Postado em 06/09/2004
O milagre da gestão sem recursos
ADIB DOMINGOS JATENE
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O professor Adib Domingos Jatene, médico cardiologista e ex-ministro da Saúde, esteve presente no dia 5 de maio de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre a saúde pública no Brasil.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.
Em 1953, quando me formei, havia no país 16 faculdades de medicina e três cenários para a população. Tínhamos os doentes que podiam pagar (os particulares), os da Previdência Social e os indigentes. O Hospital das Clínicas de São Paulo, inaugurado em 1944, e o Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro eram os mais importantes e atualizados do país. As instituições privadas não tinham os equipamentos que eles possuíam.
Nessa época, os institutos de previdência recebiam contribuições e, como quase não havia aposentados, tinham sobra de recursos que aplicavam fortemente no sistema de saúde. Assim foram construídos no Rio de Janeiro os grandes hospitais que hoje estão causando muitos problemas. O Hospital de Andaraí, de Bonsucesso, de Ipanema, da Lagoa são casas de saúde de alto nível e muito bem equipadas, que eram utilizadas pelas faculdades de medicina do estado.
Com o movimento militar de 1964, os institutos de previdência foram unificados, fundidos. Até aquela data havia institutos que eram ligados a categorias profissionais, como comerciários, industriários, bancários, etc., cada qual cuidando de seu espaço e com uma organização bastante aceitável. Tínhamos na época o Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (Samdu), entre outros que perderam o contato com as categorias profissionais e se transformaram em órgãos de administração pública. O Ministério da Saúde cuidava fundamentalmente do combate às endemias, imunizações, qualidade de alimentos e de medicamentos, enfim, ações de saúde pública.
Como as doenças eram atribuição da Previdência, não havia recursos orçamentários para o Ministério da Saúde, a não ser para pequenas ações. O município cuidava da emergência, o estado da parte epidemiológica, e a União, através da Previdência Social, ficava com os doentes.
Esse cenário foi se modificando aos poucos. A partir de 1955, ocorreu um processo de urbanização muito acelerado. Em 1950 havia 18 milhões de moradores nas cidades e 33 milhões no campo. Hoje são mais de 140 milhões nas áreas urbanas e pouco mais de 30 milhões na rural. Essa foi uma mudança muito importante, que trouxe para as cidades, principalmente nas regiões metropolitanas, gente de baixo nível intelectual e educacional e reduzida capacidade contributiva. Isso se tornou um enorme problema, pois o atendimento a essa população ficou muito complicado. A razão é que os profissionais de saúde de que ela necessita não aceitam morar nessas áreas. Assim se criou o sistema pelo qual o profissional vai ao bairro duas ou três horas por dia, menos no fim de semana e nos feriados, sem vínculo com a população.
Como secretário da Saúde e diretor do Instituto Dante Pazzanese, tive uma oportunidade rara de entender o que estava acontecendo. Mandei fazer um estudo da situação do atendimento à população em todo o estado de São Paulo. Um dos temas foi a distribuição dos centros de saúde. A área metropolitana abrigava 51% da população. Excluindo os municípios do ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema, na Grande São Paulo), tínhamos 257 centros de saúde, apenas 55 especialmente construídos. Os demais eram pequenas casas alugadas na periferia, sem condição de funcionar a contento. No interior havia mais de 500 centros de saúde, todos construídos para esse fim. Eu não conseguia entender como a área onde ficava a sede do governo e com maior potencial econômico não tinha os recursos que havia nas cidades pequenas do interior.
Nessa época, comecei a participar de assembléias populares nos bairros, as comunidades eclesiais de base. Na zona leste, encontrava sempre o bispo dom Angélico Sândalo, que hoje está em Joinvile. Era um movimento extraordinariamente complicado, agressivo, mas para pedir coisas simples. Queriam um local para vacinar os filhos, era a grande reivindicação da época. Em contato com essas pessoas, tive a pretensão de entender o problema. É que no interior, por menor que seja o município, existe diversificação profissional e social. O prefeito, os vereadores, o juiz, o padre, o fazendeiro, o comerciante, todos convivem com a população mais pobre, há contato com o governo. Na periferia das grandes cidades e nas regiões metropolitanas, onde está a maioria da população, faltam os profissionais que possam ajudá-la. Foi nessa época que disse que o problema do pobre não é ser pobre, mas ter amigos pobres. Ele não tem ninguém que possa falar com quem decide, marcar uma audiência, negociar um financiamento, fazer um projeto. E como não existem os profissionais que poderiam ajudá-lo, fica abandonado. Essa é a situação.
Vejamos o que aconteceu com o sistema de saúde. Saúde é a situação de bem-estar físico, psíquico e social. Tem implicações com salário, lazer, trabalho, qualidade de alimento e de medicamento, imunização, combate a endemias e tratamento de doenças. É um enorme complexo de atividades para se oferecer uma condição de vida razoável para a população. Na parte de prevenção, não estamos mal. O Brasil é um dos países que mais vacina no mundo. No combate a poliomielite, houve até uma discussão entre o então ministro Waldyr Arcoverde e o doutor Albert Sabin. O criador da vacina dizia que o ministro, ao defender a vacinação de toda a população abaixo de 5 anos em um único dia, ia pôr tudo a perder. E foi embora, nem quis ficar no país. Depois de dois anos voltou, e fez mea-culpa: "Nunca acreditei que o Brasil seria capaz de vacinar 20 milhões de crianças num único dia e repetir isso duas vezes por ano". Mais tarde a Organização Mundial da Saúde (OMS), baseada na experiência brasileira, criou o Polio Plus e foi buscar ajuda do Rotary Club para fazer um programa similar no resto do mundo.
O Brasil foi o primeiro a eliminar a poliomielite. Estamos fazendo o mesmo com o sarampo, promovemos a vacinação contra todas essas doenças que é possível prevenir. A difteria, por exemplo, hoje é absolutamente marginal. Depois da queda da União Soviética, a Rússia experimentou uma epidemia de difteria, com milhares de casos e mais de 300 mortes. Nós tínhamos menos de 200 casos por ano.
Quanto ao combate de endemias, como malária, Chagas, dengue e cólera, tínhamos, por exemplo, em 1980 cerca de 100 mil casos de malária por ano, número que foi aumentando e chegou a 600 mil em 1988, com expectativa de crescimento. No entanto, algumas ações foram colocadas e frearam o surto em 550 mil casos. Cada vez que se intensificava a luta - fizemos isso em 1992 em Rondônia e no Amazonas -, havia uma queda, e chegamos a 300 mil. Mas como as coisas no Brasil são descontínuas, reduz-se o esforço e volta a elevar-se o número de casos. Mas, de qualquer maneira, está sob controle, a taxa de mortalidade é baixa.
A doença de Chagas está praticamente extinta na transmissão pelo barbeiro domiciliar. O fato que aconteceu recentemente em Santa Catarina, com a contaminação através de caldo de cana, deve-se ao barbeiro silvestre. São animais que ainda têm a doença, coisas que persistem, como a febre amarela silvestre. Quanto ao dengue a situação está bem controlada. Pretendíamos extinguir o Aedes aegypti em 1996, quando os municípios com o mosquito eram 1,2 mil. Tínhamos a estratégia pronta. Hoje isso é impossível. Queríamos evitar o dengue hemorrágico, que acabou aparecendo no país, mas com uma abrangência muito limitada.
O grande problema que enfrentamos é diagnóstico e tratamento da doença. A evolução da saúde pública no Brasil foi se processando e veio a idéia da unificação. Participei da 7ª Conferência Nacional de Saúde, realizada no auditório do Itamaraty, com técnicos do país e do exterior. A 8ª Conferência, feita num estádio em Brasília, da qual participaram também a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), partidos políticos, gerou uma enorme movimentação que resultou no relatório que instrumentou a Constituição no capítulo da saúde. E em 1988 se estabeleceu que saúde era um direito do cidadão e um dever do Estado, tinha de ser oferecida com integralidade, eqüidade, etc. E o princípio seria a descentralização ao nível municipal, com participação social. Foi uma luta fazer as leis orgânicas da saúde, que detalharam todo o sistema.
Na 9ª Conferência, que tive a oportunidade de presidir, se instituíram os princípios de atuação do sistema de saúde, que são basicamente estes: o sistema público é único, e com comando único em cada esfera de governo. E a atividade é livre à iniciativa privada, que passa a ter um papel suplementar. Foi quando a iniciativa privada consolidou sua organização com vários sistemas de pré-pagamento, como a medicina de grupo, a autogestão, a cooperativa médica, os seguros-saúde, etc., que oferecem atendimento a uma parcela da população não superior a 40 milhões de pessoas, com uma tendência um pouco decrescente.
Como o sistema é único, era evidente que os problemas surgiriam, porque somos uma federação com estados e municípios autônomos, e o prefeito faz tudo o que a Câmara de Vereadores autorizar e a Justiça não impedir. Tivemos em São Paulo um exemplo típico, quando o então prefeito Paulo Maluf resolveu instituir um modelo de saúde completamente diferente de tudo o que estava sendo feito no país. Ele tinha maioria na Câmara, que aprovou o projeto, e todas as entidades da área de saúde entraram com recurso na Justiça. Esta negou os recursos, e o sistema foi implantado. E somos um país democrático e multipartidário, com eleições a cada dois anos que criam conflitos, deixam seqüelas. Trabalhar em conjunto é, então, uma tarefa muito complicada.
Mas o sistema enfrentou esses problemas e constituiu dois fóruns de discussão. O primeiro, que chamamos de comissão, é a reunião com intergestores bipartite entre a secretaria estadual e representantes municipais. É esse grupo que discute os problemas em cada estado para tentar evitar superposição, para organizar consórcios intermunicipais, etc. O segundo é uma comissão intergestores tripartite - Ministério da Saúde, Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde e Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde -, que homologa as decisões das bipartites e discute os pontos em conflito. Temos o Conselho Nacional de Saúde, que é paritário, os conselhos estaduais e os conselhos municipais, constituídos por prestadores, usuários e governo.
À primeira vista, o Conselho Municipal seria a grande solução para os problemas e para a fiscalização do sistema, mas isso não é tão simples. Costumo dizer que se trata de uma estrutura democrática num país que não é democrático ainda, temos uma cultura autoritária. Assim, o prefeito quer montar um conselho que ele domine e, quando surge um conselho independente, ele quer mandar no prefeito. É complicado, mas estamos aprendendo e as coisas estão melhorando. À medida que o tempo passa, está havendo um entendimento um pouco melhor e se consolidando a idéia de que quem está no governo não manda no conselho e vice-versa. A discussão democrática seria a oportunidade de buscar a verdade, de alcançar o melhor, e estamos acostumados com um sistema em que o debate objetiva identificar adversários, conquistar aliados e compor maioria para ganhar votações. Isso torna as coisas muito difíceis, porque na discussão democrática exige-se um pré-requisito que chamo de honestidade intelectual. O cidadão intelectualmente honesto é aquele capaz de dizer: "Seu argumento é melhor que o meu, minha idéia não está correta".
Isso sob o ponto de vista da instituição. Sob o da ação, temos uma complicação, que foi a grande evolução científica e tecnológica que aconteceu nestes últimos 50 anos, coisa que não ocorreu em 50 séculos. Na indústria e em várias outras atividades, esse avanço significa simplificação e melhoria de qualidade, reduzindo o número de empregados e aumentando a produtividade. Em medicina, ocorre o contrário: cresce o número de pessoas envolvidas e amplia-se o custo. De maneira que, se não houver controle da incorporação tecnológica, não se conseguirá financiar o sistema.
O sistema privado, de livre iniciativa, passou a incorporar toda essa tecnologia, com evidentes excessos. No momento em que havia na cidade de São Paulo 66 aparelhos de tomografia, o Canadá inteirinho não tinha esse número. A parcela da população que usa o serviço privado de saúde tem à disposição o que de melhor existe no mundo. Só que as contribuições não são suficientes para financiar isso tudo. Tanto que grande parte deles está saindo do mercado. Há pouco, a Interclínicas fechou.
No setor público, esse avanço criou problemas enormes, porque o doente, ao ser atendido, sai do consultório com um maço de pedidos de exame. Isso rompeu a relação médico-paciente e praticamente inviabilizou a atividade. Nesse meio tempo, a indústria farmacêutica também teve um avanço incontrolável. No passado, a pesquisa era feita em institutos oficiais e universidades, e o conhecimento era patrimônio da humanidade. Quem o utilizava fazia produtos, etc. Aos poucos, os produtores foram acumulando um grande potencial financeiro que lhes permitiu criar seus próprios centros de pesquisa. Foi assim que surgiram as patentes, e o patrimônio começou a ser propriedade de empresas, que estabeleceram valores que a população não pode pagar. E foi esse patrimônio acumulado que passou a orientar a pesquisa, quer dizer, não se investe para curar doenças do Terceiro Mundo. Investe-se em remédios contra a ansiedade, a impotência, uma série de coisas que têm mercado e que pagam os valores que a indústria impõe.
Tínhamos então de encontrar um mecanismo, uma forma de atender as parcelas da população que não têm acesso aos profissionais de que necessitam. A partir de 1991, começou a se explorar a idéia do agente comunitário de saúde. Já que não temos médico nem enfermeira, vamos qualificar um agente. Isso aos poucos foi progredindo, e hoje temos um sistema que, em resumo, funciona assim: dividimos a população em núcleos de 200 famílias aproximadamente. Entre os moradores se identifica uma pessoa que será treinada, alguém que já atua na comunidade. Essa pessoa (geralmente são mulheres) visita todas as casas uma vez por mês e cadastra a população. Ficamos assim conhecendo todos os moradores, as doenças preexistentes, quem é hipertenso, diabético, epilético, tuberculoso. Quando implantamos isso em São Paulo em 1996, na região de Itaquera, numa área de 60 mil habitantes a Secretaria da Saúde tinha cadastrados sete tuberculosos. Os agentes comunitários encontraram 72. As gestantes mal conseguiam fazer duas consultas de pré-natal e nunca sabiam onde iam dar à luz. Essas situações começaram a ser identificadas. As crianças foram ensinadas a escovar os dentes, as cadernetas de vacinação passaram a ser checadas pelos agentes, caminhando para 100% de vacinação nas áreas.
Esse atendimento, evidentemente, não é satisfatório, não resolve todos os problemas. Por essa razão, criou-se o Programa Saúde da Família, que tive a oportunidade de implantar e expandir. A cada cinco agentes comunitários que atendiam mil famílias, mais ou menos 4 mil pessoas, se agregaram um médico, uma enfermeira e um auxiliar de enfermagem. Assim, essa população tinha seu médico, que conhecia as pessoas, todas cadastradas e acessíveis. Se alguém não pudesse ir ao posto, o médico ou a enfermeira o visitava em casa. Isso foi um grande avanço. Mas ocorreram problemas, pois os médicos não estavam preparados para esse tipo de atividade. Precisavam ser treinados, o que não eliminava o problema, que não tinha resolubilidade. Muitos casos exigiam especialistas e não havia um sistema de especialidades para dar cobertura a esses médicos.
Depois que saí do ministério, fizemos um acordo entre a Fundação Zerbini, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo (InCor), e a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo (a municipal não aceitava) e criamos dois módulos, em Cachoeirinha e em Sapopemba. Este, por exemplo, tem 33 equipes de Saúde da Família que cuidam de 160 mil pessoas cadastradas, cada casa com sua pasta, com a situação dos moradores. E instituímos um centro com 12 especialistas, que dão cobertura e vão treinando os médicos de família. É interessante observar que a especialidade mais procurada é dermatologia. Temos um consultório de oftalmologia que atende das 7 da manhã às 7 da noite, com três profissionais. É outra área muito procurada. Mas isso também não esgota o problema, porque, quando o paciente precisa de internação, a dificuldade é muito grande.
Para se ter uma idéia, fiz um levantamento em 1999 na capital paulista. Tinha feito um estudo semelhante em 1981, quando era secretário. A cidade possuía 3,4 leitos por mil habitantes. Naquela época os Estados Unidos tinham 12, o Japão 13. Depois diminuíram esses números, porque não precisavam tanto. Então nosso pessoal disse: nós também vamos reduzir os leitos. Mas nem tínhamos leitos. É a mania de copiar coisas de fora.
No levantamento de 1999 relacionei os 170 hospitais com 28 mil leitos que temos em São Paulo, levei à Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), e fizemos a distribuição por distritos. A cidade estava com 10 milhões de habitantes em 96 distritos. Então eram 2,8 leitos por mil habitantes, menos portanto que em 1981, pois a população cresceu e não se aumentaram os leitos correspondentemente, a não ser em determinadas áreas. Verificamos que em São Paulo havia 11 distritos com a média de 26 leitos por mil habitantes. Outros 14 distritos tinham na média seis leitos por mil habitantes. Esses dois grupos estão nas áreas melhores da cidade, com 1,8 milhão de pessoas e média de 13 leitos por mil habitantes. Tínhamos também 32 distritos, com 3,9 milhões de pessoas e 1,2 leito por mil habitantes. E mais 39 distritos, com 4,1 milhões de pessoas, que não tinham um leito hospitalar sequer na cidade de São Paulo. É por isso que prontos-socorros e hospitais ficam superlotados.
É por isso também que o Programa Saúde da Família, mesmo com centros de especialistas, não resolve o problema dessas áreas. Propus um leito por mil habitantes nessas regiões. Deviam ser dois, mas propus um, o que daria um total de 4 mil leitos. Se instalássemos, nos locais onde mora o grosso da população, pequenos hospitais de baixa complexidade, que não fazem cirurgia, mas apenas o atendimento de emergência e coisas mais simples, precisaríamos construir 80. Em 1987 se iniciaram as obras de 15 hospitais que somente foram terminadas agora. O de Sapopemba, o último, foi concluído há dois anos. Levamos, portanto, 20 anos para levantar 15 hospitais, é verdade que um pouco maiores, mas 80 hospitais de 50 leitos já disseram que é impossível. Fiz os cálculos: construir e equipar um hospital desses custa não mais de R$ 5 milhões. Os 80 hospitais sairiam por R$ 400 milhões. Será um gasto excessivo? Vários planos de governo usaram recursos muito maiores para salvar instituições falimentares. Para a saúde não há dinheiro.
Estive com o governador e apresentei a proposta. Perguntou quanto custa manter esses hospitais. Informei que custa mais do dobro por ano. Esse é o problema do sistema de saúde público: o valor da manutenção. E os recursos disponíveis são decrescentes.
Em 1986 era reitor da Universidade de São Paulo (USP) o professor José Goldemberg. Numa reunião do Instituto de Estudos Avançados se discutia o orçamento da universidade e o do Hospital das Clínicas. O governo estadual gastava com a USP exatamente o mesmo que destinava ao Hospital das Clínicas, a verba era igual. Digo isso para que se tenha idéia do que gasta um hospital. Hoje, a USP e as outras universidades estaduais contam com 9,17% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), estando, portanto, protegidas da inflação. O Hospital das Clínicas, porém, precisa disputar a partilha do orçamento ano a ano. Hoje, mesmo com as duas fundações que o mantêm e que captam recursos de outras fontes, seu orçamento corresponde à metade do da USP.
Outro dado muito importante: quando se unificou o sistema no Ministério da Saúde, em 1990, o orçamento da saúde equivalia a US$ 11,5 bilhões. Até então, a Previdência Social fornecia 20% a 25% da sua arrecadação para o atendimento, que o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) prestava. Quando houve a unificação, aquela contribuição baixou para 14,5%. E em 1993 o então ministro Antônio Britto zerou a parcela da Previdência para a saúde, e não houve outras fontes que pudessem cobrir os custos. Essa foi a grande crise do setor naquela época. Os hospitais públicos passaram a ser remunerados não com dotações orçamentárias, mas com pagamentos ao Sistema Único de Saúde (SUS). Essa é a origem da crise dos hospitais do Rio de Janeiro, que começaram a receber recursos em níveis sabidamente insuficientes.
Faço parte da comissão de avaliação dos hospitais entregues às organizações sociais, e temos feito reuniões periódicas para examinar o esquema financeiro. O que o SUS contribui cobre 40% das despesas, 60% vêm do orçamento estadual. Então querer que os hospitais públicos funcionem com os recursos que o SUS transfere é absolutamente inviável. Um hospital, além dos recursos de custeio, precisa de 2,5% por ano do valor atualizado do prédio para reformas e adaptações, o que significa que em 40 anos se gasta o que se despendeu na construção. Além disso, ele precisa de 15% por ano do valor atualizado dos equipamentos, porque a obsolescência é muito grande. Ora, os hospitais públicos, universitários ou não, recebem recursos que não cobrem o custeio, e há décadas não têm verbas para investir em equipamento. O resultado é a deterioração.
O Hospital dos Servidores Públicos do Estado do Rio de Janeiro, com 800 leitos, foi o mais importante do país. Em 1995, tinha sido reduzido a 160 leitos, com todo o seu equipamento obsoleto. Fizemos um grande esforço e chegamos a 540. Agora está com 300, enquanto outros hospitais vivem situação pior.
Hoje, na crise da rede privada que presta serviços ao SUS, todas as Santas Casas estão em situação pré-falimentar. Se o governo do estado não ajudar a Santa Casa de São Paulo, ela vai fechar.
Há pessoas que acreditam que se trata de falta de gestão, pois o dinheiro existe. É uma falácia. O ex-ministro José Serra, que em muita coisa apoiei, dizia: "Estamos transferindo os recursos regularmente, em dia". Mas não contava que eles eram insuficientes. Quando ministro, expliquei isso ao presidente, e que precisávamos corrigir a distorção. Ele me pediu para resolver o assunto com Pedro Malan, o ministro da Fazenda. Estudei muito o orçamento, que conheço bem. Hoje, quando dizem que o orçamento de contribuições é maior que o de impostos, acho uma graça. Sempre foi assim. A diferença é que do orçamento de contribuições não sai nada para o Fundo de Participação de Estados e Municípios. Então o governo, quando quer aumentar tributos, sempre faz isso na área das contribuições, pois desse modo não tem de dividir nada com estados e municípios. Ao estudar o orçamento, descobri que depois que se tira o valor destinado aos fundos de participação, e a parcela da educação, que é recurso vinculado, sobrava um volume de recursos dos quais o Ministério da Saúde tinha 51% e o resto, 49%, se distribuía para as 19 outras pastas. Como pleitear mais recursos desse orçamento? Impossível. Então me diziam: "Vamos fazer uma reforma tributária, aumentar a base da arrecadação, combater a sonegação, e aí você terá o necessário". "Mas não posso esperar." Isso era março de 1995. Até dezembro de 1994 havia o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF). Quando se extinguiu esse imposto, não aconteceu nada, não houve nenhum impacto sobre a inflação. Pensei então: esse é um recurso muito interessante, vou propor como contribuição. O ministro Marco Aurélio disse que mudei o sexo do tributo, em vez de imposto chamei de contribuição. Ele não se deu conta de que a contribuição não tem anualidade, pode ser vinculada, o que não é possível fazer com o imposto.
Em 1995 gastei, em números redondos, R$ 15 bilhões. Uma montanha de dinheiro, mas que não é nada, porque precisava ser dividida com 160 milhões de habitantes, o que dá um valor per capita ridículo que não chega a R$ 100. A França despende US$ 1,8 mil per capita/ano, o Canadá US$ 2 mil, os Estados Unidos U$ 4 mil, a Argentina US$ 800. No Brasil, hoje, se juntarmos toda a área privada e pública, não chegamos a US$ 400. Então o que gastamos é ridículo e não dá para prestar o atendimento que a gente pretende.
O presidente me autorizou a levar o assunto adiante. Eu tinha, porém, um pré-requisito: o orçamento da Saúde tinha de ser mantido em valor real, não nominal. Porque em 1995 ainda tivemos 30% de inflação, então em 1996 os valores deveriam ser 19,5% maiores, para ser equivalentes aos de 1994. Além disso, eu queria mais 8% da CPMF para chegar a R$ 28 bilhões ou R$ 29 bilhões, que era o que esperava para 1997.
Hoje, o orçamento nominal do Ministério da Saúde é de R$ 32 bilhões. Com alguns contingenciamentos, vai chegar aos valores que eu queria para 1997. O ministério teve de estabelecer tetos por estados, distribuídos para as instituições. Assim, a Santa Casa tem um teto, mas ela atende acima dele, e esse excesso não é pago. E houve uma violenta campanha contra o ministro.
Quando fomos regulamentar o tributo, entrou um artigo que dizia mais ou menos o seguinte: "Fica a Receita Federal proibida de usar as informações da CPMF para efeito de imposto de renda". Isso é absolutamente inconcebível. É o mesmo que colocar na lei: "Estou sonegando e não posso ser fiscalizado". Foi preciso que Everardo Maciel, secretário da Receita Federal, demonstrasse que, dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca tinham pago imposto de renda. E que havia microempresas, que por definição não podem faturar mais de R$ 120 mil por ano, movimentando R$ 100 milhões. O Congresso autorizou então a Receita a cruzar informações, e a arrecadação, de R$ 7,5 bilhões, passou a R$ 20 bilhões por mês. Mas isso não é o principal. O fundamental é que, quando a CPMF entrou em vigência, retiraram-se do orçamento da Saúde parcelas do Programa de Integração Social (PIS)/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), de participação sobre o lucro líquido, e o orçamento ficou menor. Então a Saúde, que tinha em 1995 22% do orçamento da seguridade, em 1997 viu esse índice reduzido a 18%. E hoje não tem 16%.
Os recursos são, portanto, decrescentes. Ora, com uma população crescente, um avanço tecnológico que não pára, uma indústria farmacêutica que se fortalece, como vamos corrigir as deficiências e as demandas existentes? Não há condição. E ainda dizem: o problema é a gestão. A gestão que se faz com os recursos existentes é um milagre.
As fraudes e as irregularidades foram praticamente abolidas. Na época, até se dizia que o sistema pagava parto de homem, e era verdade. Eu dizia que era defeito de digitação, um erro, porque um fraudador que se preza não vai fazer essa fraude, fácil de descobrir. O que ocorria é que não havia crítica no sistema, fizemos mais de 130 críticas no processamento de contas e hoje ninguém mais fala em fraude.
O modelo que temos hoje do SUS, com descentralização no nível municipal, participação social através de conselhos e toda essa estratégia que foi montada, está funcionando e consolidado pelas conferências nacionais de saúde de 1992, de 1996 e de 2000. Tanto que já estamos no terceiro período presidencial em que não se muda o modelo, porque ele está certo. O que está errado é o subfinanciamento, e para financiá-lo é complicado.
Tenho visto mais recentemente uma participação maior da sociedade, em especial das entidades que têm mais poder. É o sentimento de responsabilidade social que está aumentando. No bairro paulistano de Sapopemba, construímos três centros de saúde com doações da iniciativa privada. Um hospital de 50 leitos está quase pronto, e queremos que funcione como protótipo, para que se veja como isso pode dar certo. Consegui os recursos e os materiais, tudo doado pela iniciativa privada, a manutenção é do governo do estado.
Quando dizem que o Brasil é o país dos impostos, lembro que existe o PIB oficial e o real. Todos os cálculos da carga tributária levam em conta o PIB oficial, mas o real é maior. Só não se sabe quanto. Há quem diga que é o dobro, ou que é 60%. Não sei, mas na verdade há problemas. Quem paga, paga muito, mas muitos não pagam nada. Esse é o grande problema que precisa ser corrigido. No Brasil as pessoas que compram não pedem nota, e é pouco provável que quem vende sem nota exija o documento ao repor seus estoques. Os negócios imobiliários geralmente são passados por valor menor, assim quem compra não precisa declarar a renda e quem vende não registra lucro imobiliário. Muita coisa precisa ser arrumada. A diferença entre o PIB oficial e o real é apropriada por quem faz a concentração de renda. Não conheço país com carga tributária elevada e a concentração de renda que temos. A concentração só existe quando os que geram renda se apropriam dela. É por isso que temos uma parcela da população que vive num país de US$ 30 mil, US$ 40 mil de renda per capita, enquanto um contingente enorme sobrevive numa nação em que esse valor não ultrapassa os US$ 800.