Postado em 29/09/2005
Paulo Vanzolini fala de sua vida de cientista e compositor
CECÍLIA PRADA
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Paulo Emílio Vanzolini é, com Adoniran Barbosa, o dono absoluto do "samba paulistano", há 60 anos. Mas se Adoniran representava o lado pitoresco da população, dos imigrantes italianos, Vanzolini foi sempre o cronista urbano intelectual, sóbrio, melancólico, que cantava a solidão, as manhãs chuvosas, os crimes de amor, o cotidiano da metrópole. Significou para São Paulo o que Noel Rosa significava para o Rio de Janeiro. Só que na personalidade singular desse homem de 81 anos que nos recebe sorridente e simpático em sua casa do bairro de Cambuci, existe uma duplicidade de gênio - ele é, antes de mais nada, um grande cientista, um zoólogo respeitado internacionalmente. Um homem que viveu com intensidade sua vida multiforme, rica em experiências profissionais e pessoais - e que, ao dar um testemunho de sua época, tempera-o com o inconfundível sabor de sua linguagem espontânea, com os seus "casos".
PROBLEMAS BRASILEIROS - O senhor é famoso em dois campos bem diferentes: a música e a ciência. Qual o seu preferido?
Paulo Vanzolini - Não sou músico. Sou um cientista. Minha paixão é a zoologia, minha vocação. Mas sempre gostei de música, comecei a tomar gosto por causa dos programas de rádio. Quando era adolescente passei a freqüentar rodas boêmias, e no início dos anos 40 já comecei a compor, mas nunca fiz música para vender, só porque gosto. Participei de programas de rádio, mas não como músico - falava sobre receitas para emagrecer. Nunca toquei um instrumento. Meus amigos riam de mim, o Paulinho Nogueira protestava por eu não saber a diferença entre tom maior e tom menor. Minha primeira música foi Ronda, que ficou famosa. Mas hoje não gosto mais dela, acho superada. O engraçado é que foi gravada por acaso. A Inezita Barroso foi para o Rio de Janeiro gravar Moda da Pinga, e eu e minha mulher fomos junto, éramos muito amigos. Quando ela acabou de gravar, perguntaram: "E o lado B?" Ela nem sabia que disco tinha lado B. E como não havia pensado nisso, não tinha nenhuma autorização de autor para gravar outra música. O único compositor presente era eu, e improvisamos uma gravação. Ronda depois foi gravada até em japonês. Volta por cima também fez tanto sucesso que acabou registrada no Aurélio como expressão da língua, "dar a volta por cima".
PB - Há quanto tempo não compõe?
Vanzolini - Há uns oito anos. Parou a vontade, a inspiração. Mas em 2003 uma gravadora menor, chamada Biscoito Fino, quis gravar uma caixa com quatro CDs e 52 músicas do meu repertório. Concordei com a condição de eu mesmo escolher os músicos e os intérpretes. Foi um trabalho muito bom, com os "cobras" da madrugada paulistana, meus amigos, como João Macacão, Zé Barbeiro, Izaías do Bandolim, Luizinho 7 Cordas, Ítalo Perón, entre outros. Todos os cantores da família Buarque de Holanda participaram, Chico, Cristina, Miúcha, Ana. E mais o Paulinho Nogueira, que morreu poucos meses depois. E Elton Medeiros, Martinho da Vila, Inezita Barroso, Eduardo Gudin, Virgínia Rosa, Márcia, os Trovadores Urbanos. É uma pena que a gravadora, que trabalhou com um financiamento da Petrobras, não tenha feito uma distribuição melhor. Não se acha essa caixa por aí. Ela se chama Acerto de Contas com Paulo Vanzolini.
PB - Vamos falar de ciências. Como foi despertada sua vocação de zoólogo?
Vanzolini - Quando fiz 10 anos, ganhei uma bicicleta do meu pai. Eu não gostava muito de assistir às aulas. Nunca, em toda a minha vida escolar, nem na universidade, nem em Harvard. Mas então meu pai me prometeu a bicicleta se eu entrasse no ginásio, com boa colocação. E lá fui eu, meu primeiro passeio foi ao Instituto Butantan. Me apaixonei pelas cobras, e essa paixão dura até hoje. Cheguei a ter cobras vivas em casa. Fui diretor do Museu de Zoologia, de 1963 a 1993, mas quando fiz 70 anos me aposentaram compulsoriamente. Mas não deixei de trabalhar nunca. Durante bastante tempo continuei indo diariamente ao museu, do mesmo jeito, das 8:30 às 19 horas. Agora estou com 81 anos, trabalho todos os dias em casa, nas minhas pesquisas, no computador. Eu mesmo, sem secretária, sem nada. E ainda vou duas vezes por semana ao museu. Minha biblioteca está lá, meu material.
PB - Como foi sua formação científica?
Vanzolini - Aos 14 anos, quando estava terminando o ginásio, arranjei um estágio no Instituto Biológico. Comecei a me profissionalizar assim. Fazia o que me mandassem, era uma espécie de segundo auxiliar de cachorro, mas o que mais me interessava eram os trabalhos sobre evolução. Mas a zoologia ainda estava muito atrasada, aqui. Quando fui fazer o Ph.D. em Harvard tive um choque cultural. Descobri o que era a zoologia moderna e quase desisti. Eu me senti um ignorante de pai e mãe e achava que teria de ler dois livros ao mesmo tempo, um com cada olho, para tirar o atraso. Eu era médico formado na USP porque queria estudar vertebrados, precisava do curso básico de anatomia, histologia, fisiologia e embriologia. No curso de zoologia da USP, o professor só dava invertebrados.
PB - E hoje, como é? A formação no exterior é ainda indispensável para um cientista?
Vanzolini - Para quem quer ir para o primeiro time, sim. Principalmente no meu campo. O ensino da zoologia está muito mal, aqui. Eu formei 36 doutores, no Brasil. Mas, quando comecei a trabalhar com a pós, os estudantes eram formados para a pesquisa, tinham de produzir uma tese que lhes dava o domínio da literatura específica, da problemática e da metodologia. E, se a tese não fosse publicada, não valia nada. Hoje, não é assim. As pessoas cursam a universidade para arranjar emprego. Das últimas quatro ou cinco teses que vi na USP eu não publicaria nenhuma. E a USP ainda é a melhor de todas as universidades brasileiras. Em genética é muito boa, em biológicas razoavelmente boa, em botânica muito ruim. A boa é a Unicamp, em botânica, mas é uma pena, porque toda essa universidade está sendo orientada num sentido muito marqueteiro. Somando as universidades brasileiras a gente tem um lugar bom para trabalhar, dá para fazer uma pós-graduação segundo o sistema russo, espanhol, alemão. Mas não há nada comparável a uma pós-graduação nos Estados Unidos. Nem na Inglaterra, mais. Na Alemanha, então, fizeram uma grande burrada - tiraram a pesquisa das universidades, que hoje são só escolas profissionais. Tem outra coisa, também, acho que hoje há muito desperdício de dinheiro nas fundações, como na Fapesp, no CNPq, etc. Não há falta de verbas, pelo contrário. Elas estão jogando dinheiro pela janela, são milionárias. Outro dia vi no Butantan um projeto sobre gambás, de um rapaz que não sabe nada, e que ganhou R$ 800 mil. Eu nunca tive nem R$ 80 mil para minhas pesquisas.
PB - Quando foi para Harvard, como foi sua acolhida lá?
Vanzolini - Eu me formei médico em 1946 e fui para Harvard em 1947. Fui muito bem acolhido, me deram todo apoio. Até aconteceu uma coisa engraçada. O professor que prescrevia os cursos que eu deveria fazer viu meu currículo e as notas que eu havia tirado na Faculdade de Medicina da USP. Foi consultar um livro da sua estante, e disse: "É uma faculdade classe A. Você está dispensado de metade dos créditos". E os critérios de Harvard são muito exigentes, como se sabe. Então pude fazer o Ph.D. em cinco semestres, o que é um recorde absoluto. Meu chefe era Alfred Romer, o maior paleontólogo de sua geração. Todo grande cientista que passava pelos Estados Unidos ia visitá-lo. Eu vivia na casa dele, sabia qual a importância do visitante pelo menu, porque Romer era um mão-de-vaca, para os alunos dava macarrão em lata, para as celebridades, baked tender. Até no uísque havia diferença. Assim fiquei conhecendo os maiores cientistas, que tinham sempre muito interesse pelo Brasil, queriam saber como vivíamos, como estudávamos aqui. O cientista norte-americano é muito generoso, quer sempre partilhar o que sabe. Ao passo que a escola científica européia é baseada na mesquinharia, na pequena vantagem.
PB - Não quis continuar trabalhando nos Estados Unidos?
Vanzolini - Não, isso estava fora de questão. Eu estudei lá para ser um professor brasileiro. Meus professores me orientaram para isso, me deram caixas e caixas de livros para que eu pudesse formar uma biblioteca, aqui. Mas estou sempre em contato com os especialistas, em todo o mundo. Hoje sou pesquisador associado do Museu de História Natural de Nova York e da Smithsonian Institution, de Washington. Minha vida no Brasil foi muito interessante, viajei por todo o país trabalhando, fazendo levantamentos, coletando bichos. E conheço também todos os países da América do Sul. Cheguei a ter uma expedição permanente na Amazônia. O cineasta Ricardo Dias viajou comigo de barco fazendo um documentário, No Rio das Amazonas. Fizemos um levantamento completo das populações ribeirinhas, com todos os dados de sua vida cotidiana. Conheço toda a Amazônia, a brasileira, a peruana, a equatoriana. Percorri 11 mil quilômetros de rios. Durante o tempo da ditadura militar tive problemas - chegaram a me prender em Porto Velho, no fim tive de entregar meu barco à polícia, que o deixou apodrecer e afundar. Um dia, fui chamado a Brasília para uma conversa com o general Golberi, que era o chefe da Casa Civil do governo Geisel. Ele me disse que meu trabalho na Amazônia estava sendo acompanhado com grande interesse, mas havia um problema - eu só escrevia em inglês, e os oficiais não entendiam. Eu respondi: "General, quem não lê inglês não entende meu trabalho nem em português". Ele não gostou, disse que minha atitude era muito arriscada. Eu falei: "Depende de quem vai primeiro, vocês ou nós, né?"
PB - O senhor foi militante político em alguma época de sua vida?
Vanzolini - Sou de esquerda, socialista convicto, mas não tenho militância, não pertenço a sigla nenhuma. Sou antimilitarista e simpatizante do Partido Socialista, que acompanhei desde sua fundação. E, quando era estudante, uma vez apanhei feio dos comunistas, em 1945. Uma noite me pegaram e me encheram de pontapés. Levei uma semana para me recuperar. Por ser socialista era perseguido pelos dois lados, comunistas e conservadores. Meu avô, italiano da Calábria, era anarquista, veio para o Brasil fugido da polícia. Foi médico de navio e desembarcou no Brasil em 1870. Comprou uma fazenda no Paraná e chegou a ser deputado. Eu não gosto quando me consideram oriundo. Viviam me ligando do consulado da Itália, era oriundi pra cá, oriundi pra lá. Um dia me enchi, disse que era brasileiro, e não de família de imigrantes. Se minha gente tinha deixado a Itália foi porque estava muito mal lá, e não bem. Eu tenho mania de fazer piadas, as pessoas não entendem. Um dia estava falando com uma funcionária do consulado e disse: "Olhe, eu não gosto de italiano, quer saber? No tempo da guerra da Abissínia, eu era a favor dos abissínios". E ela respondeu: "Não faz mal se o senhor é abissínio, é italiano assim mesmo". Outra vez me telefonou uma funcionária do cerimonial do Palácio do Governo: "O senhor acaba de ser agraciado com a Ordem do Ipiranga". E eu que amo tanto o meu Cambuci perguntei: "Minha filha, não tem uma Ordem do Cambuci?", e ela falou, séria: "Um momento, vou ver". Aí como não tinha do Cambuci aceitei mesmo a do Ipiranga.
PB - Voltando ao seu trabalho de zoólogo, como foi que ele se desenvolveu no Brasil, quando regressou de Harvard?
Vanzolini - Quando cheguei dos Estados Unidos eu era o único zoólogo brasileiro com Ph.D. Quis fazer um concurso para catedrático, mas fui avisado de que ia perder porque somente os livres-docentes podiam ter acesso à cátedra. Então fiquei automaticamente livre-docente e comecei a orientar doutorandos. Eu gostava disso. Tinha fogo sagrado. Fiz outros trabalhos também, no período do governo de Carvalho Pinto, de quem fui assessor. Acho que foi o melhor período da minha vida. Ele me conhecia desde menino, da casa do meu pai, que era professor da Politécnica e promovia sempre reuniões com todo o meio universitário da época. Fui eu que redigi, a pedido de Carvalho Pinto, a lei ordinária que estabeleceu a Fapesp. A Constituição do estado dizia, em suas disposições transitórias, que o governo devia dedicar não menos de 0,5% de sua receita tributária a uma fundação de amparo à pesquisa. Eu fazia peritagens também, para o governo do estado. Fiz o levantamento da região de Urubupungá. Nessa época chegou um grande empreiteiro e me perguntou: "Paulo, é verdade que você esteve na cachoeira do rio Urucuia? Subiu muito peixe?" Eu respondi: "Subiu demais". Ele me disse: "Vamos comprar?" Eu: "Onde se viu comprar cachoeira?" Ele: "Não, não é assim, tem de ter escritura, cerca, terra, casa, tomador de conta, tudo isso vale uma sociedade, não?" Eu respondi: "Onde você viu perito do governo fazer sociedade com empreiteiro?" Ele: "Já me falaram que você é mesmo um desmancha-prazeres". Também no tempo em que participei do Projeto Pólo Noroeste do CNPq causei um grande escândalo: sobraram diárias e eu devolvi o dinheiro.
PB - O senhor disse que desde cedo começou a se interessar pelo estudo da evolução. Como surgiu esse interesse?
Vanzolini - Era um assunto com o qual pouca gente lidava. Eu queria conhecer a origem das espécies tropicais. Quando voltei dos Estados Unidos com essas idéias na cabeça era tido como pretensioso pelos colegas brasileiros, porque a zoologia naquele tempo só servia para identificar bicho. Mas tive a sorte de conhecer aqui em São Paulo um gênio que foi uma das maiores influências da minha vida, o geomorfólogo Aziz Nacib Ab’Sáber. Ele abriu minha cabeça, me ensinou muito. Meu trabalho mais conhecido, a teoria dos refúgios, de 1970, fundamentou-se nas descobertas de Aziz sobre os paleoclimas. Porque o clima do mundo, e principalmente do Brasil e da América do Sul, variou rápida e extremamente. Essa é a razão da grande diversidade animal no Brasil. Por exemplo, na mata tropical o clima pode ir se tornando muito seco, e a mata vai desaparecendo, num período digamos de 10 mil ou 20 mil anos, mas há sempre manchas isoladas de floresta, no meio da caatinga ou do cerrado. Depois, vem um tempo mais úmido e a floresta coalesce, mas nela ficam também vestígios, refúgios do tipo da caatinga e do cerrado. Esse jogo do clima indo e voltando, e da vegetação acompanhando o clima, é a origem dessa biodiversidade espantosa que existe. As espécies se diferenciam quando ocorre essa redução do espaço, provocada por alterações no clima. Cada uma dessas formações aprisiona os animais em seu interior e eles continuam fiéis à sua ecologia. E por ficarem presos e não se misturarem com outras espécies, diferenciam-se no melhor estilo darwiniano.
PB - Uma última pergunta: concorda com o que dizem por aí, que a velhice é "a melhor idade"?
Vanzolini - Não concordo. Como é possível dizer isso se não tenho a mesma força física necessária para trabalhar como antes, viajando, fazendo expedições? Para entrar no mato a gente precisa ter resistência física. Essa limitação me deixa muito triste. Também não posso mais beber cachaça de noite, como antes. Mas, mentalmente, sim, continuo muito produtivo, continuo a trabalhar muito bem. Muito motivado. Agora, quero mandar um recado para o Danilo, o diretor do Sesc, posso? Diga para ele que quero um Sesc aqui no Cambuci, para eu freqüentar, é o melhor lugar para os músicos, é uma maravilha.
PB - Mas tem o da Vila Mariana, que é perto.
Vanzolini - É perto mas não é aqui, na minha casa, no Cambuci. Eu adoro este bairro. Aqui tenho tudo, vivo em um lugar sossegado, mas posso ir a pé a alguns bares, restaurantes, ouvir música, encontrar amigos. E adoro esta cidade, dizem que ela é desumana, mas não acho. Ela é muito estimulante intelectualmente, mas também nos permite ter privacidade, viver bem.