Postado em 14/10/2005
Vale do Jequitinhonha atrai turistas e encanta com seu artesanato
HERBERT CARVALHO
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Miséria, migração, fome e abandono. Essas estão deixando de ser as características do vale do Jequitinhonha, a mais pobre e sofrida região do semi-árido de Minas Gerais, que ocupa uma área de 79 mil quilômetros quadrados no nordeste do estado, onde vive uma população de cerca de 900 mil habitantes, distribuída por 56 municípios.
Programas públicos e de organizações não-governamentais (ONGs), cooperativas de lavradores e associações de artesãos, parcerias com empresas e até com um segmento étnico - a comunidade judaica brasileira - começam a mudar a face daquele que já foi chamado de "vale da miséria" por seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) médio de 0,5%, comparável apenas aos dos países africanos mais atrasados.
Um dos sintomas desse despertar de uma letargia secular é o número cada vez maior de visitantes que tem por destino não apenas Diamantina - cujo conjunto arquitetônico e histórico lhe valeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, conferido pela Organização das Nações Unidas (ONU) - mas também cidades menos conhecidas, integrantes de um circuito que vem sendo chamado de turismo solidário.
São municípios como Turmalina e Berilo, que ostentam em seus nomes o passado de mineração de pedras preciosas e semipreciosas, e outros como Minas Novas, Chapada do Norte, Araçuaí e Itinga, que se estendem a partir de Diamantina pela BR-367 até Itaobim e Ponto dos Volantes, já no caminho de volta pela BR-116. Todos têm em comum paisagens do rio Jequitinhonha e seus afluentes, igrejas históricas e casarões como o raro exemplar de três andares acima do térreo que abriga a Casa da Cultura de Minas Novas e, principalmente, o esplendor de um artesanato que passa pela tecelagem e pela cestaria, para atingir na cerâmica o status de obra de arte.
Com origem na cultura ancestral indígena e exercida em sua maioria por mulheres, a técnica de tirar exclusivamente do barro peças modeladas à mão e coloridas sem nenhuma pigmentação artificial obteve o reconhecimento internacional: uma boneca de cerâmica, assinada por Isabel Mendes da Cunha, abocanhou o Prêmio Unesco de Artesanato 2004 para a América Latina e Caribe, sagrando-se campeã entre 90 trabalhos de 16 países.
As paneleiras
No entanto, até chegar ao grande momento, em dezembro deste ano, quando a octogenária ceramista dona Isabel for a Paris receber seu merecido prêmio de US$ 5 mil, muitas mulheres, conhecidas como paneleiras, terão se dedicado por gerações a complementar o orçamento familiar confeccionando e depois vendendo nas feiras moringas, vasilhas e potes cozidos em rudimentares fornos a lenha. Eram - e são até hoje - filhas, esposas ou viúvas de lavradores cujas magras roças, castigadas pela seca no outono e no inverno e por furiosas enchentes no verão, nem mesmo podem ser caracterizadas como agricultura de subsistência.
A própria e hoje famosa dona Isabel mais parece uma personagem saída das páginas de Grande Sertão: Veredas, e não apenas pelo falar característico daquela gente sertaneja. Nascida em Itinga em 1924, teve ao todo 20 irmãos, nove do primeiro casamento do pai lavrador, outros 11 do segundo. Ela conta: "A gente vivia em fazenda dos outros. Papai levava os meninos grandes com ele para a roça. Enquanto minha mãe fazia panelas, eu olhava os mais pequenos". Quando os irmãos dormiam, ela pegava escondido um pouco de barro e fazia objetos como cavalinhos e cavaleiros para brincar. "Via minha mãe trabalhando o barro e fazia de imitação."
Assim, aprendendo um ofício que se transmite de mãe para filha, dona Isabel começou modelando bois, passarinhos pousados em galhos e pequenos presépios, que recebiam acabamento de tabatinga (barro branco). Quando ficou viúva, passou a fazer, no esforço para fugir da penúria da roça e criar os quatro filhos, potes, travessas, aparelhos de jantar e jogos para feijoada, que vendia nas feiras da região. Já nessa época suas produções se destacavam pela criatividade e pelo capricho na modelagem e decoração das peças.
Arte popular
Foi na década de 1970, quando se mudou para a comunidade de Santana do Araçuaí, no município de Ponto dos Volantes, onde vive até hoje, que dona Isabel deu o grande salto de qualidade da limitada produção de utilidades domésticas ou meramente decorativas para obras que se situam na fronteira entre a arte popular e aquela tida como erudita, cotada em dólares e com direito a figurar em catálogos, museus e exposições. Tinha 54 anos ao ser reconhecida como artista.
Retomando o sonho da infância paupérrima, quando, por falta de bonecas, fazia as suas de sabugo, com um paninho na cintura e flores de enfeite, passou a produzir figuras que chegavam a ter mais de 1 metro de altura. Eram noivas vestidas de branco com buquês, noivos elegantes de terno e gravata, madrinhas e mulheres amamentando.
Para ampliar o tamanho das peças, dona Isabel aumentou sozinha a dimensão dos seus fornos. Inicialmente, essas figuras maiores tinham a cabeça destacável, como acontece com a moringa e sua tampa, elementos que estavam na origem do processo. Com o tempo, as cabeças se integraram ao corpo, perdendo os vestígios do utilitarismo rural para configurar autênticas esculturas de padrão estético urbano e universal.
A expressão extraordinária da fisionomia cabocla das mulheres resulta da diversificação dos tons de barro rosa, cinza, vermelho e amarelo, misturados para a obtenção de outros matizes. A pintura é feita com "água de barro", um corante natural produzido pela destilação da terra, gota a gota, como constataram desconfiados compradores que passaram dias acompanhando seu trabalho, para se certificar de que todo o processo era mesmo artesanal. O segredo de dona Isabel para atingir a deslumbrante cor final está na experiência de quem sabe que "o barro cinza fica da cor da pele da pessoa morena depois da queima", e na paciência com que ela esfrega as peças com uma flanela.
O acabamento das bonecas é esmerado: elas têm cílios, unhas e lábios pintados, penteados impecáveis, brincos, colares e até guirlandas de flores, num glamour paradoxal para quem convive com uma triste realidade em que as condições precárias de saneamento ocasionam a propagação de moléstias endêmicas como a doença de Chagas e a esquistossomose. São mulheres ricas ou pobres? Tanto umas como outras, já que para dona Isabel "todo mundo é filho de Deus".
Escola de cerâmica
As bonecas de dona Isabel foram "descobertas" em 1978, quando ocorreu uma grande melhoria na vida dos artesãos locais, com a criação da Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale). A entidade recolhia a produção dos artistas e a revendia em Belo Horizonte. Hoje esse artesanato está disponível em São Paulo e Rio de Janeiro e chega à Europa e ao Japão levado por turistas que mal conseguem pronunciar o nome do rio, cujo significado é "armadilha para peixes", na língua tupi.
Como é comum entre a gente do povo, a mestre Isabel repassou seu conhecimento a todos os que a cercam, formando uma verdadeira escola. Tornaram-se ceramistas como ela as filhas Maria Madalena, Glória Maria e Rita. O filho, Amadeu, já ajudava a mãe quando ainda era lavrador e hoje se dedica ao artesanato ao lado da esposa, Mercina. João Pereira de Andrade, o genro casado com Glória Maria, desenvolveu uma temática própria, que inclui mulheres mais sensuais, parcialmente desnudas, moças na janela, grávidas e meninos pobres. A neta, Andréa Pereira de Andrade, também não nega o DNA: apesar de estudar artes plásticas na universidade, prefere os toscos instrumentos de trabalho da família, como a faquinha, a cuia e o sabugo de milho para alisar a superfície de suas pequenas, porém personalizadas e requintadas, esculturas.
Fora da família merecem destaque entre suas pupilas Placedina Fernandes Nascimento, morta precocemente e que produzia fisionomias dramáticas de mães amamentando, além de Delmira Ferreira de Oliveira, cujo principal trabalho são ex-votos, especialmente retratos femininos também conhecidos como "cabeças de milagre". A maior parte desses e de outros seguidores de dona Isabel integram a Associação dos Artesãos de Santana do Araçuaí, que promove oficinas e comercializa a produção utilitária ou decorativa de seus associados.
Atualmente, dona Isabel só trabalha sob encomenda. Quem tem uma peça sua não vende facilmente, muito menos pelo valor que pagou, já que a grande procura fez os preços subirem. "Antes era baratinho, mas agora custo a vender porque custo a fazer. A gente vai enfraquecendo e não dá conta das encomendas que chegam", diz a pioneira, acrescentando que "Deus me deu tudo, menos leitura, porque na roça não tinha escola". Não tem até hoje, se considerarmos que no vale do Jequitinhonha, distante 650 quilômetros de Belo Horizonte, 75% da população vive na zona rural e estuda em média apenas três anos. O índice de analfabetismo é de 29%.
A qualidade do trabalho de dona Isabel, porém, dá razão a um homem letrado que a visitou e lhe disse: "Não reclame, pois a senhora sabe fazer o que eu não sei, nem nunca aprenderia".
Temáticas diversas
As comunidades de artesãos e os centros para a venda do artesanato estão presentes em Turmalina (no bairro Campo Alegre), Minas Novas, Virgem da Lapa, Itaobim (no bairro de Santa Luz, onde a associação dos artesãos locais chama-se Arteluz) e Araçuaí, o maior município do médio Jequitinhonha, com 35 mil habitantes.
Em Araçuaí, banhada pelo rio de idêntico nome - que significa rio das araras grandes, aves que esculpidas ou pintadas fazem parte da decoração urbana -, a ONG mineira Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) combate a pobreza por meio da educação. Os projetos Sementinha, Ser Criança e Bornal dos Jogos revolucionaram o ensino fundamental utilizando jogos e brincadeiras nas aulas de português e de matemática das escolas rurais, e proporcionaram aos alunos "de pés no chão" - como são conhecidos os mais pobres - as mesmas oportunidades oferecidas aos demais. O artesanato do vale, porém, não se resume a centros ou associações e nem mesmo aos municípios, sendo possível encontrá-lo à venda nas beiras de estradas.
Em cidades mais distantes do curso do rio, embora ainda no vale do Jequitinhonha, como Taiobeiras e Caraí, residem, respectivamente, os ceramistas João Alves e Noemiza Batista dos Santos. Ele modela mulheres negras em fainas como socar milho ou dar farelo às galinhas, peças que misturam barro, papelão e algodão, e não são levadas ao forno. Ela retrata cenas como casamento e batizado em trabalhos de pequena dimensão, coloração suave e impressionante riqueza de detalhes.
Também é da zona rural do município de Caraí o ceramista Ulisses Pereira Chaves, de 80 anos, tão famoso quanto dona Isabel. Seu trabalho se diferencia pelas características surrealistas. Faz figuras zoomorfas e antropomorfas com várias cabeças, entes sobrenaturais de um pé só, minotauros e lobisomens. Peças como essas compuseram um módulo exclusivo na mostra Brésil, Arts Populaires de Paris, em 1987.
Ainda em Itinga vive o artesão Ulisses Mendes, ceramista voltado para uma temática social, que denuncia o martírio das mulheres do vale: em cenas do cotidiano em casa ou no campo, às vezes grávidas, ele as representa sempre crucificadas. Seus primeiros trabalhos registraram a tragédia que foi para a população pobre uma grande inundação, ocorrida em 1979.
Cem anos de solidão
Antes de ser condenado a cem anos de solidão, como a Macondo do escritor colombiano Gabriel García Márquez, o vale do Jequitinhonha foi próspero e opulento. Minas de ouro e diamante descobertas no final do século 17 por desbravadores paulistas e baianos fizeram a glória da região.
A primeira ocorrência de ouro foi no Arraial das Lavras Velhas de Hivituruí, elevado à condição de vila em 1714 e à de cidade em 1738, com o nome de Serro, que conserva até hoje. Dessa localidade, mais próxima à nascente do Jequitinhonha, os garimpeiros seguiram o curso do rio até achar, misturadas ao cascalho, pedrinhas que - logo se constataria - eram diamantes.
Ali nasceu outro arraial, o do Tijuco, palco das peripécias da escrava Chica da Silva e do contratador João Fernandes, e que em 1838 receberia a denominação de Diamantina. Ao começar o declínio dos garimpos, em meados do século 19, tem início a exploração da pecuária semi-intensiva, que viria a dar origem aos vaqueiros retratados na literatura de Guimarães Rosa.
Mas se a mineração já havia provocado a erosão e o assoreamento dos rios, o desmatamento para a implantação de pastagens liquida com a vegetação original da Mata Atlântica. A paisagem se aproxima, então, do semi-árido nordestino, e não por acaso toda a região é a única do sudeste do país a integrar a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Até recentemente, a principal iniciativa governamental destinada ao vale se resumia a incentivos fiscais para o reflorestamento, criados na década de 1970. As grandes empresas atraídas por essa atividade, entretanto, além de não absorverem a mão-de-obra local, acabaram com a vegetação de cerrado que havia nos topos planos das chapadas nas sub-regiões do alto e médio Jequitinhonha, para implantar a monocultura do eucalipto. Mantêm, ainda, a posse de vastos setores de relevos planos como reserva de mercado.
Diante dos problemas fundiários e das secas e enchentes que inviabilizavam as lavouras, a população masculina acabou forçada a migrar em busca de trabalho. Seu primeiro destino foi o corte da cana em usinas de São Paulo e, depois que este foi mecanizado, o rumo mudou para as minas de carvão do centro-oeste, onde são freqüentes as denúncias de trabalho escravo.
Como os homens passam a maior parte do tempo trabalhando fora de suas cidades, as "viúvas de marido vivo", como a contragosto são chamadas suas esposas, tiveram de assumir a chefia das famílias. Muitas delas tornaram-se poteiras, como ocorreu no povoado de Pasmado. Mas até nisso o povo da região é sacrificado: ali a matéria-prima só existe em propriedade particular, o que as obriga a pagar pelo barro retirado.