Postado em 01/03/1999
Projeto divulgará documentos inéditos sobre os tempos da Colônia
RODRIGO ARCO E FLEXA
Permitir que o país reescreva a história de seu passado colonial. Esse é o ambicioso objetivo do Projeto Resgate, uma das mais importantes iniciativas no contexto das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil.
Criado pelo Ministério da Cultura, o programa compreende a organização, microfilmagem e publicação em CD-ROM de 250 mil peças documentais sobre o período colonial brasileiro que se encontram no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. A coleção representa cerca de 80% dos documentos concernentes ao país existentes no exterior.
Imprescindível ao estudo do Brasil Colônia, essa massa de papéis somente era acessível aos pesquisadores que dispunham de recursos para viajar até Portugal.
"O Projeto Resgate vai democratizar a pesquisa sobre o período colonial", afirma a professora Esther Caldas Bertoletti, coordenadora nacional da iniciativa. "Com a microfilmagem e o lançamento dos CDs, que estarão disponíveis em acervos públicos, qualquer historiador terá a possibilidade de consultar o material", diz. Além disso, informa a professora, o pesquisador também poderá se localizar rapidamente em meio a essa montanha de informação digitalizada, por intermédio de instrumentos como índices e resumos dos documentos.
O orçamento total do Projeto Resgate é de R$ 3 milhões. Aproximadamente 40% dessa verba foi disponibilizada pelo Ministério da Cultura. Os demais recursos foram obtidos de secretarias de estado e instituições de pesquisa, além de empresas e fundações privadas, entre elas a Vitae. Mais de 60 pesquisadores - historiadores, arquivistas e paleógrafos - brasileiros e portugueses foram mobilizados pelo projeto para realizar o levantamento e a catalogação do material em Lisboa.
Em janeiro, o Projeto Resgate já contabilizava mais de 120 mil documentos trazidos em cópias microfilmadas para o país. A previsão é que os trabalhos estejam finalizados até dezembro de 1999.
Criado em 1931, o Arquivo Histórico Ultramarino guarda a documentação sobre todas as colônias portuguesas, como Moçambique, Angola, Cabo Verde e ilha da Madeira.
A maior coleção, porém, compreende os documentos referentes a 20 capitanias brasileiras. São papéis que abrangem desde o regimento decretado em 1548 por Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral do país, até os últimos despachos emitidos pela administração portuguesa no Brasil.
Os papéis do Arquivo Histórico Ultramarino colocam em foco inúmeros aspectos da vida colonial brasileira: atos administrativos, ofícios, sesmarias, tratados, medidas judiciais, relatos de viagens, figurinos militares, códices de plantas e de animais. Embora muitos documentos já tenham sido estudados por especialistas, milhares de papéis nunca foram analisados.
"O historiador que trabalhava no arquivo não conseguia rastrear nem mesmo 30% da documentação da sua pesquisa. Ele apenas arranhava o arquivo", afirma José Jobson de Andrade Arruda, coordenador dos trabalhos referentes à capitania de São Paulo e professor titular de história moderna da USP.
Impacto acadêmico
É grande a expectativa sobre as possibilidades que serão abertas com o projeto. "As novas gerações terão um material de grande valor em suas mãos; afinal, não se faz um historiador sem documentos", diz Jobson.
Conforme a região do país, há casos em que 90% da documentação era desconhecida. Muitas vezes, grandes lacunas comprometiam o estudo de determinado período. "A continuidade de documentos permitirá ao historiador generalizar fatos ainda pouco investigados", atesta a especialista em arquivística Heloísa Bellotto, que trabalhou durante mais de seis meses em Lisboa com a documentação referente a São Paulo. "Agora, o pesquisador poderá puxar o fio da meada", diz a professora.
São inúmeras as questões que poderão passar por uma revisão histórica, como relações de trabalho, escravidão, comércio entre países, movimento dos jesuítas, bandeirantes e o papel da Igreja. Mesmo sendo oficial, a documentação também registra passagens do cotidiano colonial.
"Antigamente, o oficial e o oficioso eram muito interligados. Assim, os documentos trazem todo o sabor da história colonial, como aspectos da vida particular ou privilégios sociais", afirma Esther Bertoletti.
Os relatos da documentação, muitas vezes, se contrapõem às versões dominantes, como no caso do papel da mulher na sociedade colonial. "Encontrei documentos do Piauí que mostram uma mulher diferente daquela completamente submissa. Um dos papéis traz a acusação de um homem que teria sido abandonado por sua esposa, trocado por um mulato", diz Lourival Santana Santos, pesquisador que esteve em Lisboa trabalhando com documentos referentes a Sergipe, Bahia e Piauí.
Antigo sonho
A recuperação de documentos sobre o Brasil que se encontram no exterior é um sonho muito antigo. "Muitos historiadores já ansiavam por isso quando o Brasil se separou de Portugal", diz Esther Bertoletti. Os imperadores dom Pedro I e dom Pedro II foram grandes incentivadores da cópia desses documentos.
Nesse tempo, jovens intelectuais brasileiros eram enviados a Portugal com a missão, quase que impossível, de realizar cópias manuscritas dos papéis. "Claro que não era possível copiar nem 1% do arquivo", conta Esther.
Um dos mais célebres copiadores foi o poeta Gonçalves Dias, que viajou para a Europa no final da década de 1830. O escritor, no entanto, teria sucumbido ante o tamanho do desafio, como diz a lenda que se criou em torno do caso. "Gonçalves Dias teria escrito ao ministro das Relações Exteriores afirmando que não mais agüentava o trabalho e solicitando o envio de outra pessoa para dar continuidade à tarefa", diz Esther.
Outras iniciativas pontuais aconteceram durante o século 20. Uma das mais importantes foi realizada durante a comemoração do quarto centenário da cidade de São Paulo, em 1954. A comissão que organizava o evento contratou um funcionário para fazer o levantamento da documentação sobre São Paulo no Arquivo Histórico Ultramarino.
O resultado do trabalho, que compreendeu mais de 5 mil documentos, foi publicado em 15 volumes da "Revista do Instituto Histórico e Geográfico". Mesmo assim, milhares de registros deixaram de ser inventariados.
Em 1980, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) também deu a largada em um programa para a identificação dos documentos referentes a Minas Gerais que se encontravam em Lisboa. "Essa iniciativa foi uma experiência piloto para o Projeto Resgate", afirma Jobson Arruda.
Ano 2000
A partir do próximo ano, todo o material catalogado pelo Projeto Resgate estará acessível em CD-ROM. Cópias dos CDs serão distribuídas a universidades e órgãos de pesquisa de cada estado. Os microfilmes serão guardados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, além de arquivos dos estados.
O material também será comercializado. Os organizadores do projeto ainda pretendem disponibilizar a documentação na Internet. "Pretendemos organizar um grande banco de dados sobre os mais diversos aspectos do período colonial", afirma Esther. O balanço final dos trabalhos, por sua vez, acontecerá em 2000, durante um congresso internacional, programado para acontecer no Departamento de História da Universidade de São Paulo.
O Projeto Resgate, no entanto, ambiciona novos desafios. "Vamos dar continuidade ao trabalho em outros arquivos da Europa", diz Esther. Entre os acervos visados, estão a Torre do Tombo, também em Portugal, mais os arquivos da Espanha, Holanda e Itália, que guardam importantes documentos sobre a história brasileira.
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