Postado em 01/09/2005
Propriedades e vantagens do açaí vão muito além do suco na tigela
RUTH RENDEIRO
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O açaizeiro, uma palmeira encontrada em áreas alagadas ou úmidas da região amazônica, cresce em touceiras com até seis troncos que podem chegar a 30 metros de altura. Registrada pelos estudiosos como Euterpe oleracea Mart., produz cachos carregados de uma fruta minúscula de cor roxa, parecida com a jabuticaba. É o açaí, muito valorizado na região pelo seu alto valor alimentício e hoje usado em todo o país como base de bebidas energéticas.
O açaizeiro oferece aproveitamento integral. Além dos frutos, dos quais se extrai o famoso suco, chamado na Amazônia de vinho, a planta produz o palmito, também de grande importância econômica, e suas folhas servem como cobertura de casas e cabanas. A madeira é aproveitada em construções rústicas e pode ser transformada em polpa de celulose para fabricação de papel. Os caroços das frutas, tratados e tingidos, estão presentes em bijuterias artesanais, compondo colares, pulseiras, brincos e outros adereços. Mais: as fibras dos cachos vazios podem tomar a forma de chapéu, esteira ou cesta, e o próprio cacho seco é utilizado como eficiente vassoura.
Embora o açaí também seja encontrado no Amazonas, Maranhão, Amapá, Mato Grosso e Tocantins, o estado do Pará é seu maior produtor nacional, respondendo, ainda, por mais de 90% do que é consumido no país. Belém, a capital paraense, é o local que mais consome açaí no Brasil, com cerca de 3 mil pontos-de-venda onde o suco é oferecido. Diariamente são disponibilizados 440 mil litros, processados com frutos provenientes das ilhas que cercam a cidade. Às primeiras horas da manhã, as canoas atracam no cais do mercado do Ver-o-Peso – o mais tradicional e conhecido ponto turístico de Belém – e desembarcam seus paneiros (cestas artesanais), alimentando um comércio livre que não muda há dezenas de anos. Segundo dados da prefeitura de Belém, a Feira do Açaí, o principal centro de comercialização do produto, localizada no complexo Ver-o-Peso, responde por mais de 70% do produto comercializado na cidade. Em 2005 passaram por ali 31,1 mil toneladas do fruto.
Nas últimas décadas, o suco de açaí ultrapassou as fronteiras amazônicas e começou a ser apreciado também em outras regiões brasileiras, especialmente no sudeste, para onde vai em forma de polpa congelada. No Rio de Janeiro o consumo atinge cerca de 500 toneladas por mês e em São Paulo em torno de 150 toneladas. Segundo Alfredo Homma, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, não se trata de modismo. "O açaí vai ocupar um nicho de mercado no contexto nacional e internacional", afirma, comparando o sucesso da nova bebida ao de outra frutinha da Amazônia, o guaraná, lançado como refrigerante em 1907, em Manaus, e que se tornou depois uma bebida nacional.
Enquanto na Amazônia o açaí é um alimento diário, presente em qualquer refeição, no restante do país grande parte dos consumidores busca um complemento alimentar rico em vitaminas e minerais, de alto valor calórico. Ele tem 13% de proteína, acima do leite (3,5%) e até do ovo (12,49%). É também rico em potássio, cálcio, ferro e vitamina E.
Uso odontológico
Fora do Brasil, o açaí encontra consumidores com outros interesses. O produto é utilizado como fornecedor natural de antocianina, um pigmento com funções preventivas contra diversas doenças. Ele garante melhor circulação do sangue e evita o depósito de lipídios, os vilões da arteriosclerose. Entre os estrangeiros que apreciam o açaí estão norte-americanos, franceses, holandeses, sul-coreanos e japoneses. Para eles os produtores da Amazônia enviam o fruto processado como polpa ou em forma de suco misturado com guaraná ou acerola.
Além do aproveitamento como suco e do uso medicinal, o açaí já alcançou nichos que há alguns anos não seriam sequer imaginados. Embora em nível experimental, hoje o produto aparece em consultórios odontológicos, hospitais, clínicas e laboratórios de exames especializados em ressonância magnética. Uma experiência bem-sucedida vem sendo desenvolvida pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi iniciada há cinco anos, quando se observou que dentes e gengivas ficavam corados após a ingestão do açaí. Duas estudantes do curso de Odontologia da UFPA, Danielle Tupinambá Emmi e Patrícia Oliveira da Rocha, orientadas pela professora Regina Fátima Barroso e pela pesquisadora Raimunda de Fátima Ribeiro, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), levantaram a hipótese científica comprovada posteriormente: o açaí pode ser utilizado no tratamento dentário como identificador visual de placas, aquela massa microbiana que se forma sobre a superfície dos dentes e que causa cáries e problemas gengivais.
A descoberta mereceu rápido reconhecimento, destaque em congressos e até prêmios, culminando com o patenteamento, pela UFPA e pela Embrapa, de um produto denominado "composição evidenciadora de placa dental com corantes naturais". Embora animadores, os resultados não têm sido suficientes para garantir a entrada do produto no mercado, dominado por corantes sintéticos, informa Danielle.
Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, desenvolvem experimentos com o produto em exames de ressonância magnética do aparelho digestivo. A pesquisa é realizada pelos físicos Draulio Barros de Araújo e Tiago Arruda Sanchez, do Departamento de Física e Matemática. A presença de ferro e outros metais no açaí altera o campo magnético nos exames, mudando o "brilho" dos órgãos digestivos e garantindo melhor qualidade do contraste, com imagens mais conclusivas.
A ressonância magnética foi criada em 1940 por Felix Bloch e Edward Mills Purcell. O método teve rápido sucesso por não utilizar meios radiativos, como os raios X tradicionais. O problema é que o uso do contraste artificial comumente gera estímulos indesejáveis no estômago, que podem prejudicar o diagnóstico. Nesse aspecto, a vantagem do açaí é insuperável. Além de excelente contraste, tem sabor agradável e alimenta. Sem mencionar o preço: enquanto três doses do contraste tradicional custam R$ 210, a mesma quantidade de açaí não passa de R$ 6. Até o momento a contra-indicação mais evidente é o alto teor calórico, evidentemente desaconselhável a pacientes com debilidades gastrointestinais.
Há outras pesquisas em desenvolvimento, como uma iniciada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se investigam propriedades da polpa, que teria um promissor princípio ativo com possibilidades de prevenir e combater o câncer de próstata. Sem falar na capacidade de proteger a pele e retardar o envelhecimento.
Extração controlada
O uso cada vez maior do açaí chamou a atenção de outro grupo de pesquisadores, voltados para os segredos do cultivo da planta. Trata-se, dizem eles, de uma espécie alógama, ou seja, originária de cruzamentos naturais que ocorreram ao longo dos anos, resultando numa grande variedade de tipos, muito diferentes entre si. A população é abundante, mas há diversidade na produtividade dos cachos, coloração e rendimento dos frutos e época de produção. Grande parte das pesquisas é desenvolvida pela Embrapa Amazônia Oriental, com sede em Belém, considerado o centro de pesquisa com o maior acervo de conhecimento sobre a planta no Brasil. Entre os pesquisadores mais antigos está Oscar Nogueira, especialista no manejo dos açaizais nativos, que se dedica, entre outros objetivos, a repassar à população ribeirinha informações sobre as práticas corretas de cultivo. Ele sabe que 80% da produção de açaí é de origem extrativa, o que obriga naturalmente a uma exploração racional, capaz de gerar rendimento sustentável, ou seja, sem prejuízo ambiental.
Além do manejo adequado dos açaizais, a Embrapa tem procurado diversificar os locais de plantio do açaí. Em 2004, por exemplo, lançou o BRS Pará, nome oficial da primeira variedade da planta indicada para terra firme, distante de terrenos alagados ou úmidos. Ou seja, um material genético recomendado para cultivo racional, diferentemente do que nasce espontaneamente na natureza. A planta é resultante de dois ciclos de seleção e começou a produzir mais cedo que as espécies nativas, além de ter apresentado mais produtividade, com maior rendimento da polpa. A expectativa é que esse experimento leve ao aumento da produção do fruto.
De olho nesse futuro promissor, o agricultor Jorge Jacob tem investido na produção de mudas do BRS Pará. A estimativa é que no ano agrícola de 2005/2006 sejam comercializados cerca de 3 milhões delas. A mudança que o lançamento da nova espécie trouxe ao cultivo do açaí oferece outras vantagens. Jorge Jacob mantém uma plantação com cerca de 750 palmeiras em fase de produção, cujos cachos ficam a uma altura menor que as plantas nativas, o que reduz o risco de acidentes de trabalho. A higiene dos cachos também é maior, pois o produtor pode evitar mais facilmente seu contato direto com o solo, coisa comum nas áreas de açaizais nativos.
Cuidados higiênicos são importantes, pois a limpeza constitui um dos principais gargalos na cadeia produtiva do açaí e preocupação constante dos que trabalham com o produto, como é o caso de João Vicente Barros da Silva. Há cerca de dez anos, esse engenheiro florestal iniciou um projeto de manejo dos açaizeiros existentes em uma área de 35 hectares, na ilha do Murutucu, próxima de Belém. A proposta inicial era apenas recuperar a floresta nativa, com ênfase na regeneração do açaí, mas o projeto cresceu e há cerca de cinco anos João Vicente e seus sócios Benhur Borges e Jaime Toledo Rezende optaram por investir na exportação, focada nos exigentes mercados dos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Uma fábrica, instalada na própria ilha, processa a polpa, seguindo padrões rigorosos que incluem desde a capacitação dos coletores ribeirinhos, já que a contaminação pode acontecer nesse estágio do processo, até a manipulação e embalagem do produto.
Alfredo Homma também vê a questão da higienização como um dos principais desafios que o agronegócio do açaí precisa vencer. E sugere como procedimento de segurança, principalmente no caso das exportações, a pasteurização, tratamento à base de variação de temperatura que elimina agentes patológicos e microrganismos.
Segundo o pesquisador, a exigência crescente do mercado em relação à qualidade do produto, mesmo dos consumidores da região amazônica, pode trazer outra conseqüência: o desaparecimento dos tradicionais "batedores" de açaí, comuns na região. São pontos-de-venda rústicos que aos poucos vão sendo substituídos por supermercados ou mesmo grandes distribuidoras. Essa tendência pode, num futuro próximo, trazer melhorias de qualidade para o açaí, mas causará danos irreversíveis aos pequenos comerciantes, que certamente não suportarão a concorrência.
Na verdade, o mercado do açaí apresenta uma contradição, aliás bastante comum à vida brasileira: à medida que ele se expande, as camadas sociais de baixa renda ficam mais afastadas dele. Para muita gente, o preço da polpa de açaí, vendida hoje por R$ 7 a R$ 8 o litro, está tornando impraticável seu consumo diário. Triste destino para um produto que, até bem pouco tempo atrás, era conhecido na Amazônia como "comida de pobre".
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