semana homenagearam a arquitetura do Pompéia e seus ideais. "A intenção do projeto deste ano é fazer o público aumentar a percepção sobre o espaço da unidade através dos trabalhos artísticos", continua Cristina Madi. Com esse objetivo, as companhias inspiraram suas performances corporais nos sonhos e idéias de Lina de transformar a antiga fábrica em um dinâmico centro cultural. Dentro deste conceito, cada final de semana do mês de março contou com grupos diversos que traduziram o desenho da arquitetura por meio da dança, do teatro e do circo.
A primeira intervenção foi apresentada por artistas que se reuniram especialmente para esse trabalho. O espetáculo Asas da Fábrica teve como ponto de partida toda a atmosfera que envolvia a antiga fábrica de geladeiras. "Li um texto da Lina Bo Bardi em que ela descrevia o que acontecia nesse lugar durante os finais de semana, quando os trabalhadores levavam suas famílias para passearem nos galpões. Quis resgatar essas cenas populares e fiz alusão a essas pessoas comuns que iam se divertir no Pompéia", explica Lara Pinheiro Dau, coordenadora da apresentação. Todos os detalhes do Asas da Fábrica são uma metáfora das idéias de Lina e da arquitetura do centro de lazer.
A coreografia, os adereços e as fantasias fizeram homenagem à concepção arquitetônica do local. "Lina criou um lugar onde convivem crianças, adultos e idosos. E o mais impressionante é que não destruiu as coisas importantes que havia lá. Vemos as pessoas muito à vontade no SESC Pompéia", diz a coreógrafa.
Detalhes como o laguinho da área de convivência da unidade que, na verdade, faz uma citação ao rio São Francisco, e a lareira que se localiza logo acima, simbolizando os elementos fogo e água, foram utilizados como parte da performance.
Na segunda rodada de espetáculos foi a vez do Linhas Aéreas erguer sua concepção. Para isso, o grupo combinou a acrobacia do circo com a dança contemporânea. Numa referência à vida de Lina Bo Bardi, elaborou-se uma apresentação itinerante representando as principais passagens da biografia da arquiteta. O público foi conduzido por uma viagem que o levou desde a Itália até o Nordeste brasileiro, com conexões no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Adereços e músicas remetiam a uma característica específica de cada localidade. Dessa maneira, a Itália esteve representada pela canção Bella Ciao; o Rio surgiu nas lembranças dos sambas de morro; o Nordeste apareceu emoldurado em uma coreografia aérea, realizada numa rede pendurada acima do riozinho da área de convivência; já São Paulo caracterizou-se ao som de Adoniran Barbosa.
Por meio de um espetáculo interativo, o Linhas Aéreas procurou representar a maneira como Bo Bardi concebia a arquitetura, inspirando-se na história do povo brasileiro.
O Núcleo Omstrab, que se apresentou no terceiro final de semana, optou por retratar a história dos antigos trabalhadores da região que mais tarde seria o bairro Pompéia. Sob a direção de Fernando Lee, o grupo retornou ao século 19 para resgatar o trabalho realizado na antiga fazenda de plantação de banana que ali existia, muito antes do nascimento da fábrica de geladeiras. "Através das nossas montagens procuramos dançar a nova realidade brasileira, ou seja, o homem urbanizado no meio dessa salada cultural formada por tradições indígenas, africanas e européias", explica o diretor.
Depois de uma intensa pesquisa, o núcleo criou o espetáculo Fábrica. A linguagem da dança deu o tom para a apresentação que trouxe trilha sonora composta especialmente para a coreografia. A área de convivência foi transformada em um grande ambiente sonoro, preenchido com o som dos materiais e das estruturas do próprio centro de lazer.
Encerrando o Palco Aberto, a Cia. Nova Dança, atualmente uma das principais referências do pensamento renovador da dança no Brasil, apresentou o espetáculo Águas de Março. Recorrendo à improvisação, o grupo percorreu o espaço com delicada dinâmica e investigou cada canto da unidade.
O mezanino, o riacho, as paredes e o chão foram minuciosamente desvendados pelo movimento improvisado dos bailarinos. "Trabalhamos conforme a atmosfera do local e o SESC Pompéia é pura arte. Lembro-me da inauguração desse lugar. Foi um choque! Nessa cidade que derruba tudo sem discriminação, Lina Bo Bardi salientou somente a beleza da ex-fábrica. Aqui vemos as pessoas usufruírem do espaço de uma maneira aconchegante", diz Cristiane Quito, diretora do grupo.
Tradição x Contemporaneidade
Em outro bairro da cidade, ao descer a rua Rodrigues Alves, é possível avistar o imenso edifício de concreto que cresce colorido, imponente, entre as construções. Com as linhas arquitetônicas tão badaladas quanto às do SESC Pompéia, o prédio do SESC Vila Mariana, projetado pelo escritório Bonilha Associados, coloca seu desenho a serviço da arte. Ali, em meio a tanta modernidade e arrojo, ainda resistem elementos que recobram à Antigüidade grega. Essa afirmação pode soar estranha. Mas não é bem assim.
Na longínqua civilização helênica, que, segundo historiadores, originou o modus vivendi do que hoje se conhece por Ocidente, os espetáculos aconteciam em anfiteatros capazes de propagar o som de maneira natural, bulindo a audição de um grande público.
Sem auxílio de nenhum apetrecho eletrônico, os artistas contavam unicamente com a acústica do local para se fazerem ouvir. De lá para cá, mais de dois mil anos se passaram. Porém, em algumas ocasiões, a atmosfera clássica dos gregos ainda persiste. Como? É só conhecer o projeto Vórtice Acústico.
Nas apresentações, músicos lançam mão das características sonoras da sala de leitura para tocar.
Durante o programa, as performances são organizadas mensalmente e divididas por temas. No mês de abril, o jazz dará o tom na interpretação de Rodrigo Ursaia, Ubaldo Versolato e o quinteto de saxofone Sax Basilis. Além de boa música, o evento será enriquecido por comentários de convidados. Num espaço apropriado, os artistas não necessitam de amplificadores ou de qualquer outra parafernália, o que facilita o acesso do som ao público, ao mesmo tempo em que propicia aos freqüentadores mais um bom programa nos finais de semana.