Postado em 01/03/1999
Pequenos consumidores ampliam o mercado da construção civil
PAULO DE TARSO POMPEU
Leila é uma jovem e ativa dona de casa que reforça o orçamento doméstico fazendo costuras para vizinhos e conhecidos. Nesta semana ela trabalhou em dobro porque sábado e domingo, em vez de ficar costurando, vai ajudar o marido, Pedro, a construir a futura moradia do , em um terreno comprado depois de muita pesquisa perto de onde moram pagando aluguel, na periferia de São Paulo. Ela está bastante animada com a perspectiva da casa própria, a exemplo de Pedro, um motorista de ônibus que já foi pedreiro e domina os conhecimentos básicos sobre o assunto. Lá estará também o senhor Freitas, um experiente revendedor de material de construção que fez amizade com o casal e gosta de ajudar, transmitindo a Pedro e Leila tudo o que conhece sobre construção de casas populares.
Essa é, resumidamente, uma cena do programa "Mãos à obra", transmitido pela televisão desde setembro do ano passado, aos domingos e terças-feiras, pelo Canal Futura, da Fundação Roberto Marinho, cujo objetivo é ensinar ao público leigo como construir uma casa confortável e segura. A iniciativa resulta da constatação de que tem aumentado consideravelmente nos últimos anos a demanda de cimento e materiais de construção em geral por parte dos consumidores "formiga", aqueles que, dispondo de um terreno, decidem construir suas casas com as próprias mãos, fazendo, com isso, muita economia. Esse tipo de consumidor, em geral de baixa renda e confinado à periferia das grandes cidades, totaliza hoje um contingente de 10 milhões de pessoas. Transformou-se, assim, em um interessante mercado para as empresas do setor.
Foi com base nessas informações que a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) decidiu patrocinar o "Mãos à obra", em parceria com a Fundação Roberto Marinho e outras entidades e empresas do ramo. Para elaborar o conteúdo técnico do programa foram contratados os serviços do Núcleo de Pesquisa em Tecnologia de Arquitetura e Urbanismo (Nutau) da USP.
Os capítulos do "Mãos à obra" (30 no total) tratam das várias etapas da obra, desde a escolha do terreno. Tudo isso está contido, também, no manual Mãos à obra, elaborado pela ABCP e distribuído gratuitamente aos interessados.
Interessados que, por sinal, não faltam, tendo em vista a repercussão do programa na televisão, conforme Margarida Ramos, superintendente do Futura (um canal de TV por assinatura, e portanto de abrangência mais restrita), para quem a série gerou tantas consultas de telespectadores que se tornou necessário expandir sua área de alcance. Assim, foi assinado um convênio com a TV Globo, que desde o dia 19 de dezembro de 1998 passou a transmitir o "Mãos à obra" todos os sábados, a partir das sete e meia da manhã.
Na favela
Na opinião do professor Geraldo Serra, do Nutau, que coordenou uma extensa pesquisa (Tecnologia Usual na Autoconstrução) para nortear o desenvolvimento do programa, além de difundir as técnicas adequadas de construção o projeto exercerá um efeito multiplicador, auxiliando, também, todos aqueles que querem reformar suas casas. Ele cita como um importante reflexo social do programa o interesse demonstrado pela associação de moradores da favela Heliópolis, uma das maiores da capital paulista, em exibir a série para sua comunidade, com o acompanhamento de técnicos, visando a melhoria da qualidade das moradias locais. E lembra que de qualquer forma agora, com a transmissão do programa por canal aberto de televisão, grande parte da população terá acesso a essas orientações.
Endossando as palavras do professor da USP, Ronaldo Meyer, gerente de mercado da ABCP, afirma que, embora o objetivo inicial fosse atingir especificamente as classes de baixa renda, o programa está também despertando a atenção da classe média e já alcançou uma amplitude bem maior que a esperada. E não é muito difícil identificar a principal razão disso. Segundo ele, o metro quadrado de uma casa autoconstruí-da fica em torno de R$ 130, enquanto o valor sobe para aproximadamente R$ 300 quando se trata de uma casa pronta. De acordo com Meyer, seguindo os ensinamentos do "Mãos à obra" o autoconstrutor poderá evitar sérios problemas de salubridade e segurança na futura casa, além de eliminar o desperdício de materiais, pois aprenderá a racionalizar o trabalho. Ele faz questão de deixar claro, porém, que, como está expresso no manual de orientação distribuído pela ABCP, qualquer construção ou reforma exige a participação de um profissional habilitado, responsável pelo projeto e pela execução da obra. O melhor, aconselha, é que o autoconstrutor procure a prefeitura de sua cidade ou o Conselho Regional de Agronomia, Engenharia e Arquitetura (Crea) para obter mais informações.
Fins de semana
Como se sabe, a figura do autoconstrutor de moradias existe há muito tempo. São pessoas que, na maioria, com base em alguma experiência profissional (pedreiros, serventes), utilizam seus conhecimentos para construir ou reformar a própria casa, sacrificando fins de semana e horas do dia que seriam de folga. É o chamado consumo "formiga", que, longe de ser insignificante, absorve hoje mais da metade do cimento e de produtos acabados dessa matéria-prima aglomerante produzidos no país. A primeira pesquisa efetiva sobre o alcance da autoconstrução no Brasil foi feita em 1989, quando se apurou que 43% do cimento brasileiro era absorvido por esse tipo de consumidor, principalmente na periferia das grandes cidades. Outras pesquisas foram feitas no correr destes dez anos, e a mais recente comprova que a formiga tem trabalhado mais ativamente, pois o consumo de cimento dentro do canteiro de obras da autoconstrução totaliza atualmente 51% da produção nacional. Isso dentro do canteiro, porque fora dele, nas lojas do ramo, os autoconstrutores adquirem uma série de peças prontas à base de cimento, incluindo blocos, telhas, caixas-d'água, argamassa, postes de iluminação, etc., que correspondem a mais 9%, perfazendo 60% do consumo global.
De acordo com técnicos do setor, o crescimento ou encolhimento do mercado da autoconstrução está diretamente ligado à oferta de mora-dias populares. Assim é que, no período de funcionamento do Banco Nacional da Habitação (1965/85), foram financiados 4,5 milhões de imóveis. A partir da segunda metade da década de 80, quando o sistema financeiro parou de oferecer casas populares no Brasil, a fatia da autoconstrução, que era bem mais magra, foi ganhando espaço e chegou ao ponto em que está.
Para esse explosivo crescimento também muito colaborou a estabilização da moeda dos últimos anos. De acordo com a ABCP, após permanecer paralisado no patamar de 25 milhões de toneladas por ano de 1986 a meados de 1994, período no qual os níveis de inflação foram às alturas, em 1995 o consumo alcançou 28 milhões de toneladas, impulsionado pelo aquietamento dos preços. No ano seguinte, experimentou seu maior salto, para 34,5 milhões de toneladas (uma ampliação de 23%) e, em 1997, passou para 38 milhões de toneladas. No ano passado, quando muitos setores da economia apresentaram sinais de estagnação ou declínio, as vendas de cimento ainda cresceram cerca de 5%, totalizando 40 milhões de toneladas.
Para este ano, contudo, pela primeira vez desde a arrancada do Plano Real, a ABCP não prevê novos ganhos de produção e de vendas. A entidade reconhece que as dificuldades econômicas, principalmente as provocadas pela crise cambial, devem afetar as obras de infra-estrutura e do mercado imobiliário.
Mas apesar disso a entidade confia que as atividades de autoconstrução e reforma deverão continuar a responder por aproximadamente 60% do cimento consumido no país.
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