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Cultura

Postado em 01/10/2005

Expedição visitou oito tribos indígenas do Brasil e descobriu diversos jogos e brincadeiras que faziam a alegria dos povos daqui muito antes da chegada dos europeus

 

Fotos: Alfredo Alves/divulgação

 

Há realidades incríveis que parecem ter sido criadas somente para habitar as telas de cinema – obras da fértil imaginação do homem. Por exemplo, quem pensa, na vida real, em topar com alguém com um emprego igual ao de Indiana Jones – o famoso arqueólogo criado pelo cineasta norte-americano Steven Spielberg que vive as mais improváveis aventuras para encontrar tesouros perdidos? De fato, todo aquele glamour e adrenalina são coisa de filme, mas há gente por aí com um trabalho interessante e emocionante como o do personagem hollywoodiano. É o caso do pesquisador e jornalista Maurício Lima, que percorre o mundo em busca de jogos e brincadeiras. “Já fui a todos os continentes para fazer esse tipo de pesquisa”, conta. “E encontrei bibliografias sobre os jogos praticados em muitos lugares, como Egito, Índia, China...” Foi nessas investigações que o jornalista tomou contato, há quatro anos, com o jogo da onça, muito popular em algumas tribos indígenas no Brasil. Uma descoberta levou a outra e tudo acabou resultando na mostra Brinquedos e Brincadeiras dos Índios Brasileiros, em cartaz até 23 de outubro no Sesc Ipiranga (veja boxe Programa de índio). “É um jogo interessante de estratégia. As peças são uma onça contra 14 cachorros num tabuleiro, como o do xadrez, só que desenhado no chão”, conta Lima. A descoberta intrigou também o pessoal da Sociedade Internacional de Jogos, uma organização formada por arqueólogos e outros acadêmicos que catalogam todos os jogos descobertos no mundo. Anualmente os membros se encontram em um país diferente para relatar as últimas descobertas. Em 2001, o evento aconteceu em Barcelona, na Espanha, onde Lima contou a novidade.

 

 

Enigma sem chave

A primeira pergunta que o pesquisador se fez ao descobrir o jogo foi que caminho ele teria percorrido até chegar aqui. A escassez de dados sobre os jogos praticados na América do Sul dificultava a obtenção de uma resposta. A suspeita era de que o jogo da onça tivesse sido trazido ao Brasil pelos portugueses, mas, durante o encontro de Barcelona, Lima convenceu-se de que era mais provável que fosse de origem inca, povo que habitava o oeste da América do Sul muito antes de os europeus desembarcarem no continente. “Conhecíamos o jogo do puma, muito praticado em lugares por onde os incas estiveram, que é muito parecido com o jogo da onça”, explica. Os animais que dão nome ao passatempo, assim como algumas regras, geralmente variam de lugar para lugar. “O puma está para os Andes como a onça para o Brasil”, afirma. No entanto, apenas por ser parecidos, não é possível afirmar que o jogo tenha essa origem. “Nesse campo é difícil ter certeza, trabalhamos com a hipótese mais provável. Há suspeitas de que os incas tenham convivido com os índios que viviam na região onde hoje é o Brasil. Procurei aquelas tribos que pudessem ter tido mais contato com os incas”, continua. “O que, também, ainda é polêmico, pois muitos historiadores defendem que isso nunca aconteceu.” Os povos visitados por sua expedição foram os camaiurás, bororos, parecis, canelas, ticunas, maiorunas, manchineris e guaranis (ver boxe Por este País...). Eles estão localizados nos estados do Amazonas, Acre, Maranhão, Mato Grosso e São Paulo. Foi entre os bororos, os manchineris e os guaranis que o pesquisador confirmou sua suspeita. Bingo: todos conheciam o tal jogo.

 

 

Fora da rota

Quem influenciou quem é uma questão que confunde antropólogos, historiadores e etnólogos. “Há indícios de jogos e brincadeiras surgidos em lugares remotos do planeta em simultaneidade de época”, esclarece Marina Herrera, gerente do Sesc São Carlos, e pesquisadora do projeto Jogos e Brincadeiras do Alto Xingu, que teve início em 2002. “No entanto, não havia a menor probabilidade de troca entre os criadores, embora os jogos tivessem uma similaridade assustadora”, afirma. Necessidades de desenvolvimento de habilidades semelhantes, materiais similares à disposição ou até mesmo alguma memória ancestral estão entre as hipóteses cogitadas por quem estuda o assunto. “Mas não é possível afirmar”, diz Marina.

 

Nesse campo minado, uma das grandes polêmicas envolve a conhecida peteca. Alguns dados levantados dão conta de que o brinquedo tenha sido criado pelos índios que habitavam as terras ao sul do equador, que o teriam apresentado aos brancos. No entanto, trata-se de mais uma hipótese. Marina, por exemplo, não aposta nisso. “Sou resistente a essa afirmação, pois há brinquedos e brincadeiras similares a nossa peteca em outros continentes totalmente fora da rota de migração que se considera para os povos indígenas do Brasil”, conclui.

 

 

Programa de índio - Mostra no Sesc Ipiranga cria ambiente para transportar o público ao universo lúdico de aldeias do Brasil

Foi em clima ora de tempestade no deserto, ora de perdidos na selva, que uma equipe de seis pessoas liderada pelo pesquisador Maurício Lima conseguiu o material que resultou na mostra Brinquedos e Brincadeiras dos Índios Brasileiros, em cartaz no Sesc Ipiranga até 23 de outubro. A programação concentra uma exposição fotográfica com imagens da expedição, documentário em vídeo, apresentação de danças e histórias da tradição oral indígena, e, claro, muitos jogos e brincadeiras. Além disso, algumas histórias da viagem serão contadas em bate-papo com o pesquisador. Como a que envolveu a visita aos índios manchineris, no Acre, uma região de difícil acesso. Para ter uma idéia do frio na barriga até alcançá-la, basta ouvir sobre o vôo da equipe para chegar lá. O pouso seria na pista da própria aldeia e era necessário espantar o gado, que bem naquela hora havia resolvido pastar por ali. A solução encontrada pelo piloto da aeronave foi simples e, digamos, um pouco radical: vôos rasantes afastariam os animais dali. Eles só não contavam com a chuva. “Dessa vez corremos até risco de morte”, lembra Lima. Outra aventura foi a viagem até os maiorunas, que moram na Amazônia, próximo à fronteira do Brasil com o Peru. Primeiro a equipe pegou um avião até Manaus. De lá, outro para Tabatinga, cidade próxima à área. Depois, um terceiro – dessa vez, um bem pequeno – para chegar até o posto do Exército na fronteira, de onde ainda seguiriam por mais dez horas de barco pelo Rio Javari. “Era selva mesmo. Estávamos no meio de uma mata fechada e com muitas cobras”, conta. O pesquisador inglês Irving Finkel, do British Museum na Inglaterra, esteve em São Paulo no evento no Sesc Ipiranga. “Já organizei várias mostras sobre jogos e tenho certeza de que essa será maravilhosa”, diz. “É clara e simples, tem lindas fotografias e permite que os visitantes construam brinquedos e ainda os levem para casa, além de ser possível usá-los ali mesmo no espaço da mostra. O que mais poderíamos querer?”

 

 

Por este País...

No Brasil, até onde se sabe, existem ainda 215 etnias indígenas – pesquisadores calculam que já houve quase dez vezes essa quantidade – com cerca de 180 línguas diferentes. Conheça algumas, visitadas pela expedição, e seus jogos, que divertem crianças e adultos

 

Canelas

No centro do estado do Maranhão, a aldeia Escalvado, onde moram os canelas, tem cerca de 1.500 habitantes. Ali vivem em casas construídas com adobe e palha. Um dos costumes desse povo é “adotar” quem aparece por lá. Assim, cada visitante fica com uma família e recebe um nome próprio. A maior curiosidade descoberta pela expedição foi um quebra-cabeça muito difundido em todo o mundo e conhecido como anel africano. Segundo pesquisadores, esse jogo deu origem a centenas de quebra-cabeças, em continentes diferentes. O último registro da existência desse jogo entre os índios brasileiros era de 50 anos atrás.

 

Parecis

A aldeia Formoso fica próxima à fronteira com a Bolívia. Lá vivem os índios parecis em ocas de tamanho médio. Uma das principais características dos jogos dos parecis é que freqüentemente há aposta. Quem ganha leva pertences úteis à vida na aldeia, como arcos e flechas, além de panelas e roupas. Uma das curiosidades trazidas pela equipe é um jogo chamado tdymure, que lembra o boliche e é praticado apenas pelas mulheres. Só que no lugar da bola é usada a fruta do marmeleiro.

 
 

 

Camaiurás

Foi a primeira tribo visitada. Eles moram no Alto Xingu, no estado de Mato Grosso, às margens do Lago Mawaiaka, em casas tradicionais, as malocas, onde convivem várias famílias. Entre os brinquedos encontrados pela equipe está o mocareara angap (foto), que utiliza a polpa do pequi como “munição” para simular a atividade da caça. Esse povo conhece também a peteca (potok), as pernas de pau (my’yta) e piões (y’ym). Outro jogo muito praticado por lá é o ywa ywa, em que as crianças usam arco e flecha para atingir aros feitos de fibra de buriti.

 

 

Bororos

Esse grupo também vive no Mato Grosso, mas fora do Parque do Xingu, na Reserva Indígena Merure, nome como também é conhecida a língua bororo. A história desse povo é marcada por séculos de conflitos com o homem branco. Foi lá que a expedição certificou-se do que já desconfiava: os índios brasileiros conhecem jogos estratégicos, como o jogo da onça, que os bororos chamam de adugo. Com o tabuleiro traçado na areia, os jogadores usam sementes de milho como peças. Uma semente de cor mais escura representa uma onça e as outras 14, mais claras, representam cachorros. Um jogador atua como a onça, enquanto outro faz o papel dos cachorros. O objetivo é encurralar o felino e deixá-lo sem possibilidade de movimentação. O jogo da onça também foi encontrado na aldeia dos manchineris, que vivem no Acre, e dos guaranis, de São Paulo.

 

Fonte: O Jogo da Onça (Panda Books, 2005), de Maurício Lima e Antônio Barreto.

 

 

Saiba mais:

Sociedade Internacional de Jogos

www.boardgamesstudies.org

Jogos Indígenas do Brasil

www.jogosindigenasdobrasil.art.br

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