Postado em 01/09/2005
No Largo de São Francisco, em São Paulo, um antigo convento, transformado em academia de direito, mudou a vida do país
HERBERT CARVALHO
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"Quem entra na São Francisco/ tem mais amor à verdade/ pois leva sempre no peito/ a chama da liberdade." Essa trova acadêmica, cantada por diferentes gerações de estudantes, explica por que a maioria dos bacharéis egressos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp) não aceita a designação de ex-aluno, apropriada para qualquer outra escola, menos esta. Por idêntica razão eles constituíram, em 1931, a Associação dos Antigos Alunos (AAA): "Mesmo graduados legitimamente, jamais deixaremos de estar ligados e de seguir as linhas principais do pensamento da Academia, na eterna condição de discípulos atentos e dedicados", rezava o manifesto inaugural da entidade, que neste ano comemora três quartos de século de existência.
"O orgulho de ser da faculdade supera as paixões da política estudantil e da luta ideológica. De esquerda ou direita, o acadêmico da São Francisco leva para sempre desta escola um compromisso com a democracia e com a construção de um país melhor", explica o atual presidente da AAA, José Carlos Madia de Souza, de 66 anos, formado na turma de 1964. "O diploma é o nosso principal ativo e o papel da entidade é defendê-lo", diz, revelando na linguagem a intimidade com o mercado financeiro de quem se aposentou como vice-presidente do Unibanco.
"Nas Arcadas respira-se um ar diferente. Até hoje me sinto um estudante. Aliás, para mim, não há título maior que o de estudante de direito do Largo de São Francisco", acrescenta Moacyr Vaz Guimarães, de 81 anos, membro do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio SP) e ex-presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, entre 1974 e 1983. Protagonista em sua juventude, durante o Estado Novo (1937-1945), dos acontecimentos registrados por Foster Dulles no livro A Faculdade de Direito de São Paulo e a Resistência Anti-Vargas, ele conta: "Cheguei a ser condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional e só não fui preso porque a anistia chegou antes".
Esse orgulho de ter passado pela "velha e sempre nova Academia" marcou todas as gerações de estudantes ao longo dos quase 180 anos de existência da escola, como assinalam estes versos: "Pode bem ser que o livro não abrisse/ que não votasse amor à sábia casta/ mas tinha o nome inscrito entre os alunos/ da Escola de São Paulo, e é quanto basta". Fagundes Varela, o autor, compõe, ao lado de Álvares de Azevedo e Castro Alves, a tríade dos poetas que lá estudaram, não concluíram o curso, morreram jovens e deixaram, além dos nomes gravados em mármore no hall de entrada do edifício, um legado de lirismo que caracterizaria as Arcadas, ao lado de outro atributo: o de berço das idéias liberais no Brasil.
A seguir, Problemas Brasileiros conta um pouco dessa trajetória que marcou a cidade de São Paulo, confunde-se com a história do Brasil, passa por nove presidentes da República, entre outros nomes da política e das artes, e revela o papel desempenhado pelo misterioso alemão enterrado num dos pátios internos da escola na constituição da Bucha, a sociedade secreta de estudantes que chegou a comandar os destinos da nação e deu origem à AAA.
O convento vira escola
Os antecedentes desta história remontam à Idade Média e à cidade italiana de Bolonha, onde, no ano de 1088, nasceu a primeira escola de direito. Em 1290, o rei de Portugal, dom Diniz, funda aquela que viria a ser a Universidade de Coimbra, única opção de ensino superior para os brasileiros no período colonial, pois, ao contrário do que ocorreu na América espanhola – que viu surgir a Universidade do México em 1551 e a do Peru em 1613 –, o colonizador português não permitiu a expansão do conhecimento, ainda que politicamente controlado pela metrópole.
Por essa razão, logo após a proclamação da Independência, entrou com força na pauta da Assembléia Constituinte, por iniciativa do visconde de São Leopoldo (ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império), o projeto de criação de uma universidade brasileira. Esta só viria quase um século depois – no Rio de Janeiro, em 1920 –, mas, atendendo à necessidade de formação de quadros para administrar o aparelho do Estado e dirigir a jovem nação, dom Pedro I assina, em 11 de agosto de 1827, a lei que estabelece a criação "de dois cursos de ciências jurídicas e sociais, um na cidade de São Paulo e outro na de Olinda".
Uma escolha geopolítica, para contemplar as províncias do norte-nordeste, no caso da escola de Olinda – transferida para o Recife em 1854 –, e do centro-sul. Mas a opção paulistana foi alvo de críticas: com apenas 10 mil habitantes que falavam português com forte sotaque indígena, São Paulo ainda era quase o mesmo arraial de sertanistas de sua fundação – não passava da décima maior cidade brasileira –, de difícil acesso e distante dos centros litorâneos de poder do Império.
Por isso o primeiro diretor da faculdade, tenente-brigadeiro – e bacharel formado em Coimbra – José Arouche de Toledo Rendon (o mesmo cuja plantação de chá daria origem ao nome do famoso viaduto e que foi homenageado no atual Largo do Arouche), teve de se restringir, quando recebeu a incumbência de encontrar um local para abrigar a escola, aos três edifícios sólidos que ocupavam os vértices do triângulo a que então se resumia a cidade: os conventos do Carmo, de São Bento e de São Francisco.
Este último, de dois andares em estilo barroco, construído entre 1643 e 1647, era o único amplo o suficiente "para nele se estabelecer o curso jurídico sem demolir nada e sem vexame dos frades", conforme explicou Rendon em carta ao visconde de São Leopoldo. Além disso, contava com um acervo de 5 mil livros, que foram incorporados ao patrimônio da Academia e constituíram o início do que hoje é sua esplêndida biblioteca.
Dois foram os acontecimentos políticos que marcaram os primeiros anos da vida acadêmica: o assassinato de Líbero Badaró e a abdicação de dom Pedro I. O italiano Giovanni Battista Badaró – a quem os ardores liberais e republicanos impeliram para longe do país natal e levaram a acrescentar ao próprio nome o apelido de Líbero – dava aulas de geometria no Curso Anexo, que preparava os candidatos a ingressar na faculdade, já que destes, além de 15 anos completos, se exigiam alguns conhecimentos básicos – como no vestibular de hoje.
Fundador do jornal "Observador Constitucional", Badaró atacava duramente os absolutistas, razão pela qual o atentado que sofreu, em 20 de novembro de 1830, nunca devidamente esclarecido, foi entendido como crime político, sobretudo pelos alunos, que estimavam seu convívio. Alguns deles estiveram à sua cabeceira durante as quase 24 horas em que agonizou, quando teria dito a frase que se transformou em lenda: "Morre um liberal, mas não morre a liberdade". Poucos meses depois, em 7 de abril de 1831, Pedro I abdicava, para regozijo dos estudantes. A Rua Nova de São José, em que morava o jornalista e onde ocorreu a emboscada que o vitimou, passou a ser a atual Líbero Badaró, no centro da capital paulista, adjacente ao Largo de São Francisco.
Nasce a Bucha
O sucessor de Badaró na difusão das idéias liberais entre os estudantes, e por meio deles em todo o Brasil, foi Johan Julius Gottfried Ludwig Frank, ou simplesmente Júlio Frank, o primeiro alemão de sólida formação cultural a desembarcar no Brasil. Em 1828, aos 20 anos de idade, aporta no Rio de Janeiro e passa uma temporada na Fortaleza de Lage, por ter sido denunciado como passageiro clandestino.
Sua vida pregressa na Alemanha mantém-se nebulosa até hoje: em algumas versões, a vinda ao Brasil teria causas pessoais, como dívidas e envolvimento em duelos, ao passo que em outras as razões do exílio teriam cunho político. O certo é que do Rio de Janeiro ele foi para Sorocaba, onde obteve colocação na Fábrica de Ferro São João de Ipanema, dirigida por alemães da família Varnhagen. Acabou demitido por sua proximidade com os negros escravos e passou a trabalhar numa venda como caixeiro, onde também dava aulas para estudantes que pretendiam ingressar na Academia.
Por seus vastos conhecimentos gerais e domínio de idiomas como latim, francês, italiano e inglês, foi indicado, em 1833, para dar aulas de história e geografia no "curral dos bichos" – como os alunos chamavam o Curso Anexo – por Rafael Tobias de Aguiar, um liberal que havia assumido a presidência da Província de São Paulo após a abdicação do imperador.
Só que Frank acabou transmitindo aos alunos muito mais do que as matérias curriculares: ensinou-os a se organizarem nos moldes das sociedades de jovens que até hoje existem e são muito difundidas na Alemanha, as Burschenschaft, cuja principal função é prover assistência material aos estudantes necessitados.
No Brasil, entretanto, a Bucha – como seu nome logo seria aportuguesado –, fundada em São Paulo ao mesmo tempo que as primeiras lojas maçônicas e com os mesmos ideais (igualdade, liberdade e fraternidade), teria um alcance político muito maior, que desde o início foi delineado pelo próprio Júlio Frank: "Os que estiverem na Academia continuarão a obra de assistência; os que terminarem o curso terão nela uma sociedade de ex-alunos, tão útil, e se auxiliarão através do tempo. E, ainda mais tarde, essa sociedade poderá governar o país". Palavras proféticas: embora seus membros nunca tenham excedido 10% do corpo discente, constituíam a elite intelectual e moral da escola.
Da Bucha saíram quatro presidentes da República – Prudente de Moraes, Campos Salles, Affonso Penna e Rodrigues Alves –, além de vultos pátrios como Ruy Barbosa e o barão do Rio Branco. Liberal exaltada e abolicionista no Império, a Bucha atinge o auge de sua influência na República Velha, para mergulhar na clandestinidade absoluta após a Revolução de 1930. Mas, ainda no final dessa década, diante de uma lista de bucheiros mostrada pelo interventor Adhemar de Barros, Getúlio Vargas reconhecia: "Não se pode governar o Brasil sem essa gente". Carlos Lacerda, num depoimento na década de 1970, acrescentou: "É impossível escrever a história da República sem escrever a história da Bucha".
Voltando a Júlio Frank, o criador da Bucha morreu de pneumonia – contraída após um banho no rio Anhangabaú – em 1841, aos 32 anos, deixando a seus alunos um dilema: onde enterrá-lo? Nos cemitérios católicos, únicos então existentes, não seria possível, pois ele era protestante. Consta que o bispo da cidade tentou evitar o sepultamento até mesmo no solo das Arcadas, argumentando que este continha "despojos de homens tementes a Deus e cujos ossos se sentiriam mal ao pé do herege". Mas o então diretor José Maria de Avelar Brotero respaldou a decisão dos estudantes de sepultá-lo no pátio da escola, onde seu túmulo se encontra até hoje, encimado por um obelisco de quatro metros e ladeado por corujas, que representam a sabedoria e a filosofia.
Primeiros cem anos
Durante quatro décadas, de 1830 a 1870, a Academia de Direito transformou a cidade de São Paulo na "Heidelberg brasileira", como então se dizia, em referência à principal cidade universitária alemã da época. O historiador Ernani Silva Bruno, também um antigo aluno da São Francisco, explica que nesse período São Paulo foi sobretudo um burgo de estudantes: "A Academia arrancou a capital da província de seu sono colonial, e a presença dos estudantes alterou-lhe a estrutura e os costumes tradicionais, os hotéis, as casas de diversão, o teatro e as atividades intelectuais".
Como não havia habitações disponíveis para os estudantes vindos do interior da província e de diversas partes do país, eles se agrupavam em casas alugadas, que passaram a chamar de repúblicas, designação já em si hostil à monarquia então vigente. Algumas delas tornaram-se famosas, como a Minarete, onde residiam, no início do século 20, Monteiro Lobato e o poeta e militante socialista Ricardo Gonçalves.
Por mais de cem anos, até a década de 1930, quando é criada a Universidade de São Paulo (USP), muitos jovens matricularam-se na Faculdade de Direito sem a menor vocação jurídica, mas sim em busca de algo que apenas os cursos hoje existentes de filosofia, letras, economia, administração e jornalismo, dentre outros, poderiam proporcionar. Isso explica por que tantos escritores, de José de Alencar a Lygia Fagundes Telles, jornalistas como Júlio de Mesquita Filho ou Mino Carta, economistas como Caio Prado Junior e Luiz Gonzaga Beluzzo, empresários e administradores de empresas, artistas e até mesmo o cineasta Nelson Pereira dos Santos, recentemente empossado como imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), levaram do Largo de São Francisco as sementes que fariam florescer as respectivas carreiras (ver, abaixo, quadro dos mais famosos antigos alunos).
No caso do jornalismo, a própria imprensa paulista e brasileira deve muito aos jornais criados pelos acadêmicos, desde o primeiro "O Amigo das Letras", em 1830, passando por vários de caráter abolicionista como o "Ça Ira!", do escritor Raul Pompéia, até "A Província de S. Paulo", ancestral do atual "Estadão", inteiramente concebido e controlado por bacharéis republicanos.
É claro que, ao mesmo tempo, os principais edificadores das instituições jurídicas também saíram das Arcadas, e hoje dão nome a ruas e praças de São Paulo, como José Antônio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente, formado na primeira turma, de 1832, ministro do Supremo Tribunal de Justiça (que se tornaria "Federal" após a proclamação da República), Joaquim de Amaral Gurgel, Teixeira de Freitas e João Mendes Júnior, todos autores de obras basilares do ensino e da prática do direito.
Em 1880, um incêndio, não controlado pela inexistência em São Paulo de um Corpo de Bombeiros, danifica parte significativa da Academia e da conjugada Igreja de São Francisco, ensejando a reforma, principalmente da fachada do edifício. A escola ganha acesso independente – até então alunos e professores entravam pela sacristia da igreja –, um relógio acima da fachada (o mesmo de hoje) e as três placas de mármore com os nomes dos jovens poetas. Essas características, ao lado do túmulo de Júlio Frank e das próprias arcadas – ou seja, o pátio interno com seus arcos originários do claustro dos frades –, foram as únicas mantidas na década de 1930, quando o antigo convento de taipa de pilão foi enfim demolido.
Em seu lugar, já cercado por arranha-céus, surgiu o atual edifício eclético de três andares, com Salão Nobre, salas da Congregação e das Becas, diversos anfiteatros e, ao longo das escadarias, vitrais que mostram cenas da história de São Paulo – reproduzindo quadros como Partida da Monção, de Almeida Júnior – e alegorias da Força e da Temperança, a partir de pinturas de Rafael. Nos anos 1990, um prédio anexo de nove andares, do outro lado da Rua Riachuelo, mas unido ao edifício principal por uma passarela, incorporou-se ao complexo educacional. Ali, entre salas onde funcionam os cursos de pós-graduação, está instalada a sede da AAA.
Território livre
No alvorecer do século 20, já conquistadas a abolição da escravatura e a república, os estudantes decidem fundar, em 11 de agosto de 1903, o Centro Acadêmico XI de Agosto, que dali em diante seria seu principal instrumento de ação política (ver texto abaixo).
Um de seus primeiros presidentes (em 1905), o bucheiro José Carlos de Macedo Soares, viria a ser também o primeiro presidente da AAA, configurando desde essa época aquilo que Madia de Souza chama de "trindade", ou seja, a própria faculdade e as entidades de antigos e de atuais alunos. E não foram apenas tradição e força política que constituíram o legado dos pioneiros, mas, também – assinalando a herança assistencialista e patrimonialista da Bucha –, ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que fizeram do XI de Agosto o centro acadêmico mais rico do país e garantiram a confortável e bem equipada sede da AAA.
Em 1930, sob a comoção do assassinato de João Pessoa e às vésperas da revolução que levaria Getúlio Vargas ao poder, os estudantes provocam a polícia com discursos e comícios. Esta investe contra a faculdade, mas é rechaçada à bala. Os esbirros voltam com reforços, mas desta vez são confrontados pelo exército, chamado pelos estudantes, com o respaldo dos professores, para proteger a propriedade da União, já que até 1934, quando é estadualizada e incorporada à USP, a Academia e seu prédio pertenceram à esfera federal. Ocorre nova batalha e outra derrota da polícia, que se retira enquanto os estudantes ocupam o Largo de São Francisco e o declaram "território livre", o que até hoje é assinalado pela Tribuna Livre ali existente e que seria palco de novos enfrentamentos contra as ditaduras do Estado Novo e militar.
Folha dobrada
Com a vitória da Revolução de 1930 se eclipsava a "República dos Bacharéis", mas estes iriam à forra contra Vargas dois anos depois, com a Revolução Constitucionalista, deflagrada a 9 de julho de 1932. A faculdade transformou-se no quartel-general do MMDC, movimento cívico-militar cujo nome foi criado a partir das iniciais de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, jovens mortos a tiros meses antes no confronto com getulistas.
Nas Arcadas formaram-se três batalhões de combatentes e foi organizada a logística para suprir os voluntários com armas, uniformes e comida. Do total de 380 mortos em menos de três meses de luta, sete eram alunos da faculdade e seus nomes estão inscritos em monumento no pátio da Academia, que além do busto de um soldado constitucionalista exibe, em homenagem aos heróis, estes versos de Tobias Barreto: "Quando se sente bater/ no peito heróica pancada/ deixa-se a folha dobrada/ enquanto se vai morrer". "Folha Dobrada" também é hoje o nome do boletim informativo da AAA.
Com a derrota dos revolucionários, são condenados ao exílio alguns dos diretores da então recém-fundada Associação dos Antigos Alunos e outros líderes do movimento, como Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal "O Estado de S. Paulo". Começa na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco um longo período de resistência, que só terminaria com a redemocratização do país, em 1945.
O professor emérito da Fadusp e associado benemérito da AAA Vicente Marotta Rangel, ex-diretor da faculdade e também membro do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio SP, resume o que foi a luta da sua geração, que ele representou como orador da turma de 1946: "Lutávamos em duas frentes, a interna, contra o Estado Novo, e a externa, contra o nazifascismo. Muitos colegas se feriram nas ruas de São Paulo, enquanto outros ofereceram a vida nos campos de batalha da Europa, como pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB)".
Já em 1964, tanto professores como alunos da faculdade se dividiram profundamente. O Centro Acadêmico XI de Agosto apóia Jango, mas é hostilizado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização de extrema-direita com fortes ramificações entre os estudantes da elite paulista. Madia de Souza diz que não apenas os estudantes, mas todo o Brasil estava cindido: "Havia um clima de insubordinação, quebra da hierarquia militar e o perigo real de o Brasil se tornar um país comunista. Eu fazia parte dos que aplaudiram a derrubada de Jango, mas esperávamos que a ruptura constitucional fosse breve".
A democracia, como se sabe, só seria restaurada mais de duas décadas depois, com a promulgação da Constituição de 1988. Apesar da adesão ao regime militar da maioria de seus professores, a Fadusp tornou-se, novamente, um foco da resistência democrática e da denúncia de torturas. Os jovens, mais de uma vez, sairiam às ruas e cobririam com a faixa preta do luto a Tribuna Livre, denunciando a censura e o cerceamento da liberdade de expressão. Mas seria um professor, Goffredo da Silva Telles Júnior, o mais querido dos alunos e também associado benemérito da AAA, quem ergueria a voz no pátio das Arcadas, para exigir, na famosa "Carta aos Brasileiros", de 1977, "o Estado de direito, já".
Para o futuro, Marotta Rangel prevê uma linha de continuidade: "A faculdade se modernizou sem perder as tradições. Mantém a qualidade do ensino pelo rigor na seleção de seus professores e contribui, por meio da pós-graduação, na formação de docentes para o Brasil inteiro. Além do aspecto didático, continuará sempre na defesa das idéias liberais, dos valores da civilização e da dignidade da pessoa humana".
Alunos célebres
Presidentes da República*: Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues Alves, Affonso Penna, Wenceslau Braz, Delfim Moreira, Arthur Bernardes, Washington Luís e Jânio Quadros.
Vultos políticos: barão do Rio Branco, Ruy Barbosa, Ulysses Guimarães, Roberto Costa de Abreu Sodré, Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto, Almino Affonso e Miguel Reale.
Poetas: Álvares de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela, Hilda Hilst, Guilherme de Almeida, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Paulo Bonfim.
Escritores: José de Alencar, Raul Pompéia, Monteiro Lobato, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Lygia Fagundes Telles.
Jornalistas: Júlio de Mesquita Filho, Otavio Frias Filho, Mino Carta, Roberto D’Ávila, Salomão Esper e José Paulo de Andrade.
Artistas: José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi, John Herbert, Renato Consorte, Vida Alves, Juca de Oliveira, Francisco Cuoco, Raul Cortez, Paulo Autran e Luciano Huck.
Cineasta: Nelson Pereira dos Santos.
* Sobe para 12 o número de ex-presidentes se considerarmos também Júlio Prestes, eleito, mas que não assumiu em razão da Revolução de 1930, José Linhares e Nereu Ramos, ambos interinos por curtos períodos.
Tradições acadêmicas
"Garçom, tire a conta da mesa/ e ponha um sorriso no rosto/ seria muita avareza/ cobrar no 11 de agosto." Essa trova, cantada em coro ao final da refeição para comunicar a temível "pendura", levou mais de uma geração de estudantes até a delegacia, onde, inevitavelmente, eram liberados por um delegado que, quando jovem, fizera a mesma coisa.
Outra tradição bem-humorada do Largo de São Francisco é a Peruada, uma passeata político-circense-carnavalesco-etílica, que se realiza pelas ruas do centro de São Paulo no mês de outubro, às vésperas da eleição da diretoria do Centro Acadêmico XI de Agosto. A manifestação surgiu como um ritual de passagem complementar ao trote, para assinalar a integração definitiva dos calouros à faculdade. Seu nome deriva do hábito rural de dar pinga aos perus, antes do sacrifício. Desde seus primórdios, no entanto, sempre trouxe uma pesada carga de ironia contra os poderosos: em 1932, o então estudante José Mindlin saiu fantasiado de Oswaldo Aranha, vestindo a camisa negra do fascismo e fazendo malabarismos com um chuchu, que simbolizava Getúlio Vargas. Por isso, a Peruada adota como lema o aforismo latino ridendo castigat mores (o riso corrige os costumes).
Entretanto, não apenas alegria, brincadeiras e engajamento político caracterizaram o XI de Agosto ao longo dos seus mais de cem anos de vida. Sua mais importante contribuição social existe desde 1919: o Departamento Jurídico, que proporciona simultaneamente atendimento gratuito à população pobre e experiência advocatícia aos futuros causídicos, sob a supervisão de professores. Sua criação foi iniciativa do então presidente do centro acadêmico, Antônio Carlos de Abreu Sodré, que também pertenceu à primeira diretoria da AAA.
Atualmente, os alunos podem atuar ainda no Juizado Especial Civil – mais conhecido como tribunal de pequenas causas –, que começou a funcionar em agosto na faculdade e foi viabilizado por uma doação feita pela antiga aluna e professora Aracy Klabin. A iniciativa prevê a instalação de um circuito fechado de TV para transmitir as audiências para as salas de aula.
Finalmente, há um prolongamento do espaço de convivência da comunidade acadêmica do outro lado do Largo de São Francisco: é o restaurante Itamarati, que apesar de pessoa jurídica é também sócio benemérito da AAA. Ali, toda última sexta-feira do mês, os alunos de todos os tempos, antigos e atuais, se encontram em animada happy hour.
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