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Entrevista

Postado em 09/10/2005

Em conversa exclusiva, a professora da USP passa o Brasil a limpo, comenta nossa história recente e diz que crises como a que o País vive hoje contribuem para o amadurecimento político da população

 

A professora de história contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida Aquino pertence ao time de pessoas que podem ser chamadas de otimistas – ela mesma admite o termo. Acredita que são grandes as chances de o Brasil se sair bem da atual situação política, rebate a idéia de que o povo brasileiro seria inerte com relação aos problemas que afligem o País e lembra que por trás de toda e qualquer crise está o valioso processo democrático. No entanto, não se furta a fazer críticas. Afirma que a maioria dos grandes passos da nação, da proclamação da independência ao final da ditadura, acabaram sendo dados ao ritmo do que desejavam as elites – “que têm uma visão muito curta”, segundo a historiadora – e aponta os erros cometidos pelo governo federal, o atual e o antigo. Nesta entrevista, a professora analisa passado, presente e futuro do Brasil. A seguir, trechos.

 

Olhando para a história contemporânea do Brasil, a impressão que se tem é que a cada dois anos o País parece se ver em meio a uma crise catártica. Por que a senhora acha que isso acontece?

Eu tendo a não concordar com isso. Acho que a história republicana do Brasil teve algumas crises grandiosas, que levaram a profundas transformações. Uma delas, por exemplo, ocorreu há 50 e tantos anos, no governo Getúlio Vargas, e desembocou no seu suicídio – o que de certa forma corresponde a uma grande mudança no sentido da república brasileira. O outro momento de grande crise foi o que antecedeu o golpe de 1964 e em seguida o próprio golpe. Mas esses são momentos de crises pontuais. O que aconteceu há 13 anos, o impeachment do presidente Collor, foi uma crise grave, séria, mas não representou uma interrupção do processo democrático – como aconteceu no golpe de 64. E o que nós estamos vivenciando hoje também é uma crise importante, profunda, que, creio eu, mesmo que não leve a nenhum resultado concreto, vai conduzir a uma nova forma de fazer política – principalmente de pensar a política no plano de financiamento das campanhas. Sem dúvida, isso já está embutido nessa crise, mesmo que ela não leve a nenhuma conclusão efetiva. Independentemente de qualquer coisa, de cassarem ou não os 18 [deputados investigados pelas comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs) dos Correios e da Compra de Votos], o Brasil já será outro, não há dúvida nenhuma. De forma que não vejo que a república brasileira esteja como num bambolê. Mesmo no caso da crise no governo do presidente Collor, em 1992, nós nos saímos muito bem. Garantiu-se a estrutura de democracia, a continuidade governamental e do processo eleitoral. Assim como está acontecendo agora. Seguramente haverá mudança, mas o processo democrático não será interrompido.

 

A senhora acredita que essas crises ensinam ou amadurecem a sociedade?

Acredito que sim. Principalmente no caso de uma crise como a atual. É certamente um muito bom exemplo. A população literalmente trocou o canal da novela pelo que transmite os debates políticos. Em que momento do Brasil parecia possível isso acontecer? É muito raro. As pessoas ficam quase hipnotizadas na frente da televisão, vendo e acompanhando o debate, que é árido – pessoa falando a outra pessoa, questão levando a outra questão, respostas longas, discursos prolongados. Mas, mesmo assim, as pessoas ficam seguindo. Sempre se falou que a população brasileira só se preocupa com um tipo de divertimento muito leve – daí o grande sucesso das novelas, por exemplo. Então, já é possível ver uma grande mudança. Não há pessoa no Brasil que tenha passado em brancas nuvens por essa crise. Ela causou interesse. A pessoa pode não ter acompanhado todo o processo, mas praticamente todos têm uma idéia do que aconteceu, de uma forma ou de outra. E isso, conseqüentemente, representa um grande amadurecimento. Não quer dizer, necessariamente, que o Brasil vá melhorar ou piorar. Mas, sem dúvida alguma, há de fato um crescimento e amadurecimento político da população.

 

A senhora acha que, no caso do Brasil, a democracia representativa, de consulta popular, poderia ser usada em qual medida?

Acho que isso poderia ser usado numa medida relativa. Em primeiro lugar, nós temos de pensar que plebiscitos como esse do desarmamento, exemplos de democracia direta, praticamente paralisarão o País. Nem que seja por 15, 20 dias, o Brasil vai parar para pensar na situação. E essa escolha pode mudar significativamente a sua existência. Conseqüentemente, acho que a gente não pode, a cada segundo, fazer todo esse exercício. O Brasil é um gigante. Não dá para a gente se comparar com a Suécia. É uma dimensão gigantesca, que implica uma movimentação muito grande. Acho que seria muito complicado. Mas o instituto, o uso dessa consulta popular é muito válido, na minha opinião. Acho até que, para determinadas decisões econômicas complexas – os famosos pacotes governamentais, que nós temos um atrás do outro e que acabam até selando nossas vidas –, as pessoas deviam ser consultadas. Mas tenho um pouco de receio de excesso de plebiscito, tendo em vista a dificuldade de este gigante se movimentar. Precisaríamos ter mais consultas, sim, mas acho que não seria a resolução de nossos problemas.

 

Quem foi o grande estadista brasileiro na sua opinião?

Sou obrigada a afirmar que o grande estadista brasileiro foi o Getúlio Vargas. E com tudo que isso implica, inclusive a dor de afirmar isso. Quando estou falando do Getúlio, o pacote vem completo. Vem com a experiência da ditadura e com o projeto social para o Brasil. O Brasil teve poucas experiências de um projeto social, e o getulismo foi uma delas. Há uma experiência de projeto muito claramente colocada, embora não seja projeto social, nas metas de governo de Juscelino Kubitschek. Todo mundo sabia o que o homem queria fazer. E, de fato, em cinco anos cumpriu o procedimento que desejava, os tais “50 anos em cinco”. As suas metas foram cumpridas. Não que elas tenham beneficiado grandemente a massa desvalida da população brasileira – por isso não era um projeto social –, mas na realidade representaram um projeto. O Brasil não teve, ao logo de sua curta história republicana – cento e poucos anos é muito pouco tempo –, grandes experiências de projetos. Um deles, e acho que é o único que tem uma característica social clara, é o projeto legado por Getúlio Vargas. E que nós, povo, ainda estamos tentando manter em alguns aspectos. Eu sou eleitora do partido que quer falar a língua do povo, do presidente Lula. Por isso me sinto à vontade para falar com muita tranqüilidade: ele desfez tudo aquilo que havia dito. Nós estamos aqui à espera, acho que essa crise vai passar, como tudo passa, o mundo não vai se acabar, o Brasil vai continuar existindo, e com certeza virará um país melhor.

 

Por que depois da ditadura não se pensa mais um projeto para o País? O que a senhora acha que levou esse sonho de Brasil a ser abandonado?

Tomando essas palavras como expressão da verdade, acho que na realidade não se passa impunemente por uma ditadura. Ela vai destruindo as coisas. Inclusive o modo de pensar a política. Há episódios que viraram gozação, mas que são muito terríveis em sua concepção. Em certa ocasião houve uma vitória significativa do chamado MDB [partido de oposição ao regime militar]. No pleito seguinte, qual foi a alternativa encontrada pelo ex-ministro Armando Falcão? Os candidatos só podiam ficar paradinhos, não podiam se comunicar com a população. A idéia era que o candidato não se comunicasse diretamente com as pessoas. Até no regime ditatorial a população é capaz de escolher, e poderia optar por algo que não interessasse à ditadura. O rescaldo que vem, e é muito forte, é a negação da política.

 

Como a senhora vê as novas interpretações da ditadura?

Acho que na realidade se trata de algo muito complexo. No fundo não é simplesmente pensar que cada presidente represente uma postura. Mas é uma tentativa de construir uma memória do regime militar. Isso não é de agora. Desde que o regime se encerrou, e mesmo em seu procedimento, se tentou construir uma memória positiva. Passa-se a positivar o regime militar até pela comparação de que a coisa não foi como na Argentina, onde o regime durou sete anos e matou ou desapareceu com 30 mil pessoas. No Brasil, ao longo de 21 anos, com uma população três vezes maior do que a da Argentina, isso aconteceu com 400. Só que no meio disso se esquece que cada ser humano representa a humanidade inteira. Ou seja, se se matou um, simbolicamente é a humanidade que se está matando. Essa tentativa de positivar o regime militar é uma coisa que incomoda muito. E vem sendo lenta e maldosamente construída. Agora, quando se tem um regime democrático, que é o que nós estamos vivenciando, e a escolha pela maioria da população de uma proposta próxima do socialismo – ou seja, um avanço muito grande –, e, de repente, é no meio dessa proposta que se puxa o fio do mar de lama, isso pode trazer junto uma coisa muito negativa: o pensamento do tipo “que saudade do regime militar”. Que é exatamente o que faz o tempo todo o ex-ministro e atual congressista – um congressista interessantíssimo, por sinal, nunca colocou nenhum projeto de lei – Delfim Netto. Todo o tempo ele recorre à velha frase “eu era feliz e não sabia”. E, quando ele está falando isso, está dizendo: “No tempo dos militares era muito melhor”. Nós precisamos, de fato, recuperar o que o regime militar trouxe e ainda traz: somente coisas negativas. De uma experiência ditatorial não dá para criar coisas boas. E o regime militar, comparado com a experiência do Getúlio, tem uma diferença muito significativa. Porque pelo menos, em dado momento, seja pressionado pela população ou não, Getúlio acabou fazendo uma opção por uma proposta mais social. No caso do regime militar, ele foi elitista e elitizante do princípio ao fim. Só beneficiou as camadas já mais favorecidas da população. Na realidade, cada vez mais tenho clareza de que estou no caminho necessário: mostrar quão terrível esse regime militar foi, inclusive com essa herança maldosa que acabou deixando para nós.

 

A contemporização é uma característica do povo brasileiro?

Para dar a idéia do absurdo que isso significa, outro dia fui convidada para falar numa TV religiosa, TV Gospel, num programa jovem, de auditório, e de repente eu tenho a péssima surpresa de saber que quem seria entrevistado junto comigo seria a pessoa que meses atrás saiu na capa das revistas semanais dizendo “Fui eu que prendi o José Dirceu”: Herwin de Barros [ex-agente do Dops que participou da prisão de 800 estudantes após o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, interior de São Paulo, em 1968]. Em suma, uma pessoa ligada às Forças Armadas, ao que há de pior no regime militar. E, ao meu lado, ele se vangloriou o tempo inteiro desse fato. Trazia e mostrava a revista, e repetia: “Eu sou o cara que fez isso”. É como dizer: “Já que hoje o José Dirceu está em desagrado, então agora eu posso mostrar a cara e dizer que fui eu que fiz a façanha de prender esse cara que não presta”. Esse fato insólito, absurdo total, só pode acontecer porque na realidade vivemos um regime que pretendeu ser ditadura pela metade. Mas não foi. Então, respondendo à pergunta, não acho que essa contemporização seja característica da sociedade brasileira. Porque a sociedade brasileira, quando é chamada a se manifestar, vai mesmo. E ela tem dado vários exemplos de que não é por aí que ela quer que a coisa vá. Ocorre que o que nós temos são elites muito sem-vergonha. As novas elites são do pior tipo. Porque elas nem sequer têm um comprometimento com o País e com a população. Uma elite digna de sê-lo, que não essa coisa horrorosa que nós temos aí, é exatamente a elite que tem uma preocupação com o País. Ela tem uma visão elitizante, sim, mas interessa ao País. E dentro do País juntam-se as pessoas. O tipo mais rígido de capitalismo selvagem é o do país em que a distância é maior entre ricos e pobres. Isso está provado e comprovado. Nós temos exatamente isso porque nossas elites são terríveis. E esses grupos se apropriaram do poder, e fazem seu jogo, e nossa política é muito mal resolvida, de forma que a população sempre é frustrada no seu desejo. Sempre vem pela metade. Ela sai pela cidade, pede e exige, daí vem pela metade. Isso não aconteceu só no regime militar, ocorre agora. O PT, que é um partido tão sólido e belamente construído, chega ao poder por um processo completamente legítimo, o mais democrático possível, e uma vez no poder ele acha que pode continuar fazendo a mesma política feita anteriormente. É por isso que estoura a corda nesse momento. O que está em questão hoje? Esse tipo de democracia que estamos vivendo. Não é problema do povo brasileiro. Não quer dizer que o povo argentino ou chileno seja mais aguerrido que o brasileiro. O povo brasileiro é extremamente aguerrido e sofrido. Entretanto, as elites que nós temos têm conseguido vencer todas e transformar o Brasil nessa desgraça em que ele está. O que acho é que temos, neste momento, uma boa oportunidade para modificar. Talvez não completamente, mas pelo menos em parte.

 

Nós somos capazes de nos destacar na pesquisa do genoma, mas não conseguimos ter um Congresso que represente a população brasileira como um todo.

Sim, porque na realidade se trata exatamente dessa questão que eu falava anteriormente, ou seja, que tipo de elite temos. Podem-se ter elites sábias ou estultas. No caso do Brasil, trata-se do segundo caso. As nossas elites têm uma visão muito curta. E o momento que estamos vivendo talvez represente realmente o fim de um processo. Talvez signifique que não dá para seguir assim. O Brasil é um país extremamente moderno. Ao visitar outros lugares, é possível perceber a modernidade do comportamento brasileiro, ao observamos uma série de questões que o Brasil já resolveu, e bem, mas que estão muito mal resolvidas em outros locais. Entretanto, em se falando do que de fato importa, que é a melhoria da qualidade de vida da maior parte da população, nós temos tudo por fazer, dada a pobreza das nossas elites políticas, que não seguem aquele velho ditado: “É melhor perder os anéis do que os dedos”. Elas têm preferido, e parece que agora estão se matando, até perder os dedos, porque elas não querem se desfazer de seus anéis. Nos outros países de democracia, talvez, as elites mais inteligentes já tenham se desfeito de seus anéis há muito tempo. E a qualidade de vida da população é, com certeza, muito melhor do que a nossa.

 

Qual a raiz da construção dessa elite?

Nós temos, como outros países da América do Sul, um processo de colonização. Mas diferentemente dos outros países – e aí talvez esteja o momento em que as coisas começam a se encaminhar muito mal – nós vamos ter uma saída para a independência, mas uma manutenção da monarquia. É quase como se a independência não existisse. A população está pedindo independência, e naquele momento se traça o futuro do País. Mas de repente é preciso que o príncipe herdeiro, representante da coroa portuguesa, e, portanto, do colonizador, levante a espada e grite “independência ou morte” para que a independência se faça. E ainda nos levando a uma monarquia de quase um século, enquanto quase todos os outros países já tinham saído de colônia e se transformado em repúblicas, até modernas. Isso faz do Brasil um país com uma experiência política muito diferente. É esse processo que traça o futuro. E a nossa república se fez, como as elites preferem sempre fazer no Brasil, por um grupo pequeno, um homem sobe no cavalo e proclama a república para pessoas embasbacadas que nem sequer sabem o que está acontecendo. As coisas aqui são sempre feitas pela metade. E acho que isso se delineou principalmente quando tivemos nossa primeira experiência de saída de uma situação de opressão. Quando nós saímos da situação de opressão colonial, não saímos libertos, mas sim para mudar de nome e prosseguir com o mesmo esquema. Dessa forma, coloca-se o colonizador para ser o libertador. O que é absurdo sob todos os aspectos.

 

Pelo que se diz, a impressão que dá é a de que jamais houve opinião pública no Brasil e que hoje ela é poderosíssima. É isso mesmo ou de fato é a primeira vez ela consegue se manifestar?

Eu acho que é complicado falar em opinião pública, porque isso quase pressupõe uma entidade enorme e meio indefinida, composta dos brasileiros. Existem outros problemas nessa questão. Quando se fala em opinião pública, dá-se a impressão de um bloco concreto e claro, que pensa de forma semelhante. Não é dado muito espaço à diferença. Eu não utilizaria esse termo. Talvez o que se queira dizer é sobre a presença e participação da população. Acho que o Brasil tem menos visibilidade de participação da população que outros países. É uma democracia, mas, ao contrário de outras democracias, a participação popular tem uma visibilidade menor. Mas não acho que ela nunca tenha existido, o que ocorreu é que foi maldosamente encoberta. Não é só hoje que o povo está na rua dizendo o que está dizendo. Também foi para a rua dizer que o Collor não podia ficar. Ao longo da história republicana, a população tem se manifestado muitas vezes. Mas sempre se consegue fazer uma manobra para dar a impressão de que foi feito algo por cima, e de repente alguém brilhante conseguiu solucionar os problemas. Algo que se integra ao clamor popular, mas as coisas mudam de acordo com o desejo da elite, que, por cima, coloca tudo como se ela fosse a benfazeja, a fada bondosa que viesse resolver os problemas da população brasileira – que não sabe fazer isso por conta própria. Acho que a população brasileira sabe, sim, só que não se dá espaço para essa contestação. E talvez também estejamos num momento em que esse procedimento é claramente contestado. Acho que neste momento é importante também lembrar isso.

 

Como a senhora tem visto a atitude de alguns intelectuais, que têm preferido se calar diante da situação atual do País?

Em primeiro lugar, queria estabelecer que eu, filiada, eleitora do partido e do presidente Lula, não sou militante ativa como outros intelectuais de grande nome, e que talvez estejam nessa situação a que a pergunta se refere. Intelectuais que todo o tempo construíram o partido e agora preferem se calar. Acho que, neste momento tão difícil que o País vive, é hora de sacudir a poeira. É extremamente doloroso que esteja acontecendo o que está ocorrendo. Entretanto, por mais doloroso que seja, vamos precisar encarar a situação. E se nós, os chamados intelectuais – e sei lá se somos –, nos calarmos, acabaremos contribuindo para que essa passagem tão difícil se torne ainda mais problemática. Não vejo que seja hora de se calar. Acho que é hora de falar. Vamos esquecer que está doendo nessas pessoas – para elas muito mais do que para mim. Porque elas ajudaram muito a construir esse partido. Vamos sacudir a poeira, deixar essa dor de lado e pensar, concretamente, no que é possível fazer. Se é que o intelectual tem algum papel na vida política, vamos ver o que é possível fazer para continuar dando essa contribuição.

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