Postado em 01/09/2005
Cresce no Brasil o movimento das ecovilas, comunidades que buscam o equilíbrio ecológico e social
GUSTAVO PRUDENTE
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Se o pensador inglês Thomas More tivesse nascido na época atual, de desastres ambientais, violência generalizada, consumismo desenfreado e solidão urbana, e não na Inglaterra do século 15, como ele teria descrito a ilha de Utopia, cenário de seu mais famoso (e homônimo) texto? Talvez discorresse sobre um lugar em que todas as atividades humanas são ecologicamente sustentáveis, com um número limitado de habitantes, de modo que todos se conheçam e se chamem pelo nome, onde o consumo se limita a bens que não podem ser produzidos pela comunidade local e a palavra "solidão" se refere mais a um estado de meditação e comunhão com a natureza que à sensação de vazio e sofrimento.
Se assim fosse, a Utopia de hoje não seria puro exercício de imaginação do autor. Desde 1995, no Brasil e no exterior, cresce silenciosamente o movimento das ecovilas, um novo modelo de comunidade humana que busca colocar em prática um bom número desses conceitos. Segundo dados da Rede Global de Ecovilas (GEN), órgão que, além de reunir a categoria, presta consultoria para o Conselho Econômico e Social (Ecosoc) da Organização das Nações Unidas (ONU), existem hoje cerca de 15 mil comunidades como essas no mundo. Isso não significa, entretanto, que a utopia se realizou. Apesar de seus princípios, a realidade das ecovilas ainda está distante do ideal, inclusive no Brasil.
"A maioria das pessoas da Rede Brasileira de Ecovilas não vive em ecovilas. Elas gostam do modelo e pretendem morar numa delas um dia, mas por enquanto o que mais se faz é divulgar cursos na área", afirma Marcelo Bueno, fundador e secretário executivo do Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica (Ipema), e que também está "a caminho" de se mudar para uma ecovila, a Corcovado, em construção na cidade de Ubatuba, no litoral paulista.
A questão é que, ao contrário do que se possa pensar num primeiro momento, constituir uma ecovila é bastante complicado. Não se trata de um lugar bucólico, onde as pessoas comem o que plantam e dividem felizes as tarefas cotidianas. Embora não exista um conceito fechado, pode-se defini-la como um assentamento humano, nômade ou sedentário, que busca ser sustentável ecológica, econômica, social e ideologicamente. Isso significa que as pessoas devem morar, comer e viver de forma que não cause degradação à natureza, sustentar-se com recursos próprios, construir um ambiente de relações amigáveis, estimulantes e democráticas e ainda ter uma visão de mundo inspiradora, baseada em princípios humanistas, filosóficos, transdisciplinares e/ou espirituais. É muita coisa.
"Cada ecovila é um experimento único, um laboratório de utopia, e cada uma aporta novas idéias. Não existe na Terra inteira uma ecovila perfeita. Estão todas em processo de aprimoramento de sua qualidade, suas ferramentas, seus métodos de tomada de decisões e resolução de conflitos, seus princípios de sustentabilidade, de educação e de relações com as outras comunidades e o restante do mundo", afirma o mexicano Alberto Ruz, fundador da Caravana Arco-Íris pela Paz, uma ecovila itinerante de cerca de 27 pessoas de 13 países diferentes que, desde 1995, roda pela América Latina em dois ônibus. Atualmente, o grupo, que desenvolve ações educativas e artísticas, está em território brasileiro, atuando num projeto financiado pelo Ministério da Cultura.
Diferentes conceitos
Exatamente por serem "experimentos únicos", as ecovilas dão motivo a uma enorme diversidade de idéias, positivas e negativas. Existem comunidades que se saem muito bem em determinados aspectos, mas deixam a desejar em outros. Como cita Marcelo Bueno, o Instituto Visão Futuro, localizado no interior de São Paulo e uma das principais ecovilas brasileiras, é muito competente do ponto de vista econômico, sustentando-se por meio de cursos e outras fontes, mas ainda precisa avançar na construção de habitações ecológicas. Algumas ecovilas possuem forte teor espiritual, como o próprio Visão Futuro, coordenado pela monja iogue Susan Andrews, onde praticamente todos os moradores são praticantes de uma mesma filosofia. Outras possuem um caráter mais laico, como o Ecocentro Ipec (Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado), no interior de Goiás, em que o foco está na relação com a natureza e com a comunidade local. Algumas dão ênfase à arte, como a Caravana ou a italiana Damanhur. Há as mais preocupadas com a vida interna da comunidade e as que procuram desenvolver trabalhos com a população do entorno. E existem até as que buscam se adequar à lógica de mercado, como a Ecovila Santa Branca, próximo a Goiânia, que está vendendo seus lotes, como num condomínio, para gente da classe média e alta.
"Há quem veja a ecovila como coisa de hippie, que acorda cedo e vai cantar para a terra, ou uma espécie de fuga. Já os mais espiritualizados e alternativos acham que, quando não se selecionam os moradores, não se trata de ecovila", diz Antônio Zayek, uma das pessoas à frente da BioDesign, um "braço" do Ecocentro Ipec cujo objetivo é desenhar ecovilas, inclusive para iniciativas privadas, e que é responsável pelo projeto da Santa Branca. Estão presentes nessa afirmação de Zayek dois pontos sensíveis para quem lida com ecovilas: o preconceito externo, de quem não conhece o modelo e o considera uma opção de pessoas "não-convencionais" ou "escapistas", e o preconceito interno, daqueles que defendem uma certa "pureza" ideológica própria desse tipo de comunidade, como se fosse reduto exclusivo de "seres ética ou espiritualmente elevados".
É verdade, entretanto, que a "mercantilização" do conceito traz outros problemas. Na Santa Branca, por exemplo, não há o compromisso de que as casas utilizem soluções clássicas de sustentabilidade ecológica, como o sanitário seco, em que os excrementos não são levados pela água para o esgoto, mas caem diretamente num tipo de depósito, para ser transformados em adubo orgânico. Embora economize água, evite a contaminação dos rios e seja eficiente e higiênico, o sanitário seco não é tão estético ou cômodo quanto o comum – portanto, não se ajusta à lógica do mercado nem ao gosto médio das pessoas de maior poder aquisitivo.
Com tantas diferenças – e divergências – quanto ao modelo, o que parece realmente se destacar numa ecovila é a intenção de quem a constrói ou nela vive. Quer seja exclusivista ou aberta, itinerante ou fixa, laica ou religiosa, rural ou urbana, ela sempre supõe a insatisfação com a sociedade atual e seus valores, em especial com a estrutura da vida urbana. Em alguns casos, esse descontentamento é inocente, um arroubo mais apaixonado que refletido. Em outros, conduz a um projeto muito bem estruturado, embasado em larga experiência prática e nos conhecimentos teóricos e acadêmicos de seus participantes. Ainda assim, em todos os casos, há um desejo de romper com o paradigma socioeconômico estabelecido.
Lugar de jovens
Dotadas de um ar "revolucionário", as ecovilas atraem principalmente os jovens – maioria nesse tipo de comunidade. "Na Grã-Bretanha, há um estilo de vida decadente, e eu não queria contribuir para a morte do planeta", afirma James Kelly, de 18 anos, que veio da Escócia trabalhar voluntariamente no Ecocentro Ipec em funções ligadas à agricultura orgânica e à bioconstrução – sistema que faz uso mínimo de cimento e produtos pré-fabricados e utilização máxima de recursos do próprio terreno, como terra e madeira nativa.
James esteve apenas por alguns meses no Ipec – um dos destinos escolhidos pelos jovens de nações desenvolvidas que desejam conhecer outros países fazendo trabalho social –, mas outras pessoas da sua idade, como Gustavo Carvalho, de 19 anos, não pretendem sair de lá tão cedo. "Quanto terminei o ensino médio, não sabia o que queria. Então, vim fazer um trabalho voluntário aqui, em 2005. Depois, fui chamado para participar do curso de bioconstrução e, em seguida, para trabalhar com educação. Hoje ganho salário, moradia e alimentação", conta.
O fato de Gustavo, tão novo, já ser auto-suficiente não significa que sua vida seja invejada pela população urbana. O cotidiano das ecovilas não inclui muitos dos elementos que prendem as pessoas à cidade, ou mesmo ao campo, onde já existem muitos confortos e tecnologias que passam longe dessas comunidades. A comida em geral é simples (em muitas ecovilas, a dieta é rigorosamente vegetariana). Refrigerantes, doces e outras guloseimas industrializadas existem em quantidades mínimas – ou simplesmente inexistem. As comodidades das moradias variam. Algumas ainda dependem de luz elétrica comum. Outras geram total ou parcialmente sua energia, utilizando fontes como o sol, e há as que nem mesmo possuem eletricidade. As casas, de modo geral, são feitas segundo os princípios da bioconstrução. Televisão e internet estão presentes, mas dificilmente se encontra um morador assistindo à novela do horário nobre ou grudado na tela do computador até altas horas da madrugada numa sala de bate-papo. Dorme-se e acorda-se cedo.
Entretenimento, educação e saúde, especialmente no caso de ecovilas rurais, nem sempre estão a quinze minutos de carro de casa. Por um lado, é preciso abrir mão de certos hábitos, como o cinema de fim de semana, e por outro buscar alternativas locais de educação e diversão, além de ter paciência quando é necessário ir ao centro urbano mais próximo, por exemplo, devido a um problema de saúde. Acima de tudo, deve-se abandonar a idéia de que é possível obter produtos e serviços apenas pagando por eles (seja o tomate para a salada, a mesa de jantar ou a faxina quinzenal na casa desorganizada). Assumir autonomia, auto-suficiência e responsabilidade pela própria sobrevivência é um dos pilares da vida nesses locais.
Ainda assim, embora a princípio seja algo assustador, o bicho não é tão feio quanto parece. "Não sinto falta de televisão nem de rádio desde que cheguei", diz Gustavo. "Aqui somos forçados a conversar", afirma James, que encontrou em outro jovem morador do Ipec, o brasileiro Ciro de Araújo, de 22 anos, um parceiro musical. "Às vezes, à noite, ficamos olhando a lua e tocando violão. Conversamos pela música."
Laila Soares, de 15 anos, filha do casal que fundou e dirige o Ipec, é uma das jovens mais empolgadas com o modelo. "Sinto muita falta quando saio daqui", diz ela, que foi criada e educada na ecovila. Acostumada a "passar horas observando os animais", ela se diz impressionada com o número de jovens que, ao contrário dela, temem a natureza. "Eles têm medo do escuro, de cobra e de aranha. E o engraçado é que não é um sentimento provocado por uma experiência ruim, mas, sim, por algo que alguém falou", diz. Engajada, ela é trabalhadora ativa da ecovila e pretende, no futuro, continuar morando nesse tipo de comunidade.
A experiência de Laila, entretanto, não é muito comum. Da mesma forma que atraem jovens idealistas, oriundos da cidade, as ecovilas também são abandonadas por aqueles que nasceram e cresceram nas comunidades e desejam conhecer outras realidades, como a dos centros urbanos. "Alguns são filhos de pessoas bastante intelectualizadas, que receberam muita informação. De repente, a comunidade fica pequena para eles, que não suportam atuar como guia turístico para bacana que vai visitar a ecovila no fim de semana", afirma Wagner Ribeiro, geógrafo e coordenador de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP). Mas nem sempre a saída é definitiva ou vista com maus olhos. "Há jovens que saem, mas alguns depois voltam – e mesmo os que não voltam levam um novo conceito de vida dentro de si", diz Rona Campos Ribeiro, que mora em Findhorn, na Escócia, uma das mais famosas e antigas ecovilas do mundo.
Apesar das vantagens de viver em uma comunidade socialmente engajada e ecologicamente correta, ficar longe da efervescência cultural dos centros urbanos acaba pesando, ainda mais para os jovens. "Adoro o Ipec, mas acho que sentiria falta de muita coisa se ficasse só aqui", explica Tânia Mara, de 20 anos, que trabalha na ecovila e mora em seu entorno. Ela, que antes de ir para o interior de Goiás vivia em Goiânia, diz que o distanciamento da agitação já não a incomoda, mas freqüentar Pirenópolis, pequena localidade turística próxima da ecovila, é fundamental. "Estou muito empolgada, tentando organizar um movimento social de jovens na cidade", afirma. Laila, a adolescente apaixonada pelo modelo, lembra: "Qualquer lugar, mesmo uma comunidade como esta, precisa ter atividades para a moçada".
Novos paradigmas
Talvez a principal contribuição das ecovilas para o sistema socioeconômico atual, em todo o mundo, seja sua capacidade de quebrar os paradigmas vigentes. Não se trata de uma tentativa de amenizar as mazelas da cidade ou de promover uma volta à vida rural, mas de algo totalmente novo. Saem os muros de concreto e o consumismo urbano, mas também pulam fora elementos associados ao campo, como os agrotóxicos e a substituição da fauna e da flora nativas por pastos, bois e bichos de estimação, como cães e gatos. Ecovila é o tipo de síntese que permite internet no mato e mato na cidade grande.
"Para sermos pessoas íntegras, precisamos do urbano e do rural", afirma Marcelo Todescan, arquiteto e um dos idealizadores da Ecovilasp, um projeto ambicioso que promete formar uma comunidade na maior metrópole do país, com três "anéis": um núcleo dentro de São Paulo, mais urbano, outro a poucos quilômetros da capital, mais rural, e um terceiro, de mata intocada, que servirá como "santuário". "A ecovila não pode ser isolada, pois ninguém é auto-suficiente. Precisamos de relações sustentáveis", diz.
A proposta de Todescan vai ao encontro de outra idéia-chave das ecovilas: em vez de criar paraísos particulares, recuperar locais degradados – seja uma área rural devastada ou uma grande cidade deteriorada. Não é à toa que, além das mais tradicionais ecovilas rurais e das curiosas comunidades itinerantes, estão se multiplicando experiências de ecovilas urbanas, que tornam o conceito mais assimilável para quem não quer abandonar a cidade. "Se conseguíssemos implantar esse modelo em cada bairro, seria mais fácil resolver nossos problemas", afirma Cecília Ramalho, jornalista e uma das responsáveis pelo projeto Ecoaldeia, que pretende fazer do Jardim Arroyo, bairro de classe média baixa de São José do Rio Preto, uma ecovila urbana.
"Trata-se de um movimento de caráter social, mesmo que tenha ‘eco’ no nome e em seu conceito", afirma Vanessa Valentina, representante da GEN no Brasil e co-fundadora da ecovila Abra144, no Amazonas. De fato, essas comunidades têm ganhado mais atenção dos pesquisadores e ativistas de áreas sociais, como habitação e economia solidária, que das pessoas da área ambiental. "O movimento ambientalista vê a ecovila como alternativa economicamente inviável e suas preocupações estão voltadas para outras questões globais, como mudança climática e desmatamento", explica Wagner Ribeiro, da USP. No meio acadêmico brasileiro, da mesma forma, as pesquisas sobre o assunto são quase nulas.
Os defensores da ecovila, por outro lado, consideram que, em muitos casos, as próprias pessoas que lutam por causas ecológicas não vivem de forma sustentável para o planeta. "Hoje todas as nossas necessidades básicas causam degradação do ambiente: alimentação, habitação e higiene pessoal. Não nos responsabilizamos nem mesmo por nossos excrementos", afirma Cláudio Jacintho, que está iniciando a instalação de uma ecovila próximo a Brasília, na Chácara Asa Branca. Ele vive numa casa erguida quase completamente com recursos naturais do local e restos de construção e só consome água captada da chuva. "Faço tudo isso, mas ainda gasto petróleo para ir de carro até Brasília e compro fraldas descartáveis para minha filha, porque não tenho como lavar as de pano toda hora", reconhece.
"No mundo inteiro, as ecovilas ainda estão procurando um caminho, acertando e errando", argumenta Rona Ribeiro. Segundo ela, o Brasil, apesar de haver pouca divulgação, é um dos países onde o movimento mais avançou, tendo sido introduzido inclusive em outros contextos, como favelas e assentamentos de sem-terra. "O modelo vigente de ecovilas, importado da Europa, é equivocado. Se pensarmos no conceito, o Brasil possui diversas comunidades rurais e tribos indígenas que são ecovilas", diz André Soares, fundador e coordenador do Ipec. Talvez essa não seja ainda a nova utopia que todos desejam, "mas é, no mínimo, um freio ético para as gerações futuras", como afirma o professor Wagner Ribeiro.
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