Postado em 01/03/1999
Autor de "Macunaíma" norteou sua obra pela busca da "língua brasileira", em oposição ao lusitanismo da época
CECÍLIA PRADA
Dizem os entendidos em lendas da cidade de São Paulo que na Biblioteca Mário de Andrade o fantasma do seu patrono já foi visto várias vezes, circulando pelos corredores a altas horas da noite, dando gargalhadas condizentes com o espírito e o humor do criador de Macunaíma.
Cinqüenta e quatro anos após a sua morte, o legado que Mário nos deixou - sua literatura, sua obra crítica, seu pensamento, sua enorme inquietação existencial - está mais vivo, mais atual do que nunca. Ele próprio dizia, ao refletir sobre sua vida, já aos 40 anos, que podia dividi-la em dois períodos: o da juventude, em que fora "filho da felicidade... e literalmente um gozador", e o da maturidade, em que se reconhecia "um órfão, não mais o filho da felicidade, porque a felicidade morreu, mas o apaixonado, o ganancioso compartilhador da precariedade humana".
Corroído pela dúvida, amargurado, vivendo intensamente o conflito que foi o do seu momento histórico - sacudido pela Segunda Guerra Mundial e pelos reclamos desumanos de um "engajamento" político compulsório -, o Mário dos últimos anos, empenhado numa autocrítica exacerbada, renegava a "inconsciência juvenil" e o "individualismo burguês" e proclamava "querer entregar-se à coletividade monstruosa, insaciável, imperativa".
No entanto, a presença do Mário juvenil, o eco da sua gargalhada gostosa, vital, matreira e despreocupada, marca o que foi certamente o turning point mais importante de nossa cultura: o início do movimento modernista. No ano de 1917, a jovem pintora Anita Malfatti, que voltava da Europa depois de estudar com os maiores expoentes da pintura expressionista e futurista, ousava sacudir a pasmaceira provinciana com uma exposição de 53 quadros inteiramente "diferentes", de colorido forte, traços pessoais, temática ousada, para grande escândalo de público e críticos.
Em violento artigo que passaria à história, "Paranóia ou mistificação", Monteiro Lobato definia os quadros de Anita como "arte anormal, teratológica, comparável aos desenhos dos internos do manicômio" e conclamava o público à indignação e à mofa. Entre o público que ria, e até investia a bengaladas contra os quadros, num sábado chegou um rapaz magro, alto, macilento, que desandou a dar gargalhadas histéricas, para grande fúria da pintora.
Dias mais tarde, o rapaz voltaria, obcecado, intrigado, e se tornaria em seguida o maior defensor, e o maior amigo, durante o resto da vida, de Anita Malfatti. Diria Mário, mais tarde, que "aqueles quadros foram a revelação de uma arte nova, o enigma do novo, uma grande lição de liberdade criadora". A exposição de Anita é hoje unanimemente reconhecida como o estopim do movimento modernista que culminaria, cinco anos mais tarde, na Semana de 1922.
Quanto a Mário, aqueles anos marcariam o deslanchar do seu talento multiforme e a plena expressão de uma iconoclastia corajosa, radical, que em 1921, com a publicação do livro de poemas Paulicéia Desvairada, e logo depois com a série de artigos Mestres do Passado, em que desancava sem piedade os mais reverenciados poetas parnasianos, estabeleceria a ruptura definitiva com o passadismo retrógrado e assumiria a posição de líder da renovação artística do país.
Herança vasta
Uma das pessoas que mais se têm dedicado à preservação da obra e da memória de Mário de Andrade, a professora Telê Porto Ancona Lopez, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB), diz:
"Mário está mais vivo do que nunca. Como poeta e ficcionista é um dos escritores mais lidos no país, um clássico, um mestre da língua e do estilo. Mas a sua herança cultural é mais vasta. Porque Mário foi o primeiro a pensar num projeto de cultura nacional, a tomar iniciativas de organizar setores que até a sua época só tinham sido abordados de forma amadorística, como o da etnografia e o do folclore. Aproveitou a vinda do casal Lévi-Strauss para fundar, por exemplo, a Sociedade de Etnografia e Folclore, que realizou pesquisas de campo em lugares da periferia de São Paulo, ou em cidades como Atibaia, Bragança Paulista e outras, levantando a cultura popular da região. No campo do folclore, foi o grande incentivador do trabalho daquele que se tornaria depois o maior especialista, Câmara Cascudo (ver PB no 330, novembro/dezembro de 1998, pág. 34). Sua atuação à frente do Departamento de Cultura, embora tenha sido de curta duração, menos de três anos, deitou raízes que ficaram até hoje - veja-se por exemplo a criação de bibliotecas, de casas de cultura, de parques infantis. Na vasta documentação que deixou, podemos ver o cuidado do seu planejamento, a vastidão de detalhes abrangidos, muitos dos quais ainda não realizados até hoje".
Além disso e de sua valiosa contribuição no estudo e no registro da música brasileira, Mário deixou materialmente um legado precioso, suas coleções de arte e de documentos, hoje abrigadas no IEB. Diz Telê Ancona Lopez: "A grande preocupação de Mário era a salvaguarda dos nossos bens culturais e a documentação do momento histórico que vivia - até então havia no país um interesse apenas em relação aos documentos da história passada. Mário viveu intensamente a sua época, tinha plena consciência da necessidade desse registro do tempo presente, que nos deixou no seu arquivo pessoal, na marginália, até hoje não muito estudada (isto é, o precioso e vasto material de suas anotações à margem dos livros que lia), enfim, na sua enorme e valiosa correspondência, ativa e passiva - esta, franqueada ao público em 1995, 50 anos após a sua morte, como era do seu desejo".
Abençoado futurismo
Dos múltiplos Mários em que ele próprio se reconhecia desdobrado, em seu famoso verso "Eu sou trezentos, trezentos e cinqüenta", é o Mário escritor o que predomina no cenário dos anos 20 a 40, com obra que até hoje permanece vital, atual. Em 1921 Oswald de Andrade lançava-o como "o nosso poeta futurista", e dizia: "Em relação ao acanhamento de estética e ao embrutecimento tradicional do nosso país em coisas díarte, os versos de Paulicéia Desvairada são do mais chocante, do mais estuporante, e, para mim, do mais abençoado futurismo".
Embora negando o epíteto de "futurista", que lhe parecia estreito demais, Mário tinha consciência de que estava criando uma literatura nova, e a duras penas, pois, como diz Mário Neme, num artigo de 1946, "Mário começou a escrever por volta de 1912-14, e não surgiu assim muito precursor de nada... mas veio trabalhando honestamente, sem tapeação nem receio, sem improvisação... Não se abandonou jamais na gostosura das fórmulas consagradas e descansantes; viveu na inquietação da procura, e na insatisfação - que é a boa marca do artista". Mais do que isso: na obra de Mário toda expressão literária implicava também uma revisão de posição crítica. O lirismo se associava à sátira e à preocupação de criar uma poética, como mostra a publicação de seu primeiro livro de ensaios (A Escrava que não era Isaura), do qual dizia Jamil Almansur Haddad: "Espírito alerta, torturado pelo demônio da pesquisa, (Mário) entranhava-se pelos problemas adentro e tinha a honestidade e a vitalidade de não se escravizar a um ponto de vista dogmaticamente estabelecido... A escrava trouxe a noção, revolucionária para a burrice do tempo, de que verso é uma coisa e poesia é outra".
Simultaneamente ia Mário desenvolvendo, naqueles anos 20, o seu experimentalismo de ficcionista. Escrito em 1923/24, seu primeiro romance, Amar, Verbo Intransitivo, um "idílio", mostrava uma abordagem original, cinematográfica, muitos anos mais tarde desenvolvida efetivamente no cinema. Já nesses anos também começava a exercitar-se nos contos, em que seria mestre. O exame da bibliografia do autor nos mostra uma verdadeira efervescência criativa em um homem que, ao mesmo tempo, conseguia criar poesia, prosa, fazer crítica literária, musical e de artes, e efetuar pesquisas sérias em variados campos, como a etnografia, o folclore e a fotografia, além de conduzir uma política cultural organizando eventos de suma importância, como o Primeiro Congresso Nacional de Língua Cantada, em 1935, ou seu último esforço, o Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, pouco antes de morrer.
A maior parte do que publicou em vida foi às suas custas. Pela dificuldade em encontrar editores, uma grande parte dos escritos de Mário permaneceu inédita até a sua morte (os Contos Novos, o poema "Café", a Vida do Padre Jesuíno de Monte Carmelo, o romance Quatro Pessoas e a Lira Paulistana - que contém a "Meditação sobre o Tietê", considerado por Antonio Candido "o mais significativo dos poemas que compôs e que, datado de fevereiro de 1945, isto é, do mês de sua morte, tem um sentido quase misterioso de testamento").
Língua brasileira
Mas o fio condutor de toda a obra de Mário permanece, sem dúvida, a busca do caráter nacional, a estruturação da nacionalidade por meio de uma linguagem própria, que defendia como "a língua brasileira", em oposição à fala culta, eivada de lusitanismo, que prevalecia no seu tempo. Muito antes de escrever sua obra-prima, Macunaíma (ver PB no 328, julho/agosto de 1998, pág. 42), já se impusera como apostolado a tarefa de aprofundar harmoniosamente o tipo brasileiro e desmascarar as estruturas de poder que se impunham autoritárias sobre o grande tecido da realidade nacional, a principiar pelo artificialismo da língua dita culta.
Diagnosticava que "há uma ridícula desinteligência entre o brasileiro e o Brasil", mas mostrava-se esperançoso, pois no seu entender, com muito esforço, levantando a riqueza natural da terra e da paisagem humana, poderíamos suprir a falta de uma tradição artística e cultural como a européia, e os seus séculos de inteligência crítica, e "ingressaríamos na consciência de nosso país".
Assim, escrita de um só jato em seis dias em 1926, mas publicada somente em 1928, a rapsódia Macunaíma nada tinha de inspiracional ou fortuita, muito embora num dos dois prefácios para a obra, que nunca vieram a público, Mário de Andrade a tenha definido como "um brinquedo", dizendo: "... este livro não passou de um jeito pensativo e gozado de descansar umas férias, relumeante de pesquisas e intenções, muitas das quais só se tornaram conscientes no nascer da escrita, me parece que vale um bocado como sintoma de cultura nacional".
Tomando como base lendas e mitos indígenas da região de Roraima e da bacia do médio Orenoco, recolhidas pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, e a elas juntando outros elementos riquíssimos do nosso folclore - em que andava tão mergulhado -, Mário conseguiu criar de um só fôlego uma estrutura literária original, uma síntese, uma amálgama fenomenal, "uma grande fábula de busca", na definição de Haroldo de Campos, "uma saga em que um anti-herói perneta, à busca do seu perfil étnico e do seu caráter nacional, se transforma numa interrogação estelar".
Livro difícil, único, que provocou e provoca ainda críticas divergentes, verdadeiro escândalo literário, um autêntico divisor de águas do modernismo, e que representa o melhor momento da obra de Mário - quando ainda as mesquinhas miudezas da política não o haviam atingido, nem fragmentado sua atividade criadora. Momento de integridade, de afirmação, Macunaíma é basicamente uma grande gargalhada, provocadora, instigante, que repercute até hoje ainda, com enorme felicidade, com aquela segurança interior que só os grandes artistas conseguem assumir.
Conheci Mário de Andrade
O fato de Mário de Andrade ter morrido precocemente, aos 52 anos, despovoa nosso cenário cultural de pessoas que poderiam tê-lo conhecido bem, acompanhado seu trabalho, sua atuação intelectual e social. Um desses privilegiados é Maurício Loureiro Gama, hoje com 86 anos, o jornalista responsável pela revista Problemas Brasileiros.
Jovem ainda, em 1936, Maurício fez concurso e foi nomeado funcionário do recém-criado Departamento de Cultura, do qual Mário de Andrade foi o primeiro diretor. Revela Maurício: "A idéia da criação do Departamento de Cultura nasceu no apartamento de Paulo Duarte, onde se reuniam quase todas as noites escritores e jornalistas, entre outros Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Antônio de Alcântara Machado e Guilherme de Almeida. Em 1934, a idéia foi levada ao novo prefeito da capital, Fábio Prado, que aceitou o alvitre de Paulo Duarte com entu-siasmo. A gestão de Mário foi relativamente curta, mas importantíssima, pois lançou a base para várias instituições que permanecem até hoje. O afastamento do cargo pelo prefeito Prestes Maia causou-lhe tamanho desgosto que sempre se disse que isso causou sua morte, não sei".
Maurício revela também que certa vez Mário de Andrade teve séria desinteligência com Assis Chateaubriand. Por ocasião da inauguração dos painéis de Portinari na sede da Rádio Tupi, Chateaubriand incumbiu Maurício de elaborar a lista oficial de convidados e, ao ver o nome de Mário de Andrade em primeiro lugar, bufou. "Esse, não... Ele traiu os Diários Associados, abandonando-nos para ingressar na Folha..." Pura ciumeira. Na verdade, tinha acontecido um mal-entendido. Mário deixara de escrever no "Diário de S. Paulo" por culpa de um secretário negligente, que havia adiado para o dia de São Nunca a edição da notável série de ensaios sobre o filme Fantasia. Chateaubriand soube da verdade e teve a grandeza de pedir desculpas a Mário de Andrade.
O assessor de Chateaubriand em matéria de artes plásticas era Pietro Maria Bardi. Mário de Andrade, porém, era autoridade no assunto. Após sua demissão do Departamento de Cultura, foi chamado pelo ministro Gustavo Capanema, por sugestão de Carlos Drummond de Andrade. Trabalhou intensamente no projeto da primeira enciclopédia brasileira, obra infelizmente inacabada.
No Rio de Janeiro, Mário não se sentia bem. No pequeno estudo intitulado "Sociologia do botão", ele exprime sua angústia existencial naqueles dias em que respirava os ares da Guanabara. Mas deixou artigos memoráveis no "Diário de Notícias".
Mário de Andrade sempre foi um pé-de-boi, um profissional incansável. Além de dar aulas particulares, lecionava no Conservatório Dramático e Musical e colaborava em vários jornais, de São Paulo e do Rio de Janeiro.
"Dele guardo uma lembrança inesquecível: o livro de crônicas intitulado Histórias da Candinha, que dedicou a mim e a Fernando Góis. Quanto às suas paixões e labirintos afetivos, Mário levou para o Cemitério da Consolação alguns mistérios. Sempre foi muito reservado, tímido, conservou-se solteiro toda a vida. Dizem, no entanto, que teve forte paixão por Maria da Glória Capote Valente. Sem contar a bela amizade-namoro que manteve a vida toda com a pintora Anita Malfatti", relata Maurício.
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