Postado em 12/09/2005
A língua afiada de Glauco Mattoso, poeta, tradutor e produtor musical
CARLOS JULIANO BARROS
Pedro José Ferreira da Silva abre a porta do apartamento onde vive há 23 anos, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Anda pela sala a passos lentos e um tanto vacilantes, tateando os móveis que encontra pelo caminho. Finalmente, acomoda seu corpanzil numa poltrona de couro marrom, em que se sente bem à vontade para conversar. Com sua fala grave, sem nunca embaralhar as palavras, ele conta que passa a maior parte do tempo dentro de casa. Às segundas-feiras, um profissional especializado o conduz à farmácia e ao correio, para ajudá-lo nessas tarefas rotineiras, porém indispensáveis, que ele, um bancário aposentado, cumpre geralmente sem ser reconhecido por ninguém.
Assim como aconteceu ao ainda menino Ray Charles, que nem sonhava em se tornar um dos maiores astros da música norte-americana quando ficou completamente cego, o glaucoma que acompanha Pedro desde o nascimento também derrotou seus olhos. No começo de 1995, ao deixar o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, um dos mais modernos do país, ele precisaria se acostumar a um destino anunciado já na infância, e que o preocupava desde os primeiros contos e poemas que compôs.
Pedro é fã declarado do humor britânico, pois acha que os ingleses conseguem "encarar as piores desgraças pelo lado mais grotesco". Talvez seja esse um dos motivos que o levaram a assumir a identidade artística que o consagraria no universo da literatura: Glauco Mattoso. Na verdade, é antes de tudo uma marca que consiste num engenhoso trocadilho com o nome da doença que o atormenta desde sempre, além de uma homenagem a uma de suas maiores influências, o poeta baiano Gregório de Matos, que ganhou o apelido de Boca do Inferno pelas sátiras que tanto alvoroço causavam no Brasil do século 17.
Hoje, aos 54 anos de idade, Glauco - que com certeza suplantou Pedro - garante que já colocou para fora a carga mais pesada da revolta que tomou conta dele depois de ser submetido a quase uma dezena de cirurgias, em vão, a fim de deter a cegueira. Parece bem adaptado ao cotidiano que seus genes lhe impuseram. "Ele é um escritor, um animal mental que vive entre as paredes do crânio: essa é a prisão inicial que o encerra", afirma Luiz Roberto Guedes, um amigo publicitário e também escritor que o conhece há pelo menos três décadas.
Glauco é considerado pela crítica especializada um dos principais herdeiros dessa linhagem poética irreverente e libidinosa iniciada, aqui no Brasil, por Gregório de Matos. Também pode ser colocado no mesmo time do português Bocage, devido à língua afiada e aos versos obscenos. "O meu diferencial é o tempo a que pertenço. Sou produto do rock, da contracultura, do gibi. Estou apenas reciclando algo que já fizeram. Ninguém pode ter a pretensão de achar que descobriu a pólvora", explica.
Ele não gosta de ser enquadrado em nenhuma categoria, porque, na sua opinião, não há rótulos que consigam dar conta de sua complexa personalidade. A não ser a noção de queer, um termo inglês usado em estudos recentes sobre comportamento humano para designar alguém esquisito, fora do padrão. Glauco é poeta, tradutor, produtor musical. Até aí, nada de mais.
Ele também é cego, homossexual, sadomasoquista, podólatra - quer dizer, uma pessoa que tem fetichismo por pés - e faz questão de que sua obra seja fiel a seus gostos. "Mas duvido que ela entre no repertório de um vestibular, por exemplo", brinca Jorge Schwartz, amigo e professor de literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo (USP).
Primeiros passos
O problema nos olhos fez de Glauco um menino diferente, já que não podia se dedicar às brincadeiras típicas da infância. Desde muito cedo, ele aprendeu a preencher seu tempo não com piões, pipas ou partidas de futebol, mas quase sempre com livros. Começou pelos gibis, porém não demorou a se interessar por clássicos da literatura nacional, como Monteiro Lobato e Mário de Andrade. Seu pai trabalhava como técnico gráfico de uma das mais importantes editoras daquela segunda metade da década de 60 - a Brasiliense - e tinha o costume de levar para casa um exemplar das obras que ajudava a imprimir.
"Desse jeito, ele formou uma boa biblioteca, e então passei a devorar tudo aquilo", lembra Glauco. Isso o distanciava dos garotos da sua faixa etária e, de acordo com ele, esse período de sua vida justifica a fixação por temas recorrentes nos poemas que escreve, como o sexo e a adoração por pés, por exemplo. Não raras vezes, ao voltar da escola, ele era cercado por colegas não muito amigáveis que colocavam em prática aquele sadismo das brincadeiras de criança de que a maioria das pessoas pouco ou quase nada fala, por não ser politicamente correto - o que, por certo, não tem lugar na produção de Glauco.
Ele é paulistano convicto, com ascendência de italianos, e não se imagina morando em nenhum outro lugar que não possa ser chamado de metrópole. Com sua família, passou por diversos bairros da capital paulista entre a Vila Mariana e a Mooca. Apesar da vontade dos pais de ver o filho estudioso formar-se advogado, ele - que nos sonhos mais íntimos cultivava o desejo de montar uma banda de rock, como os Beatles que tanto escutava - novamente se rendeu à paixão pelos livros e cursou a faculdade de biblioteconomia. Foi por esse tempo que começou a rabiscar seus primeiros escritos, influenciado principalmente pelo surrealismo de André Breton.
"Em 1975, quando fui à casa dele pela primeira vez", relembra Guedes, "fiquei muito impressionado com a qualidade dos textos. Havia um conto em que dom Pedro II gravava seu primeiro LP. Narrava uma sessão no estúdio com o imperador e outros músicos importantes como Patápio Silva, contemporâneo de Chiquinha Gonzaga, que estava na história também. Ele inventou ainda um tecladista chamado Remington, o mesmo nome da máquina de escrever."
Logo depois de concluir a faculdade, na segunda metade da década de 1970, Glauco mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficaria por aproximadamente dois anos, trabalhando na biblioteca do Banco do Brasil. Apesar da identificação com São Paulo, sua terra natal, em que havia sido batizado com o nome bíblico de Pedro, na capital fluminense ele nasceu pela segunda vez: nas rodas da alta literatura e da nata da intelectualidade brasileira, ele se apresentou como Glauco Mattoso.
"Jornal Dobrabil"
"Quando o Glauco aparece, a grande imprensa não era mais censurada, os presos políticos não eram mais torturados, as manifestações pela redemocratização, inclusive leituras públicas de poesia, já haviam ocorrido, e o AI-5 estava em vias de ser extinto. Eu o associo a esse ambiente de abertura, antiautoritário, em favor de mais liberdade", analisa o poeta paulistano Claudio Willer.
Nos anos 70, o Rio de Janeiro já não era a capital administrativa do país, mas ainda representava o centro cultural do Brasil. Escritores, artistas plásticos, músicos, intelectuais de peso. No pouco tempo em que ficou por lá, morando no boêmio bairro de Santa Teresa, que naquele tempo parecia mais um reduto hippie, Glauco travou contato até com membros da Academia Brasileira de Letras, como Antônio Houaiss.
As características mais marcantes do começo de sua carreira também são reflexo das metamorfoses artísticas que o país ainda estava digerindo. Caetano Veloso e Gilberto Gil, por exemplo, propunham a mistura de ritmos genuinamente brasileiros com a batida do rock americano, uma espécie de releitura da antropofagia idealizada por Oswald de Andrade. Na literatura, o concretismo - criado por Décio Pignatari e pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos - defendia uma nova forma de fazer poesia, decretando a "morte" do verso convencional ao mostrar a importância da disposição das palavras no papel como forma de transmitir uma mensagem. "Glauco é totalmente vinculado à Tropicália, foi um herdeiro daquele movimento. Além disso, na questão da espacialização da poesia, do uso artístico da máquina de escrever, pode-se perceber a influência do concretismo", analisa Schwartz.
Com o processo de abertura política, publicações que antes eram perseguidas pela ditadura militar, como os jornais "Movimento" e "Pasquim", passaram a ter mais liberdade. "Naquela época, o circuito alternativo era muito impulsionado pela correspondência. Além disso, havia uma modalidade artística chamada arte-postal ou poema-postal. Eu trocava muitas cartas com os amigos de São Paulo. Então, a idéia de colocar meus poemas em uma folha, diagramados à minha maneira, nasceu naturalmente", conta Glauco. Dessa forma espontânea surgiu o "Jornal Dobrabil", que, nos tempos áureos, era enviado pelo correio em um envelope comum para quase duas centenas de pessoas. Representava também uma sátira à grande imprensa e ao veículo de maior expressão entre a elite intelectual naquele período: o "Jornal do Brasil".
Como ele próprio revela, meio por brincadeira, "se não tive veleidades literárias, tive (como todo mundo) vaidades". Essa é uma honesta explicação para o fato de mandar seu jornal a figuras como Millôr Fernandes e Tom Jobim. "Sem dúvida, o ‘Dobrabil’ fez o nome dele porque chegava aos chamados formadores de opinião. Na verdade, foi o primeiro fanzine do país. Era artesanal e absolutamente amador, no bom sentido, por ser feito com paixão", afirma Frederico Barbosa, organizador da Coleção Alguidar, da Landy Editora. No ano passado, ela lançou a antologia Poesia Digesta, um balanço de 30 anos da obra de Glauco.
Antes de mostrar um poeta de qualidade, um tanto quanto erudito, o primeiro olhar sobre o "Dobrabil" revelava a princípio um verdadeiro gênio da máquina de escrever. Glauco deixava que a folha de papel dormisse por dias em sua Olivetti, enquanto as idéias para preenchê-la iam brotando, como se lentamente pichasse um muro. Criava efeitos visuais impressionantes para a sua poesia utilizando apenas a letra "o" minúscula e explorando recursos da máquina com que a maioria dos datilógrafos nem podiam sonhar. "Ele é um gráfico por excelência, com uma idéia absolutamente original. Além disso, do ponto de vista do conteúdo, era muito arrojado, transgressivo e irreverente - alguém que de fato conhecia literatura. E há certas peculiaridades, como a questão da podolatria e do sadomasoquismo, que dão um colorido diferente à sua obra", comenta Schwartz.
Mas Glauco não foi o primeiro a apostar e a ganhar notoriedade no circuito alternativo de literatura, no país. Em 1976, quando ele ainda não havia lançado o "Jornal Dobrabil", a pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda publicou a coletânea 26 Poetas Hoje, livro que é considerado o marco da geração de autores imortalizada pelo rótulo de marginal, e de que se destacam Torquato Neto, Paulo Leminski e Chacal. "Assim como eu, esses autores estavam lutando contra as mesmas dificuldades políticas e culturais, contra uma espécie de feudo criado pelos medalhões literários da época, como Carlos Drummond de Andrade. Quem não participasse da panelinha dos monstros sagrados não saía por uma editora. Eu me identifico com os marginais porque publicávamos nossos livros com recursos próprios e não estávamos nem aí para as editoras", afirma Glauco.
"Na década de 70, quem era fã de poesia concreta geralmente não gostava da marginal, era um clima bem sectário. Mas ele conseguiu unir o espírito iconoclasta e a postura de destruir barreiras típicos dos marginais ao rigor estético dos concretos", pondera Barbosa. Contudo, é a própria personalidade de Glauco que o diferencia das manifestações artísticas daquela época. "Os marginais não se preocupavam em ser fora do padrão da geração deles, porque estavam irmanados com várias outras pessoas que também contestavam os rumos da arte e o regime político. Porém, eu estava isolado pela deficiência visual, pelas preferências sexuais e pelos meus gostos", resume Glauco.
Luz e trevas, trevas e luz
Era setembro de 1981, e Luiz Roberto Guedes não poderia deixar de prestigiar o lançamento do livro em que o criador do "Dobrabil" finalmente reunia as 53 edições - apesar de sempre assinalar no expediente o "número hum"- daquele jornal desbocado, cheio de tiradas sobre políticos e expoentes da intelectualidade brasileira. O Spazio Pirandello, um restaurante na Rua Augusta, de ambiente cult, estava lotado.
Ele se impressionou com a movimentação e ficou ainda mais espantado quando percebeu que um carro da TV Bandeirantes tinha estacionado em frente ao local, onde também se encontravam, entre outros, o cineasta Jean-Claude Bernardet e o poeta Augusto de Campos, que inclusive havia feito um poema para prefaciar a obra. A capa trazia algumas ilustrações que poderiam chocar as mentes mais moralistas, principalmente em um país que ainda estava sob o controle dos militares. Mesmo assim, Glauco conseguiu chamar a atenção da imprensa, e Guedes teve a certeza de que o amigo havia se transformado, sim, em uma celebridade. "O ‘Dobrabil’ o tornou conhecido no meio em que realmente importa, que é entre seus pares", garante. Ele estava tão pop que três anos depois Caetano Veloso, um dos destinatários do fanzine marretado na Olivetti, compôs uma música chamada Língua em que cantava: "Adoro nomes/ Nomes em ã/ De coisas como rã e ímã, ímã, ímã.../ Nomes de nomes como Scarlet Moon De Chevalier,/ Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé".
Mas, com o passar dos anos, o antigo fantasma da cegueira voltava a assombrar o poeta que escolhera para si o mesmo nome da doença que o atormentava. "Desde a adolescência, quando comecei a usar óculos, percebi que a medicina não iria fazer nada por mim. Então, passei a me defrontar com uma questão grave: o suicídio. Até determinado momento, achei que se perdesse a visão teria de me matar. Depois fui amadurecendo e percebi que essa derrota poderia ser convertida em mais criatividade", conta Glauco.
Em 1995, ele se submeteu à derradeira operação que não foi capaz de salvar seus olhos. Na verdade, eles já se encontravam havia alguns anos bem comprometidos, tanto que seu último livro anterior à cirurgia tinha sido publicado em 1992. Como já se podia esperar, com a confirmação do destino que de todas as formas tentou evitar, Glauco se retraiu bastante. Os amigos mais próximos ficaram preocupados com aquelas inquietações depressivas. Guedes, por exemplo, procurava sempre visitá-lo. Certa vez, por telefone, chegou a ler um capítulo inteiro de um livro que narrava os bastidores da gravação de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um dos mais importantes discos dos Beatles.
Dois anos depois, Jorge Schwartz fez uma proposta de trabalho que, em certa medida, revolucionou a nova vida de Glauco: a tradução de Fervor de Buenos Aires, obra de estréia do grande escritor argentino Jorge Luis Borges - que curiosamente também ficara cego. Aos domingos, falando-se por telefone, Glauco vertia para o português os versos lidos por Schwartz, que também registrava no computador o que o amigo lhe ditava. "O trabalho certamente despertou-o para a possibilidade de voltar a escrever poesia. Ganhamos o Prêmio Jabuti de tradução, um dos mais importantes do país. Isso também o tirou do ostracismo", completa Schwartz.
O próprio Glauco divide sua poesia em duas fases: a visual e a cega. Na primeira, nota-se uma profunda influência da estética concretista, como se vê no "Dobrabil". Entretanto, com a perda da visão, ele foi obrigado a desenvolver sua capacidade de memorização e, para isso, investiu na composição de sonetos. Além disso, com a ajuda de um programa de computador concebido especialmente para cegos, ele pôde retomar a atividade de escrever. Os poemas compostos e decorados geralmente em madrugadas insones eram registrados assim que ele acordava. Chegou à incrível marca de mil sonetos em apenas quatro anos. "Era um projeto, mas eu não esperava terminar em tão pouco tempo", admite.
Atualmente, Glauco ostenta um semblante tranqüilo. Ele tem Akira, um professor de inglês com quem vive há alguns anos. Deixou de lado os sonetos e está trabalhando em contos, além de um romance. A atividade mental que o confina, como diz Guedes, desafia-o mais do que a perda da visão, e ele parece ter afastado as idéias que tanto preocupavam seus amigos. "É raro o dia em que não pense nele. Sempre que, por um motivo ou outro, minha vida é especialmente solicitada pelo milagre da visão, penso no Glauco e no preço que ele paga por seu extraordinário talento. Os deuses, todos sabemos, são ciumentos", conclui Millôr Fernandes, a quem Glauco tem como um de seus maiores exemplos.