Postado em 04/05/2005
Sobram vagas para deficientes, mas falta mão-de-obra qualificada
SANDRA REGINA DA SILVA
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A Campanha da Fraternidade 2006 tem como foco as pessoas com deficiência. A questão de sua inserção no mercado de trabalho foi sempre um problema e, recentemente, provocou um choque de opiniões entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério Público do Trabalho (MPT). Essa discordância, que foi parar no Tribunal de Justiça de São Paulo, está relacionada à Lei de Cotas, que exige que companhias com mais de cem funcionários contratem um percentual de deficientes (entre 2% e 5% do quadro de empregados).
A Delegacia Regional do Trabalho no Estado de São Paulo (DRT/SP), do MTE, percebeu que era necessário flexibilizar as regras para certas empresas, como companhias aéreas, de transporte e de segurança/vigilância. "Constatamos que há setores cuja função principal exige capacitação plena, e estes devem ter tratamento diferenciado. É preciso haver justiça e equilíbrio na aplicação de uma lei", explica Lucíola Rodrigues Jaime, chefe de Fiscalização do Trabalho no Estado de São Paulo. Assim, a DRT negociou com o Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo e Região (Setcesp), que incluiu uma cláusula em seis convenções coletivas de sindicatos de empregados de empresas de transportes rodoviários, determinando a aplicação do percentual somente sobre os funcionários com funções que não exigem capacidade plena, para então chegar ao número de pessoas com deficiência a ser contratado pelas companhias do setor.
Ao tomar conhecimento dessa medida, o MPT da 2ª Região, na capital paulista, entrou com ação anulatória no Tribunal Regional do Trabalho, como informou a procuradora Adelia Augusto Domingues. A cláusula das seis convenções foi suspensa por liminar, e o julgamento ainda não tem data para acontecer. "Entendemos que se trata de uma lei de ordem pública e que não pode ser flexibilizada de forma alguma", diz. Ela explica que o percentual deve ser calculado sobre o total de funcionários, e a empresa coloca os deficientes onde quiser. Adelia afirma que, pela tal cláusula, deveria ser calculado o percentual de 4%, independentemente do tamanho do quadro funcional, apenas sobre o pessoal administrativo, o que significa "todos os funcionários de setores não-operacionais, ou seja, excluem-se motoristas, ajudantes, arrumadores de carga e correlatos". Segundo a procuradora, o leque de deficiências é amplo e há muitos deficientes e reabilitados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que estão aptos a exercer algumas dessas atividades. "Se tivermos conhecimento de outros acordos, tomaremos providências imediatas", anuncia.
A obrigação legal
Na opinião do presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB-SP), Frederico Antonio Gracia, a aplicação da chamada Lei de Cotas, prevista no artigo 93 da lei 8.213, de 1991, e regulamentada em 1999, não é a melhor solução. Porém, especificamente no caso brasileiro, "não vejo outra forma de garantir vagas para pessoas com deficiência senão por meio de lei", diz ele.
O valor da autuação para os infratores é de R$ 1.101,75 por pessoa não contratada. No estado de São Paulo, de agosto de 2005 a fevereiro de 2006, foram multadas cerca de 150 empresas, das quais 89 nos dois primeiros meses deste ano. Número pequeno se comparado às 7.278 matrizes de companhias com mais de cem funcionários instaladas no estado, totalizando 132 mil vagas para deficientes. Em 2004, 4.004 delas cumpriam a lei, empregando apenas 35.782 pessoas com deficiência. Segundo análise da DRT, as grandes empresas são as mais relutantes. Das 3.274 irregulares, 2.694 estavam sob fiscalização no primeiro trimestre deste ano.
Em nível nacional, conforme dados do Centro de Políticas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), dos 26 milhões de trabalhadores formais ativos em 2003, 537 mil apresentavam algum tipo de deficiência, ou seja, pouco mais de 2% do total. Pelo Censo 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), consta que 14,4% da população têm deficiência e 2,5% são incapacitados.
O interessante do estudo da FGV é que, dos deficientes empregados, 31% estavam em empresas com menos de cem funcionários, exatamente as que não são obrigadas a contratá-los. Os demais encontravam-se em companhias de 100 a 249 funcionários (14,57% dos 537 mil deficientes), de 250 a 499 empregados (13,53%), de 500 a 999 (11,86%) e naquelas com mais de mil (29,03%).
Lucíola, que assumiu a chefia de Fiscalização em agosto de 2004, garante que só multar não iria funcionar, e que por essa razão foi preciso criar um programa especial. A cada semana ou quinzena, são realizadas reuniões – de quatro horas – com representantes de cem empresas por vez, que recebem todas as orientações necessárias sobre a lei. A partir de então, quem não se enquadrar é chamado a cada 60 dias. Após oito meses, a companhia passa a ser autuada e multada mensalmente até cumprir a determinação.
A DRT criou ainda propostas alternativas, como a formação de cooperativas com, no mínimo, 75% de deficientes para produzir, por exemplo, uniformes de vigilantes. "É uma forma de gerar renda para aqueles que não querem trabalhar formalmente." Na verdade, há um contingente que não deseja abrir mão do salário mínimo mensal previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), o qual é suspenso a partir da contratação. A Loas deveria ser um benefício alternativo, na opinião de Lucíola, isto é, um deficiente que o perdeu poderia voltar a recebê-lo no caso de não se adaptar ao emprego.
Capacitação
Para as empresas, a principal dificuldade é "encontrar mão-de-obra qualificada para as vagas disponíveis", afirma Gracia, da OAB. Segundo Francisca Roseneide Monte, assessora técnica do Ministério da Educação (MEC), o índice de analfabetismo das pessoas com deficiência acompanha a realidade nacional, o que significa que está sujeito às diversidades econômicas, sociais e culturais do país.
Atualmente, porém, já se percebe uma mudança nesse panorama. De acordo com o último Censo Escolar, em 2005 houve crescimento de 42,7% no número de matriculados na educação especial, na comparação com 2002, basicamente devido à implementação da educação inclusiva no sistema de ensino público.
Entre as entidades que têm como objetivo inserir pessoas com deficiência no mercado de trabalho, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo (Apae-SP) desenvolve um programa direcionado apenas para deficientes mentais de 16 a 30 anos de idade, cujo treinamento dura em média de um a dois anos. "Vários aspectos são abordados: comportamento, postura, capacitação", afirma Elisabeth Federici Florence Teixeira, coordenadora do Centro de Capacitação e Orientação para o Trabalho da entidade. Ela diz que o mais difícil de trabalhar com o deficiente mental é a postura (pontualidade, limite, respeito à hierarquia, etc.), geralmente por conseqüência do trato familiar. O programa atende hoje 215 pessoas, mas tem capacidade para 250. Em 2004, a instituição incluiu no mercado 198 pessoas com deficiência e registrou retorno de 20. Em 2005, foram 147, com apenas dois retornos. São as linhas de montagem que mais absorvem os deficientes mentais. No ano passado, 112 dos incluídos foram para o segmento industrial, 21 para serviços e 14 para administração. Nos primeiros 45 dias de 2006, mais de 30 empresas procuraram a Apae-SP em busca de mão-de-obra para contratação.
A Associação para Valorização e Promoção de Excepcionais (Avape), com sete unidades no estado de São Paulo, atua na reabilitação clínica e profissional, colocação no mercado de trabalho e convivência social de pessoas com diferentes tipos de deficiência. Em 2005, realizou cerca de 2 milhões de atendimentos, entre serviços médicos, de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicoterapia, serviço social e outros, a maioria gratuitos, e conseguiu oportunidade de emprego para aproximadamente 6 mil pessoas com deficiência.
Segundo Marcelo Vitoriano, que coordena os cursos de capacitação e a oficina da Avape, o programa de reabilitação e colocação profissional varia de três meses a um ano, com carga horária de oito horas por dia, dependendo do potencial do deficiente. "O custo mensal do programa é de cerca de R$ 750, mas a maioria paga um valor definido a partir de um estudo socioeconômico de cada pessoa." A seu ver, o pagamento, mesmo que simbólico, é importante, pois cria um compromisso, que é um dos pilares para trabalhar a autonomia da pessoa.
Uma das principais atividades de treinamento tanto da Avape quanto da Apae-SP acontece a partir do recebimento de encomendas de empresas parceiras, que determinam as especificações, prazo, qualidade e quantidade, e pagam pelo serviço o valor de mercado. Há trabalhos de baixa até alta complexidade, e a pessoa atua naquilo que tem capacidade de fazer.
Na Apae-SP, os deficientes são remunerados pelas tarefas realizadas – o pagamento é integralmente distribuído entre os que participaram do serviço. "Eles recebem no caixa eletrônico do banco e, assim, também aprendem a lidar com dinheiro", diz Elisabeth. Há ainda outras opções complementares de treinamento, por exemplo para atividades de limpeza, faxina e atendimento em lanchonete.
Na Avape, que conta com cinco centros de capacitação profissional, as pessoas podem optar por treinamento em marcenaria e restauração de móveis, padaria, além de ter à disposição 27 cursos gratuitos, como informática, telemarketing e turismo. São oferecidas ainda oficinas ocupacionais de artesanato, jardinagem, criação de pequenos animais e atividades esportivas, culturais, de música e dança.
Tanto a Avape quanto a Apae-SP prestam outros serviços para empresas que são cobrados, a exemplo de palestra de sensibilização de funcionários, identificação de funções, condições arquitetônicas, recrutamento e seleção, entre outros. A verba assim obtida é destinada à manutenção dos programas. Esses serviços também podem ser contratados com companhias privadas especializadas.
O engenheiro Ricardo Hodish, diretor da Painel Assessoria, que atua nesse nicho há mais de oito anos, confirma que existe excesso de vagas para deficientes e falta de mão-de-obra qualificada. "Estabelecemos parcerias com todas as entidades que fazem capacitação e treinamento. Nelas, buscamos pessoas aptas a ser colocadas no mercado de trabalho", diz Hodish, que é cadeirante. Quando procura a Painel, a empresa tem seu perfil analisado, e é feito um estudo da aptidão necessária para o cargo a ser ocupado. Hodish destaca, porém, que em geral o deficiente precisa de um tempo maior de adaptação e treinamento dentro da companhia.
Experiências reais
Em 2001, a Serasa desenvolveu o Programa Serasa de Empregabilidade de Pessoas com Deficiência, que tem parceria desde 2003 com a Organização das Nações Unidas (ONU), para ser implementado voluntariamente nas empresas. O objetivo é recrutar, selecionar e oferecer treinamento profissional a portadores de deficiência física, visual e auditiva que tenham potencial para desenvolver tarefas profissionais segundo suas aptidões e talentos, e, por fim, oferecer contratação na própria Serasa ou em outra empresa. "Os que têm mais qualificação já trabalham. Então, o que precisamos fazer é qualificar o deficiente, como qualquer outro funcionário. No processo de seleção, exigimos independência e autonomia pessoal e profissional. Ter uma deficiência não serve como desculpa", diz o coordenador do programa, João Baptista Ribas, que é cadeirante.
Hoje, do total de cerca de 2,1 mil funcionários, 94 são portadores de deficiência, espalhados pelas unidades da Serasa em todo o Brasil, ou seja, próximo de atingir os 5% exigidos por lei. "Temos cegos, surdos, amputados, pessoas que sofreram paralisia cerebral, má-formação na gestação. Mas a idéia não é contratar apenas porque a lei exige, mas sim investir no desenvolvimento de cada um", destaca Ribas. Outro investimento foi feito no edifício-sede, em São Paulo, que é o primeiro do Brasil com certificação de acessibilidade para todos os tipos de deficiência.
Mesmo antes de existir a Lei de Cotas, a MWM-International Motores já contava com pessoas com necessidades especiais em seu quadro de funcionários. A companhia apóia entidades que preparam deficientes, como a Apae-SP e o Instituto Pestalozzi no Rio Grande do Sul. "Buscamos transformar os que foram excluídos do papel de cidadão em pessoas capazes de ser felizes e participantes da sociedade, como os demais", diz Pedro Funcke, gerente de Programas Sociais e Motivacionais da empresa.
De acordo com ele, a MWM-International, que tem 2,7 mil funcionários – em São Paulo, Canoas (RS) e Córdoba, na Argentina –, está acima da cota exigida e possui instalações adaptadas às necessidades especiais. Embora o número total não esteja disponível, somente na fábrica de São Paulo são 85 deficientes, dos quais 37 físicos ou auditivos, 19 mentais e 29 reabilitados. "Mais do que cumprir a cota estipulada pela lei, está a importância de preparar essas pessoas para o trabalho e socializá-las", acrescenta Funcke.
A Liberty Paulista Seguros (ex-Companhia Paulista de Seguros Marítimos e Terrestres, adquirida pela Liberty Mutual em 1996) iniciou recentemente a contratação de deficientes. Com 974 funcionários, admitiu três pessoas com paralisia física parcial e, em março, começaram mais seis. "A meta é ter de 30 a 40 pessoas com deficiência no decorrer de dois anos", diz Ademir Marques, diretor de Recursos Humanos.
A princípio, a companhia colocou anúncios em jornais e procurou instituições. Em seguida, realizou um processo seletivo, e os escolhidos passaram por 30 dias de treinamento, internamente. Os candidatos precisam ter o ensino médio completo e prática de trabalho, não necessariamente na área de seguros. "A maioria das seguradoras está preocupada em cumprir as cotas, mas é difícil encontrar pessoas com experiência em seguros. Optamos por formá-las e assim dar oportunidade de inseri-las em nossa empresa", conta Marques. Ao final do treinamento, o perfil de cada novo funcionário é avaliado e, então, ele é alocado de acordo com as vagas disponíveis, explica Leila Hsu, responsável pelo recrutamento e seleção da Liberty.
Vale ressaltar que todos os funcionários da Serasa, da MWM-International e da Liberty foram preparados para receber os novos contratados. "A forma responsável como nossos colaboradores ensinam essas pessoas a trabalhar, sem tratá-las de modo diferenciado, é interessante, não deixando que sentimentos como benevolência ou caridade interfiram no processo de aprendizagem e socialização", conta Funcke.
O setor bancário, que tem cerca de 400 mil funcionários, representa oportunidade de trabalho para 20 mil deficientes. Segundo Mário Sérgio Vasconcelos, diretor de Relações Institucionais da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), nenhum estabelecimento atingiu a cota; no máximo alguns chegaram a 50% ou 60% do previsto em lei. Recentemente, a Febraban treinou 1,2 mil pessoas com deficiência.
Para Vasconcelos, muitos dos deficientes estão aptos a exercer atividades mecânicas, repetitivas, mas, nos bancos, a maioria delas é feita por máquinas. A lei é benéfica, diz ele, mas precisa ser flexível para que sejam levadas em consideração as características próprias de cada setor, de cada empresa. "O perfil dos cargos administrativos exige qualificação cada vez maior."
Durante séculos, os deficientes foram excluídos do convívio social, e agora se busca solucionar a questão em curto prazo, tanto do ponto de vista da empregabilidade quanto da infra-estrutura, do acesso, segundo Vasconcelos. "Não queremos funcionários sem condições de se desenvolver profissionalmente, pois nesse caso seria criada uma nova discriminação", afirma ele, acrescentando que a conseqüência é a exclusão do mercado de trabalho.
Em sua opinião, é preciso um trabalho conjunto entre empregadores e entidades públicas para criar condições que viabilizem a inclusão social e a própria aplicação da lei. "Se o objetivo é o desenvolvimento dessas pessoas, uma sugestão é investir o valor que seria pago como multa no treinamento delas. Afinal, essa responsabilidade não é apenas do empregador ou dos órgãos públicos, mas de todas as pessoas, com ou sem deficiência", completa o diretor da Febraban.
Como Gracia, da OAB, afirma, "o tema não deve ser tratado com piedade ou caridade, mas por meio de políticas públicas que visem dar condição de cidadão ao deficiente".
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