Postado em 04/05/2005
Necessidades internas x possibilidades externas
CELSO LAFER
|
O professor Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, esteve presente no dia 9 de março de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre a política externa brasileira.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu à exposição pode ser lido na edição impressa da revista.
A política externa é uma política pública, como a da saúde, a monetária, a de transportes. E foi o processo de globalização que tornou mais clara do que no passado essa dimensão, porque há uma diluição entre o interno e o externo. Vivemos hoje num mundo em que a importância crescente dos fluxos e das redes reduz a relevância que os territórios e as fronteiras tinham anteriormente. Como conseqüência, a política interna e a externa se tornam, se não indivisíveis, porosas, pois o mundo se internaliza na vida dos países. Isso ficou muito claro, por exemplo, na minha experiência de chanceler, na questão da vaca louca, quando o Canadá impôs restrições ao Brasil para a exportação de carne e houve um desdobramento porque os canadenses eram os responsáveis naquele momento pelo Nafta [Acordo de Livre Comércio da América do Norte]. Como resultado, o problema afetou nossas exportações não só para o Canadá como também para os Estados Unidos e o México. Era uma medida discricionária, pois essa doença não existia no Brasil, mas ficou muito clara, em função do seu impacto para o agronegócio, a indivisibilidade entre a política interna e a externa.
A política externa como política pública tem como objetivo traduzir necessidades internas em possibilidades externas. E o desafio no processo de elaboração dessa política é duplo: definir o que são necessidades internas e, ao mesmo tempo, avaliar as possibilidades externas. No trato destas últimas, é evidente que cabe um exame da dinâmica de funcionamento do sistema internacional, nos seus três grandes campos: o estratégico-militar, que é sempre a situação limite – da paz e da guerra –; o econômico, que é o tema dos mercados, dos investimentos e dos financiamentos, e o dos valores, que envolve afinidades e discrepâncias políticas, diferenças e convergências culturais, entendimentos e desentendimentos. Na análise desses três campos a perspectiva organizadora é a de como funciona o mundo na ótica de um país, pois o mundo é plural e diverso e são distintas as visões dos Estados e das sociedades sobre o contexto em que estão inseridos.
Antes de entrar no quadro atual, gostaria de fazer uma distinção entre controvérsias e tensões, na linha do grande internacionalista belga Charles de Visscher. Diz ele: "As controvérsias são específicas, têm um objeto definido e são passíveis de encaminhamento pela razoabilidade da lógica jurídica e diplomática. As tensões são difusas, envolvem conflitos de concepção, têm um objeto impreciso e por isso são menos redutíveis à razoabilidade de uma lógica diplomática jurídica". Se me permitem uma comparação muito simples, quando um casal está com dificuldades de relacionamento, normalmente o que está ocorrendo é uma tensão, não uma controvérsia, que é específica.
Desde o término do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2002, há no mundo uma multiplicação de tensões. Existe em primeiro lugar uma grande tensão de hegemonia, fruto do unilateralismo dos Estados Unidos, da qual a Guerra do Iraque é o exemplo mais claro. Existem tensões provenientes do solipsismo da razão terrorista, que geram um problema de insegurança coletiva generalizada, não circunscrito a regiões, pois é mundial. No campo dos valores há, por assim dizer, para usar uma frase de Octavio Paz, uma sublevação dos particularismos. Existe também o movimento antiglobalização, representativo de uma crítica ao papel dos mercados e à sua força centrípeta.
Há, para continuar, tensões derivadas de conflitos étnicos, por exemplo, no Sudão, e xenofobia na Europa. Há tensões étnicas nas repúblicas do Pacífico, com impacto no funcionamento dos sistemas políticos regionais. A eleição de Evo Morales na Bolívia é uma expressão desse tipo de tensão. Há tensões de fronteiras, por exemplo, aquelas entre Bolívia, Peru e Chile, fruto da Guerra do Pacífico, que gerou a mediterraneidade da Bolívia. A conclusão é que o sistema internacional atual é heterogêneo. O homogêneo, a expectativa de um mundo baseado em consensos mais gerais, que era a expectativa depois da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, não se materializou.
Até aqui fizemos uma avaliação política. Ela é mais pessimista do que a que prepondera entre os analistas econômico-financeiros, que têm uma visão mais otimista das tendências de longo prazo da economia mundial, baseados no desempenho dos países, e também no fato de que não ocorreram recentemente, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, crises epidêmicas de natureza financeira, que afetaram as economias emergentes e marcaram o governo de Fernando Henrique, começando pela crise do México. Nesse sentido, os cenários positivos beneficiaram de forma indiscutível o governo Lula.
Mas o que se deve realçar para fechar a análise de possibilidades externas é que existe a fragilidade de uma vontade comum política de estabilidade na vida mundial. E que há, portanto, uma dialética de complementaridade entre persuasão e subversão, que abre espaço não apenas para o inconformismo dos protestos, mas também para a força e a violência. Esse é um horizonte de imprevisibilidade, dentro do qual nós, como país, nos movemos. É claro que nos movemos a partir de uma localização geográfica onde esses temas são menos agudos, mas no mundo globalizado tudo se espalha e não há a possibilidade de isolamento.
Vejamos as necessidades internas. Certos fatores condicionam a condução da política externa de um país, explicam seus componentes de continuidade e dizem respeito a certas regularidades de sua inserção internacional. Por exemplo, no caso do Brasil, a localização na América do Sul. O dado geográfico é muito importante, pois, no nosso caso, existe menor proximidade dos focos de tensões internacionais. O Brasil é um país continental, como a Índia, China, Estados Unidos, Rússia. Tem, portanto, um diferencial de escala em relação a outros, e esse é um dado de mercado também. A unidade lingüística é algo que igualmente nos diferencia de países de escala continental como a Índia. Outro fator é o imperativo de cultivar o relacionamento com os muitos países vizinhos da América do Sul que são o nosso entorno. Esse imperativo não é invenção do governo atual nem do anterior. O visconde de Uruguai, que foi chanceler em 1850, delineou com muita clareza, no século 19, a relevância do relacionamento com os países do Prata e com as repúblicas do Pacífico, em relação aos quais buscou uma aproximação com propostas de comércio e navegação, esta última podendo ser compreendida como o que hoje se denomina infra-estrutura. No século 20, desde que o barão do Rio Branco definiu as fronteiras do país, a idéia de trabalhar em que medida o mundo viabiliza e complementa nosso desenvolvimento converteu-se num fio condutor da política externa como uma política pública.
Esses fatores, no entanto, não explicam na sua inteireza as necessidades internas. Uma das características das relações internacionais em geral, como explica Raymond Aron, um grande estudioso dessa temática, é a pluralidade dinâmica dos objetivos concretos da política externa. São eles que podem dar, dependendo das circunstâncias, maior ou menor ênfase à segurança, ao desenvolvimento, ao bem-estar, ao prestígio, à afirmação de idéias. A definição da necessidade interna e de interesse nacional, portanto, não é algo unívoco. Vejamos alguns exemplos históricos. A Alemanha nazista definiu a expansão como seu interesse nacional. Os ingleses definiram, na época, o interesse nacional como a sobrevivência baseada em autonomia. A França de Pétain entendeu que a sobrevivência seria alcançada pela colaboração com o ocupador. Exemplos mais contemporâneos: a mudança de regimes políticos em outros países é prioridade no governo George W. Bush, não o foi no governo Bill Clinton. A afirmação regional de uma revolução bolivariana é o objetivo maior de Hugo Chávez, não foi o de administrações venezuelanas anteriores. A nuclearização militar é a meta atual do governo do Irã. Não o foi, pelo menos ostensivamente, na presidência anterior, de Mohammed Khatami, que propunha o diálogo entre as civilizações. Esses elementos explicam como a definição das necessidades internas é sempre um tema plurívoco.
Na formulação e na execução de uma política externa, ou seja, na tradução de necessidades internas em possibilidades externas, é preciso evitar dois riscos opostos. O primeiro é o de não levar em conta o que o país representa para os outros, porque isso leva à inércia e ao conformismo. O outro, igualmente importante, é o de superestimar o próprio país e o que ele significa para os outros, pois isso deságua na inconseqüência e por vezes na insensatez. Um exemplo histórico é a intervenção anglo-francesa em 1956 para retomar o Canal de Suez, que foi uma avaliação errada do poder que França e Inglaterra tinham depois da Segunda Guerra Mundial. Daí o recuo e também o início da construção européia, que começou em 1957 com o Tratado de Roma, com a percepção de que caminhos antigos não podiam mais ser trilhados e era preciso encontrar novas saídas.
Minha crítica à política externa do governo Lula é a de que não definiu apropriadamente as necessidades internas e não avalia corretamente as possibilidades externas. Dizia Pierre Mendès France, grande estadista francês, que governar é escolher, é estabelecer prioridades. São essas escolhas, algumas por excesso e outras por falta, que caracterizam a política externa do governo Lula como uma política pública, o que me proponho discutir nesta exposição. Pela Constituição, pela natureza do presidencialismo brasileiro, a condução da política externa é responsabilidade do presidente da República, e ele a exerce de acordo com as características da sua liderança e da sua personalidade. Para dar alguns exemplos, Getúlio Vargas conduziu a política externa de uma maneira diferente de Juscelino Kubitschek, e foram dois presidentes que tiveram papel relevante na orientação da política externa. Jânio Quadros e Ernesto Geisel tinham maneiras de agir nessa área distintas, que resultavam das características das respectivas personalidades. Juscelino dizia: o vitorioso não muda de método. Este é fruto da experiência e da maneira de ser, e nos oferece aquilo que os americanos chamam rules of thumb – regras básicas –, para lidar com excesso de informação na definição de uma situação. Naturalmente, associa-se conhecimento e emoção. Por exemplo, o presidente Fernando Henrique, como sociólogo, sempre buscou identificar tendências e aproveitar a boa compreensão dessas tendências em benefício do Brasil, propiciando o que ele, na sua gestão, chamava de autonomia pela participação no sistema internacional. É um método que deu certo.
A experiência do presidente Lula é a do sindicalista bem-sucedido, que é uma combinação de intuição, confiança e capacidade de relacionamento, associada também ao simbolismo daquilo que representou primeiro no movimento sindical, como algo novo, e depois na vida política com a idéia de uma democracia de inclusão social. Do sindicalismo e da maneira pela qual conduziu sua atuação sindical veio o pragmatismo. A partir de sua experiência sindical, o presidente aceita o pragmático, reconhece as relações de força, estica mas recua, pois sua vida está marcada por essa experiência. Por outro lado, esse pragmatismo é concomitantemente acompanhado por uma visão de mundo como uma interação capital-trabalho, que é a experiência dele e é a maneira pela qual lidou com as coisas. Qual é a conseqüência? A analogia capital-trabalho oferece naturalmente uma aproximação com o tema da relação norte-sul, e isso encontrou ressonância no Itamaraty, em figuras como o secretário-geral atual Samuel Pinheiro Guimarães, que tem do mundo uma visão não pragmática, mas ideológica da relação norte-sul. Isso abriu espaço, por exemplo, para o assessor diplomático do presidente da República, Marco Aurélio Garcia, atuar com base na sua experiência, que era a da condução da política externa do PT [Partido dos Trabalhadores]. Conduzir essa política partidária significa buscar afinidades e contatos com partidos que eram like minded, com os movimentos sociais de esquerda, enfim, com los de abajo. Em síntese, simplificando, seguindo a linha que conceitualmente oferece Le Monde Diplomatique. Isso tudo deu ao chanceler Celso Amorim a possibilidade de reavivar com ímpeto "lulista" seu passado terceiro-mundista, qualificando o presidente como "nosso guia". Daí uma visão de sua responsabilidade como chanceler mais partidária do que voltada para a qualidade do Itamaraty como instituição de Estado, dotada de autoridade.
No tema das possibilidades externas, uma das características da presidência de Lula é um certo voluntarismo. Por exemplo, vamos mudar a geografia econômica comercial do mundo, que é um tema no qual o presidente insiste com muita freqüência. O Brasil é um país que tem peso no plano mundial, que pode ter atuação, mas dificilmente poderá mudar a geografia econômica comercial. Isso é um bom exemplo do voluntarismo que superestima o potencial de atuação do país. O mesmo se pode dizer do tema das parcerias com a China e com a Índia, que não foram uma inovação deste governo, são importantes, mas circunscritas. Circunscritas porque nem a China nem a Índia são hoje países terceiro-mundistas, segundo a visão do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ou seja, não têm do mundo a visão das polaridades leste-oeste e norte-sul de antes do fim da Guerra Fria. Há possibilidades importantes de entendimento e de aproximação com a China e com a Índia, mas não a de reorganização da ordem mundial a partir de outro foco. Aí também há uma avaliação equivocada da maneira pela qual as coisas se colocam.
Em função de necessidades políticas internas, o governo do presidente Lula colocou com muita clareza, num primeiro momento, o tema da ruptura com a política externa do presidente Fernando Henrique Cardoso, ou seja, a idéia de que a administração petista ia inaugurar um marco zero da diplomacia brasileira. Quais as razões internas dessa ruptura? A primeira delas foi a de dar uma satisfação ideológica ao PT e às bases que sempre apoiaram o presidente Lula, ou seja, compensar a ortodoxia da política econômico-financeira que o governo seguiu. Não é muito diferente do que fez o presidente Jânio Quadros, quando adotou a retórica de uma política externa muito distinta da do presidente Juscelino Kubitschek, seguindo uma política econômica ortodoxa com Clemente Mariani no Ministério da Fazenda. Há aí um certo paralelismo. Como o PT e todos os que faziam parte daquele grupo de adeptos de Lula eram críticos da "ortodoxia econômica", uma boa oportunidade para mostrar que o governo não era o da "herança maldita" consistia numa política externa claramente diferente da do governo anterior.
Há riscos em se fazer política externa olhando só a política interna. O exemplo mais claro hoje é o do governo Bush e dos problemas que está enfrentando, com o aproveitamento político da situação gerada pelos ataques terroristas e a exacerbação de uma doutrina de segurança nacional. Um exemplo mais óbvio vem da Argentina, onde os militares invadiram as Malvinas para obter respaldo interno, com conseqüências muito sérias. A afirmação feita pelo governo Lula de um marco zero na diplomacia brasileira, representativo de uma nova ordem, que tudo mudou, almejava dar uma satisfação ideológica interna para os que tinham na cabeça, como modelo latente, a relação Rússia soviética/czarista, ou seja, algo completamente novo.
Há conseqüências disso para o Itamaraty no plano interno. A primeira é a de diminuir seu papel como instituição de Estado e aumentar sua tarefa como linha auxiliar do partido de governo. Quando o ministro Celso Amorim diz que um dos critérios para a indicação de cargos de confiança é o entusiasmo pelas políticas do governo, trata-se de uma politização na condução da política externa que compromete a idéia do Itamaraty como instituição de Estado. As leituras obrigatórias a que o secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães submete os diplomatas são altamente discutíveis. Se ele incluísse Hobbes, o barão do Rio Branco, autores dessa envergadura, tudo bem, mas arrola nomes e obras que me dispenso de citar, cuja relevância intelectual é bastante apoucada e que são apenas a expressão do patrulhamento ideológico que exerce na administração do ministério.
É evidente que o presidente Lula tem a seu favor, na condução da política externa, o simbolismo de sua biografia como expressão de uma democracia de inclusão social. Isso era um ativo diplomático e foi aproveitado, assim como a esperança gerada, acompanhada ao mesmo tempo pelo cuidado e pragmatismo na condução da política econômica. Como se sabe, a política é o enlace entre as forças pessoais e o bom e o mau dos sentimentos humanos, os altos e baixos, as paixões, o ciúme, o ressentimento. É claro que também havia, por parte do presidente Lula e de seus colaboradores, um desejo micropolítico muito claro: se o presidente Fernando Henrique achava que, por ser sociólogo, por falar línguas, por ter tais habilidades, foi um grande expoente de diplomacia presidencial, vamos mostrar que somos capazes de fazer uma diplomacia atuante, inteligente, melhor ainda do que a dele.
Naturalmente, decorrido um certo tempo, sempre há o confronto com a realidade. Um inventário das realizações da política externa do governo Lula no último ano deste seu mandato fez com que as críticas passassem a se tornar mais generalizadas. É a opinião pública exercendo sua natural função de controle democrático e não, como alguns defensores do governo chamam, uma conspiração da mídia, das elites ou da oposição. Propondo uma espécie de auditoria por amostragem de alguns temas diplomáticos que superavaliaram possibilidades do país, eu mencionaria os seguintes. Primeiro, há uma diluição do tema do combate à fome no plano internacional. O presidente começou dizendo que ia ser o responsável por acabar com a fome nos planos nacional e mundial e que tinha legitimidade para isso, e que ia mobilizar a sociedade internacional para uma política de combate à fome na vida mundial. Creio que isso está perfeitamente diluído nas estruturas usuais do Projeto do Milênio, da ONU [Organização das Nações Unidas].
Um segundo exemplo de malogro foi a reivindicação mal-sucedida na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], em que o Brasil queria a secretaria geral. A Cepal é um órgão da ONU que tem papel importante na formulação de idéias socioeconômicas para a América Latina. Como o governo pretende exercer uma influência externa relevante na região, não era uma coisa fora de propósito. Não deu certo. Terceiro exemplo, o Brasil também não teve sucesso na candidatura à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento [BID]. Trata-se de um banco importante de investimento em infra-estrutura na região latino-americana. Portanto, para um país que naturalmente tem uma preocupação em relação à região, perder a presidência do BID é um malogro diplomático, ainda mais porque o presidente anterior foi Enrique Iglesias, do Uruguai, antes dele Ortiz Mena, do México, que sucedeu ao chileno Felipe Herrera. Seria natural uma presidência brasileira.
Outro exemplo foi a derrota na Organização Mundial do Comércio [OMC], onde um candidato de primeira qualidade para a direção geral, embaixador Seixas Corrêa, não teve sucesso. Não teve sucesso, apesar de uma campanha bem-conduzida, por falta de respaldo latino-americano que o governo Lula sempre afirmou ter. Mais um exemplo: a custosa e infrutífera campanha para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, transformada numa prioridade e concebida como uma política de prestígio e de poder. O tema no governo Fernando Henrique Cardoso era que, se houvesse uma mudança no Conselho de Segurança, com novos membros permanentes, o Brasil deveria estar entre eles. Essa era a nossa concepção de prioridade. Na América Latina a campanha da diplomacia de Lula para um assento permanente no Conselho de Segurança provoca uma tensão clara com a Argentina e o México. É evidente, pois todos os países candidatos enfrentam problemas na própria região. A Alemanha com a Itália, o Japão com a China, a Índia com o Paquistão. No continente africano, todos os países com todos. Então é evidente que teríamos problemas, como temos, que derivam de uma avaliação imprecisa das nossas possibilidades.
A missão do Brasil no Haiti suscita várias dúvidas na opinião pública. Ela, naturalmente, dá ao chanceler Celso Amorim a oportunidade de uma interlocução privilegiada com a secretária de Estado Condoleezza Rice, serve de contato nesse plano. Mas me pergunto se atende às necessidades internas. E, naturalmente, puxando a brasa para a minha sardinha, diria que a atuação do Brasil no governo de Fernando Henrique Cardoso no Timor Leste foi muito mais bem-sucedida, porque teve apoio da opinião pública, foi vista com simpatia e, além do engajamento militar, contemplou também o nation building, quer dizer, teve programa de alfabetização, de assistência hospitalar, de organização judiciária e assim sucessivamente.
Ainda outro exemplo: houve clara politização na cúpula América do Sul e Países Árabes. Era evidente que essa reunião teria uma politização natural. O caminho óbvio para aspirações econômicas era começar com a reunião de ministros de comércio exterior e de relações exteriores e depois ir construindo o relacionamento. Mas quando se chamam chanceleres, presidentes, chefes de governo, sem um trabalho prévio, acaba-se em generalizações e também em considerações de natureza política.
Houve recuos nessa aproximação, por conta da campanha para o Conselho de Segurança, na área de meio ambiente e também na de direitos humanos. Finalmente, penso também que a extensão excessiva da política africana é uma forma de estender demais as linhas e de não estabelecer prioridades. É claro que o Brasil deve definir uma política africana. O presidente Fernando Henrique traçou algumas linhas: África do Sul, Angola e Moçambique, os países da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], Nigéria, etc. Se não se definem as coisas, não se define nada, e essa é a sensação que tenho.
Há um livro de Joaquim Nabuco, Balmaceda, em que avalia as conseqüências da crise política no Chile no final do século 19, que levaram à renúncia e posteriormente ao suicídio do presidente Balmaceda. A obra é uma antecipadora análise dos temas de governabilidade, da relação Executivo-Legislativo, da humilhação das massas, etc., na qual também examina o tema da boa governança e procura estabelecer critérios para medir o valor de um chefe de Estado. Como se faz isso? Não é por suas qualidades pessoais, nem pela biografia. Nabuco diz: coragem não faltava a Solano López, mas não sei se devo medi-lo só por essa qualidade. O que permite mensurar o valor de um chefe de Estado, diz ele, é comparar a situação em que recebeu o país e como o deixou, uma coisa objetiva que é válido lembrar.
O presidente Lula recebeu do governo de Fernando Henrique Cardoso, no caso do Itamaraty, a preocupação e o empenho do reforço da competência técnico-negociadora do ministério, com a criação de uma estrutura matricial da área econômica, que dava oportunidade para que, por exemplo, aquele que tratasse de regras de origem numa negociação também pudesse tratar das mesmas regras em outra, aquele que tratasse de barreiras não-tarifárias ou de medidas zoofitossanitárias idem, porque todos esses temas, se têm sua peculiaridade em cada negociação, têm uma grande afinidade, e amplia-se o repertório de soluções e problemas tratando disso tudo matricialmente. Daí a visão de conjunto de todas as negociações comerciais em andamento na presidência FHC. Havia uma abertura para o setor privado, em especial, além de vários grupos, a Coalizão Empresarial, aberta a todos os setores, que tinha gente qualificada e era uma interlocução importante do governo. Havia discussão ampla de temas, transparência, preocupação com a opinião pública.
Qual é a situação atual? Começando pela Camex [Câmara de Comércio Exterior], ela hoje está inoperante, porque as tensões derivam de conflitos de concepção. Agricultura, Desenvolvimento e Fazenda têm uma visão das coisas que não é a do Itamaraty, pois este ideologizou parte das negociações comerciais, impedindo uma negociação intra-governo em torno do natural pluralismo de distintas visões e interesses. Os ministérios têm seus interesses, isso é natural porque respondem a várias preocupações e "clientelas". Mas, hoje, não é esse tipo de conflito que surge, que tem a natureza de controvérsia.
No plano interno do Itamaraty, deixou de funcionar a estrutura matricial e não há visão de conjunto. Essa carência promove deliberadamente a ideologização, ou seja, a contaminação política de algumas negociações comerciais. As coisas continuam funcionando bem no âmbito da OMC. Há naturalmente mudanças, mas dentro da continuidade. O G-20 representou uma originalidade, é uma coisa boa. É fruto do recuo do Grupo de Cairns, trouxe uma alteração do processo decisório, ou seja, do local onde se constrói o consenso na OMC. É claro que ela foi possibilitada pelo ingresso da China na OMC, situação que não existia na Rodada Doha. Lembro porém que o desafio diplomático de manter o G-20 unido é muito grande, porque nós, como país, temos interesses ofensivos em matéria de agricultura, os chineses os têm em indústria, e a Índia em serviços. Não são interesses necessariamente coincidentes, e é importante encontrar um ponto de equilíbrio.
A Alca [Área de Livre Comércio das Américas] é um tema curioso. Antes a posição do PT era de que ela significava anexação aos Estados Unidos e devia ser recusada. Quando assumiu, o Itamaraty do governo Lula separou a Alca do conjunto das outras negociações, entregou-a a pessoas menos versadas nos temas comerciais, indicando que deveriam exercer um papel político. Houve também mudança na maneira de concebê-la. A idéia anterior era de que é tudo negociado em conjunto, nada está acordado a não ser que tudo esteja acordado na linha de um single undertaking. Numa reunião em Miami, mudou-se essa concepção e se estabeleceu algo parecido com o que havia no Gatt [Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio], na Rodada Tóquio, antes da OMC: uma espécie de Alca à la carte, com um conjunto básico de regras e depois cada país negociando o que lhe fosse conveniente. O resultado é que os Estados Unidos estão negociando seus acordos com a América Central, com o Chile, com a Colômbia, etc. Há um editorial recente de "O Estado de S. Paulo" que dá conta de como os Estados Unidos estão construindo a Alca ao seu modo, que representará para nós problemas de acesso a mercados relevantes.
A negociação União Européia-Mercosul está em compasso de espera, primeiro por conta dos problemas da Europa, que não são pequenos, e também porque os europeus não têm neste momento o acicate competitivo negociador, por conta da paralisia da negociação da Alca. A preocupação dos europeus era: se os norte-americanos terão acesso ao mercado privilegiado do Mercosul, precisamos ter esse mesmo tipo de acesso. No momento em que essa ameaça não é real, reduz-se o interesse.
Quanto ao Mercosul, lembro que, nas suas origens e pressupostos, baseava-se, primeiro, na idéia da vizinhança, segundo, na conectividade econômica e, terceiro, na valorização da lógica da integração em contraposição a uma lógica de fragmentação entre países vizinhos. Subseqüentemente veio a idéia da promoção da inserção competitiva das economias num mundo que ao mesmo tempo se globalizava e se regionalizava. O Tratado de Assunção antecede o término das negociações que levaram à OMC; baseia-se numa união aduaneira que levaria a um mercado comum, com previsão de coordenação de políticas macroeconômicas. O tema da cláusula democrática também estava presente, acompanhada da tutela dos direitos humanos. Por isso um Mercosul com esse conjunto de características tem também a dimensão de um bem público internacional.
O Mercosul hoje não está em seu melhor momento. A incorporação em andamento da Venezuela não tem a lógica da vizinhança para os demais países, pois é vizinha nossa mas não deles. Além disso, o país, na presidência Chávez, tem uma concepção do mundo que é a revolução bolivariana, voltada para o conflito generalizado em relação aos Estados Unidos. Observo que, em reunião recente em Buenos Aires, o chanceler Miguel Ángel Moratinos, da Espanha, falou da importância das negociações, inclusive as da União Européia e Mercosul. Naturalmente, deu a visão européia do mundo, e uma das coisas que mencionou foi a preocupação com a nuclearização do Irã. O embaixador da Venezuela levantou-se, declarou que não estava de acordo, porque o seu país tinha com o Irã uma relação de aliança fraternal e que, portanto, não podia aceitar esse tipo de preocupação, e saiu da reunião. Essa manifestação coloca também o tema da credibilidade e consistência externa do Mercosul. O Mercosul era visto como união aduaneira, cooperação econômica, democracia, paz, direitos humanos, etc. Para os europeus, algo próximo à própria concepção da União Européia, só que mais lento, mais complicado, mas, enfim, Roma não foi feita num dia. Um dado como a posição venezuelana complica a credibilidade. Outro exemplo: há um conflito Uruguai-Argentina sobre a construção de fábricas de papel e celulose, derivado da poluição das águas do compartilhado rio Uruguai. A estratégia argentina parece ser a de recorrer à Corte Internacional de Haia, o que mostra a dificuldade de resolver o contencioso no âmbito do Mercosul.
As salvaguardas negociadas entre Argentina e Brasil colocam em risco a estabilidade das regras do jogo, e a negociação entre os dois países sem a participação do Uruguai e do Paraguai já gerou naturais tensões dentro da região. Noto também em amplos setores do Brasil um cansaço com a tese da paciência estratégica com os argentinos. Não custa lembrar que a situação do câmbio hoje dificulta nossas exportações, não é a mesma que existia em 1999, quando os argentinos levantaram a bandeira das salvaguardas. Naquela época, o tema cambial tinha uma dimensão objetiva, e hoje tem um sinal inteiramente oposto. Há também um aspecto de fragmentação, como o interesse uruguaio em negociações individuais com os Estados Unidos, e o do Paraguai numa aproximação em matéria de segurança. A conclusão é que o Mercosul, em 2006, está mais precário do que ao término do governo FHC.
O Brasil, por iniciativa do presidente Fernando Henrique, fez a Cúpula de Brasília. Foi a primeira reunião de chefes de Estado e de governo da América do Sul. Depois houve uma outra em 2002 em Guayaquil. A idéia era a de fronteiras cooperação em lugar de fronteiras separação. Fazer a melhor economia da nossa geografia pela logística, pelos transportes, comunicações, infra-estrutura, temas de integração física. Havia um enorme cuidado com as sensibilidades dos vizinhos, havia o objetivo de uma negociação Mercosul-Comunidade Andina e a importância presente, para nós, da América do Sul como um todo, por conta da porosidade de nossas fronteiras e por conta do relacionamento dos estados membros da federação brasileira com os Estados vizinhos.
No caso da América do Sul, o governo Lula afirmou uma pretensão de liderança. Enfrentou dificuldades e a reação e a competição de outros países. Creio que há ambições excessivas, porque os Estados da região não estão à vontade com a proposta brasileira. Portanto, também em matéria de América do Sul creio que a situação em 2006 é mais precária do que a recebida do governo Fernando Henrique Cardoso. Em linhas gerais, este é o inventário crítico que faço da política externa do governo Lula.
![]() | |