O atual cinema latino-americano honra a tradição e coloca-se como alternativa à temática e à estética da produção hollywoodiana
Tradição não nos falta. A América Latina - sobretudo, Brasil, México, Argentina e Cuba - é, desde muito cedo, íntima da grande invenção do século 19, creditada aos irmãos Lumière. A aproximação ocorreu quando a linguagem dava os primeiros passos, "um ou dois anos depois da apresentação pública de grandes novidades no Boulevard des Capucines em Paris, em 1895", segundo escreve o cineasta Orlando Senna, atual secretário nacional do Audiovisual, no livro Cinema Latino-Americano - Entrevistas e Filmes, de Maria do Rosário Caetano (Editora Estação Liberdade, 1997). "Nas primeiras décadas do século, até os fins dos anos 30, uma indústria cinematográfica de pequeno porte vicejou no México, Argentina, Brasil e Cuba, países que se manteriam como principais produtores ao longo de todo o século 20", informa Senna, também ex-diretor da Escola Internacional de Cinema e Televisão San Antonio de los Baños, tradicional centro educacional cubano de cinema. O cineasta cita o exemplo da produção mexicana, que durante as décadas de 40 e 50 "assume uma personalidade marcante" e agrega à cinematografia latino-americana obras já com estilo muito próprio no que diz respeito à interpretação e à fotografia. A particularidade desse cinema agradou ao público, a ponto de os dramalhões tipicamente mexicanos - que se fazem conhecer até hoje por meio das telenovelas exportadas para o mundo todo - conquistarem platéias em mercados como o norte-americano e o europeu. Por outro lado, no entanto, esse cinema começou a mostrar uma de suas mais marcantes vocações: expressar os anseios revolucionários de um continente historicamente prejudicado por colonizações truculentas e que ainda seria cenário de ditaduras militares não menos traumáticas. Um dos primeiros trabalhos nessa direção surgiu em 1953. Raices, do mexicano Benito Alazraki. Curiosamente, o título do filme de Alazraki ("raízes", em espanhol) batiza apropriadamente o início de uma produção cheia de pontos em comum. O que permite hoje falar em cinema latino-americano - mesmo tendo em vista a cinematografia de uma região formada por culturas tão diferentes. "Quase no mesmo tempo, e sem ter visto o filme mexicano [Raices], o brasileiro Nelson Pereira dos Santos filma Rio, 40 Graus (1955)", conta Senna no texto Uma Estética do Sonho, parte do catálogo do 1º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo 2006. "Com as mesmas inovadoras características de Raices, com profundidade psicológica e social, com os escassos recursos de produção traduzidos em impulsos poéticos."
Foi o início de uma relação que dura até hoje e que guarda semelhanças. "É inacreditável como as produções do cinema latino-americano se aproximam", comenta Felipe Macedo, diretor do festival. "Nossas culturas todas são muito ricas, muito particulares e distintas, mas é curioso observar como há coincidências." Entre elas, Macedo cita a influência exercida em muitos cineastas latino-americanos pela Escola de Cinema de Santa Fé, do argentino Fernando Birre: "Contemporânea e relacionada ao nascimento do cinema novo no Brasil". Além disso, destaca o fato de esse movimento, liderado por Glauber Rocha, também datar da mesma época em que surgiu o cinema produzido durante a revolução cubana; e de este, por sua vez, ser contemporâneo do chamado cine independiente mexicano.
Pequeno espaço Décadas depois, passados anos de altos e baixos para a produção dos países que se destacam na região - ainda o Brasil, a Argentina e o México, e agora com bons representantes vindos do Chile e Uruguai -, mais uma vez o cinema latino-americano se vê diante de uma batalha comum: atrair o público para as salas(veja boxe: Opção ao grande mercado). "O cinema latino-americano não luta mais apenas contra as injustiças sociais. Essa produção também se levanta hoje contra a hegemonia de um cinema dominante que pretende estar absoluto nas telas, mentes e corações de todos os povos, que é o cinema da indústria americana", afirma o cineasta Toni Venturi, diretor, entre outros, de Cabra Cega (2005). A produção dos grandes estúdios de Hollywood ocupa atualmente no Brasil cerca de 80% dos filmes exibidos nas salas do chamado grande circuito. Esse número muda pouco nos países "hermanos". Resultado: sobram 20% para os filmes produzidos nas outras partes do mundo - não somente na América Latina, mas também na Europa, Ásia e Oriente Médio, por exemplo. "Dentro desse pequeno espaço a gente está competindo contra o cinema de qualidade do Pedro Almodóvar [diretor espanhol de Fale Com Ela, 2002, e Má Educação, 2004, entre outros], do Ken Loach [diretor inglês de Pão e Rosas, 2000, entre outros], dos argentinos Lucrecia Martel [O Pântano, 2001, e A Menina Santa, 2004] e Pablo Trapero [Família Rodante, 2004]", diz Toni Venturi. "Afinal só há esse espaço para o filme não americano. Logo, nosso maior concorrente, nosso maior 'inimigo', é esse cinema de qualidade." Toni cita como exemplo a trajetória de seu Cabra Cega. Num determinado momento, seu concorrente passou a ser o independente, mas medalhão, Robert Altman, famoso cineasta norte-americano. "E quem é Toni Venturi perto do Altman? Por isso a situação é tão difícil para nosso cinema. A produção latino-americana, em termos de mercado, é nossa concorrente também." (veja boxe: Ainda "locos por ti"?)

Argentina 1 X Brasil 0
E quando uma produção já sujeita a tantas intempéries se vê disputando um nicho específico e que a coloca em concorrência com seus pares, a situação tende a ficar um pouco mais complicada. Principalmente no que diz respeito ao mercado externo. Em tempos de globalização, faz parte do êxito de uma obra cinematográfica ultrapassar as fronteiras da própria platéia e buscar ingressos em outros países. E, no que diz respeito ao cinema brasileiro, tanto do ponto de vista da produção quanto da distribuição, nossos filmes não têm se destacado pela aceitação internacional - salvo exceções como o recente Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Detalhe: nossa rival é a Argentina. "Essa questão tem muito a ver com a língua", afirma a jornalista especializada em cinema Maria do Rosário Caetano, responsável pelo boletim eletrônico Almanaque. "O país que colonizou a Argentina, a Espanha, é hoje uma potência européia na produção de cinema, e tem feito parcerias com aquele país, e também com outros, como o Peru - a obra completa do Francisco Lombardi, por exemplo, foi feita em co-produção com a TV espanhola. Ou seja, existe essa facilidade da língua, de fazer filmes com o país que os colonizou. E nós, por outro lado, temos uma distância gigantesca do cinema português, que, por sua vez, tem uma cinematografia muito pequena." Outra vantagem argentina sobre o cinema brasileiro apontada por Rosário está nos temas tratados nos filmes. "São mais universais", define a jornalista. "Os argentinos fazem um tipo de cinema mais urbano. Tirando exceções como o trabalho de Lucrecia Martel, a produção média argentina tem uma temática mais fácil de ler. Eles trabalham quase como o cinema americano - ou seja, mostrando o cotidiano da classe média, seus problemas etc." Um exemplo dessa diferença de aceitação são os números do acordo de distribuição firmado entre a agência de cinema brasileira, a Agência Nacional de Cinema (Ancine), e a argentina, o Instituto de Cinema e Artes Audiovisuais da Argentina (Incaa). "O que se vê é Carandiru (2003), de Hector Babenco, visto por 4,6 milhões de espectadores aqui, atrair pouco mais de 10 mil argentinos. Outro exemplo é o sucesso 2 Filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira, que fez 5,3 milhões de espectadores no mercado interno; no entanto, não conseguiu ser vendido para nenhum outro país até agora", declara Rosário.
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Opção ao grande mercado
CineSesc é alternativa para interessados no circuito alternativo
Abrir espaço para uma produção cinematográfica que contribua para o pensamento, a reflexão e o lazer saudável. Esse é o objetivo do CineSesc e sua programação, cuja principal característica é privilegiar obras dos mais diferentes países do mundo. Filmes que apontam para uma direção diferente daquela seguida pelo cinema comercial. O espaço é para o cinema de qualidade, seja ele europeu, asiático ou latino-americano. "Colocar esses filmes aqui, sempre em condições favoráveis de preço, além da excelência dos meios (projeção, som, atendimento, etc.), certamente vai ampliar o mercado de oferta desses filmes", afirma Luiz Alberto Santana Zakir, gerente do CineSesc. No que diz respeito especificamente ao cinema latino-americano, Zakir lembra ainda que a exibição é um ponto importante para esse mercado, da mesma forma que contribui para a criação de um cinema que foge aos padrões do grande mercado. "Um cinema que detém uma qualidade única e valiosa de conteúdo e forma narrativa." O gerente do CineSesc ressalta também que o cinema latino-americano vem se recolocando no mercado depois de quase ter desaparecido durante as décadas de 1980 e 1990. "Participar de um festival com tantos títulos importantes da produção atual é propor uma comparação com o cinema comercial no sentido de oferecer uma opção; e constatar que existe um excelente cinema tratando de temas locais e que, quase em sua totalidade, mostra uma abordagem que privilegia questões ligadas às condições sociais, econômicas, políticas e existenciais de nossa região. Portanto, é um cinema que é diversão, entretenimento, mas também informação, educação e convite ao pensamento."

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Ainda "locos por ti"?
O cinema latino-americano continua com público específico, mas a produção de qualidade conta pontos para aumentar sua difusão
Nos anos de 1950 e 1960, a produção latino-americana fincou a bandeira de diversas revoluções no cinema mundial. Na platéia, jovens interlocutores, que se alternavam das salas de aula das faculdades para as ruas, onde se levantavam contra costumes considerados ultrapassados e os regimes militares que ocuparam vários países da América Latina naquelas décadas. Era uma época de grandes embates e opiniões extremas. Muitas vezes os debates derivavam para passeatas e protestos, logo reprimidos pela polícia. O filme Os Sonhadores (2003), do italiano Bernardo Bertolucci, retrata com clareza a tensão do período, ao colocar em cena um casal de irmãos e um amigo discutindo as relações políticas e pessoais a partir dos filmes exibidos na Cinemateca Francesa. Mesmo se passando na Paris de 1968 o trabalho de Bertolucci reproduz muito do que também ocorria em cidades como Rio e São Paulo, quando o público se aglomerava em museus, diretórios estudantis e pequenos cineclubes em torno dos recém-lançados trabalhos de Glauber Rocha (Terra em Transe, de 1967 e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, principalmente), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha, de 1968), Ozualdo Candeias (A Margem, de 1967), entre outros, para discutir acaloradamente cinema e a ditadura brasileira.
De lá para cá, mudou bastante relação entre cinema e público. Se muitos foram impedidos de assistir a Barravento (1961), de Glauber Rocha, porque o filme fora censurado, outros tantos não puderam ver Cabra Cega (2005), de Toni Venturi, porque não tinham como bancar os cerca de 15 reais do preço do ingresso. "Nos anos 60, 70 e 80, o cinema era uma atividade popular; era barato", afirma o cineasta Toni Venturi. "Ele estava localizado nos bairros e as salas eram grandes. Hoje o cinema migrou para o shopping, as salas ficaram pequenas e tudo está muito elitizado, tornando-se uma atividade para uma classe com alto poder aquisitivo." A jornalista especializada em cinema Maria do Rosário Caetano ressalta os números: "Não há dúvida: quem vai ao cinema no Brasil hoje são os 8% da população com um maior poder aquisitivo".

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