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Encontros

Postado em 01/10/2005

por Milton Hatoum

 

O escritor amazonense Milton Hatoum teve uma trajetória pouco comum. Formado em arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em literatura comparada pela Universidade de Paris-Sorbonne, na França, dedicou-se durante anos exclusivamente ao ensino de língua e literatura francesa na Universidade do Amazonas. Sua estréia como escritor, aos 38 anos, surpreendeu crítica e público. O romance Relato de um Certo Oriente (Companhia das Letras, 1989), ambientado em Manaus, sua cidade natal, recebeu o Prêmio Jabuti de melhor romance e teve grande repercussão internacional, sendo publicado em diversos países. Sua segunda obra demorou dez anos para chegar ao público. Dois Irmãos (Companhia das Letras, 2000) se tornaria outro sucesso e renderia mais um Jabuti. Em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, o escritor falou de seu trabalho, da relação livro e leitor e de como foi despertado para a literatura. A seguir, trechos.

 

Ler me deu vontade de escrever. Na primeira crônica que escrevi para a revista EntreLivros mencionei como surgiu na minha casa em Manaus a primeira coleção das obras completas de Machado de Assis (1839–1908). Foi comprada de um livreiro ambulante. Não que minha mãe fosse uma grande leitora, mas ela sempre me incentivou muito e queria ter aqueles livros em casa. Comecei a ler um livro de contos do Machado, Histórias da Meia-Noite, por causa do título – podia ter alguma coisa de terror, de mistério, mas não tinha nada disso. Mesmo assim, foram contos que adorei. Escrevia poesia, como todo jovem, e a vontade de escrever não parava. Mas, antes de começar, patinei muito. Contos meus escritos nos anos 70, por exemplo, eram imitações de outros escritores, e o resultado foi francamente ruim. Depois escrevi uma novelinha. Um amigo meu leu e gostou muito. Outro dia ele até me perguntou sobre “aquela novela dos anos 70”, como dizia. Eu a perdi nas minhas andanças – aliás, a cada mudança eu ia perdendo manuscritos. Eram contos muito verdes, imaturos. Não tinham nada de mim, da minha experiência. E o fundamental é transformar experiência em linguagem. Aqueles contos eram uma cópia mambembe de outros autores, quase um pastiche involuntário do que eu havia lido. Concluí que se quisesse continuar a escrever precisava encontrar o meu modo de narrar. Foram várias tentativas, durante muitos anos. Até que achei que tinha acertado no tom. E tom é uma coisa muito importante para quem escreve. É uma relação que se estabelece entre o enunciado e a enunciação. Ou seja, entre o narrador e a matéria narrada. Pode-se encontrar um tom irônico, jocoso, mais elevado, mais sério, ou coloquial. Enfim, o importante é encontrar um. É quase como se fosse música mesmo, um ritmo. O ritmo é essencial na poesia e na prosa. Quando escrevi Relato de um Certo Oriente, tentei encontrar o tom, no caso o de uma literatura memorialista, mais intimista. Uma narrativa movida pela memória, pela invenção de várias memórias.

 

 

Do que um escritor precisa

Antes de publicar meu primeiro romance, fiz questão de ler alguns dos autores mais importantes. Quando estudava em Brasília, li um pouco de Franz Kafka (1883-1924), de Jean-Paul Sartre (1905-1980), de autores brasileiros. E em São Paulo, quando estudava na FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], freqüentei também cursos de literatura na USP. Tive aulas com o João Alexandre Barbosa, com a Leyla Perrone-Moisés, com a Irlemar Chiampi, com Davi Arrigucci Jr., que assinou a orelha do Relato. Enfim, grandes professores, que me orientaram com sugestões de leitura, o que é importante. O bom professor é aquele que também te orienta na leitura. São escolhas que dependem muito da orientação. Por isso demorei a escrever um romance, eu achava que só podia escrevê-lo depois de ler uma pequena biblioteca – o que era um meio absurdo, um exagero. Mas eu queria saber quem eram esses escritores. Às vezes, até hoje, penso se vale a pena escrever depois de Marcel Proust (1871-1922), de Machado, de Guimarães Rosa (1908-1967), de Graciliano Ramos (1892-1953). Talvez por isso eu escreva pouco, não publique muitos livros. Não acho que o escritor deva ter uma formação teórica em literatura, mas ele precisa ler bons livros. A maior aula sobre o romance é a leitura inteligente de um bom romance. E é claro que facilita se você tiver uma boa orientação, a ajuda de um amigo, de um grande leitor ou professor. Mas os escritores geralmente vão descobrindo essas estratégias narrativas. E a prática mesmo da escrita revela coisas ao escritor que ele não sabia. Como fui professor durante 15 anos, tive também de me empenhar na leitura de livros teóricos. Hoje em dia leio mais livros de literatura e história.

 

 

Perguntas assustadoras

Se existe um casamento eterno, um casal inseparável, é o da escrita com a leitura. Não dá para escrever sem ler. Quando lemos um livro, na verdade estamos também “reescrevendo” esse livro. O leitor pode imaginar coisas que às vezes não foram pensadas pelo escritor. Já ouvi perguntas assustadoras de alguns leitores. A leitura crítica te dá uma dimensão do imaginário desse leitor exigente. Por isso ela é importante. E é isso o que fascina na literatura. Cada leitura é um livro que o autor não escreveu exatamente, mas que o leitor interpretou. Em Dois Irmãos isso foi muito claro. No livro, há uma mãe que escolhe um filho, se apaixona por ele e cria todo um drama familiar. O que eu recebi de mensagens de mães explicando seus problemas e perguntando o que fazer...

 

Todo escritor precisa de leitores. Até mesmo para julgar o livro. Não de uma forma depreciativa e baixa – isso é uma coisa que está num outro plano, fora da crítica –, mas para julgar do ponto de vista da interpretação. O desejo é o que move o escritor. E é o que move o leitor também. A pior coisa é ler por obrigação. É uma chatice que não aconselho a ninguém. Ou se é um leitor que gosta e vai atrás ou então é melhor nem ler. Ninguém é obrigado a ler uma biblioteca de clássicos. Numa família de leitores você encontra tudo: grandes leitores, mas também os que só gostam de best-sellers, pessoas que nunca vão ler, por exemplo, O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Isso é compreensível. Das artes, a literatura é uma das que mais exigem concentração e reflexão. De forma alguma dá para ler um livro como se assiste a um filme.

 

 

Desta geração

Gosto de alguns escritores jovens. Não li todos, não tenho tempo. É tanta coisa – vida doméstica, trabalho, leituras, escrita, viagens –, não dá para ler tudo. Mas acompanho o trabalho do Marcelino Freire [a Revista E publicou um conto de Marcelino Freire em novembro de 2004], e agora vou ler o livro novo dele [Contos Negreiros, Editora Record, 2005]. Li recentemente Dos Nervos, de Ricardo Lísias, um dos narradores mais talentosos de sua geração. Consigo acompanhar alguns escritores que já estão aí na batalha. Autores já com seus 30, 35, 40 anos – ou seja, não é exatamente uma garotada.

 

Não é fácil conseguir um espaço na mídia ou na universidade. Quando morava em Manaus nem pensava nisso, porque estava lá no meu auto-exílio, na minha cidade, distante de tudo. Na verdade, cada livro faz a própria história. Isso aconteceu com o Relato de um Certo Oriente, que fez sua trajetória de uma maneira lenta, conquistando leitores aqui e ali, nas escolas, universidades, e também fora delas. Mas lá em Manaus, às vezes, eu pensava que estava num outro mundo, quase num outro país, distante do leitor. Afinal, a maioria dos leitores está aqui no Sudeste. De fato, aqui em São Paulo estou mais perto dos leitores, posso falar diretamente com eles. De qualquer forma, sempre surgem coisas boas numa nova geração de escritores. Da quantidade sai a qualidade, sempre foi assim. Acho que já há livros consistentes, e nenhum é fruto de lances meramente espontâneos. O que é bom, porque não acredito em literatura “espontânea”. A pressa e a “arte espontânea” são pragas do nosso tempo – ao lado do cinismo e da hipocrisia. São coisas das quais fujo como o diabo foge da cruz. Quando digo “espontaneísmo”, me refiro a uma escrita oca, vazia, uma linguagem que não insinua nem expressa nenhum tipo de experiência do narrador, nenhum conflito amadurecido que a linguagem seja capaz de tornar convincente. Acho que um escritor que despreza a obra de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Osman Lins (1924-1978), Proust, Miguel de Cervantes (1547-1616), Gustave Flaubert (1821-1880), Charles Dickens (1812-1870), e outros clássicos, não vai longe. E, dos poucos livros que conheço desta geração, percebo que todos têm esse trabalho com a literatura.

 

O escritor Milton Hatoum esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 19 de agosto

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