Postado em 06/09/2004
Resíduos tóxicos em micronutrientes: veneno na produção de alimentos
MAURÍCIO MONTEIRO FILHO
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Responsável por mais de um terço das riquezas geradas no país, o agronegócio tem sido a menina-dos-olhos da economia brasileira. Apesar de seu expressivo crescimento, no entanto, a atividade tem colecionado críticas quanto a sua relação com o meio ambiente, devido principalmente aos índices galopantes de desmatamento verificados nas últimas décadas. Há problemas graves relacionados à atividade agrícola, porém, que permanecem em total obscuridade, como no caso da utilização de resíduos industriais tóxicos na formulação de micronutrientes (substâncias destinadas a suprir deficiências do solo).
Segundo um parecer técnico de 2004, elaborado pelo consultor ambiental do Ministério da Saúde Élio Lopes dos Santos, "a partir do final da década de 1970, com o objetivo de diminuir os custos de produção, as indústrias do setor passaram a utilizar resíduos industriais perigosos na busca de elementos considerados essenciais às plantas".
Atualmente, essa prática é alvo de uma investigação dos Ministérios Públicos Estadual e Federal (MPE/MPF) em São Paulo. Essa ação conjunta constatou que o problema ultrapassa as fronteiras nacionais, uma vez que, além de comprar esses materiais de indústrias brasileiras, as produtoras de micronutrientes passaram também a importá-los. O comércio internacional de resíduos tóxicos é ilegal segundo a Convenção de Basiléia, que entrou em vigor em maio de 1992, e da qual o Brasil é signatário.
Definição
Os micronutrientes são elementos essenciais ao desenvolvimento das plantas. Entre os principais estão o zinco, o cobre e o manganês. Todos eles estão presentes na natureza, mas em teor insuficiente para garantir alta produtividade à agricultura, e por essa razão são elaborados industrialmente e adicionados aos fertilizantes (os macronutrientes). Assim, os maiores compradores de micronutrientes são as fábricas de adubo.
Segundo Gerhard Schultz, presidente da empresa Produquímica, especializada na formulação de tais elementos, seu emprego nas lavouras foi decisivo para a expansão agrícola no Brasil. "Sem os micronutrientes, o cerrado não produziria", garante ele. Efetivamente, desde a década de 1970, estudos realizados em amostras de solo da região revelaram carências de até 95% de zinco e 70% de cobre.
O bom desempenho do agronegócio no país tem, portanto, estreita relação com o aumento da utilização desses elementos. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda), enquanto a área cultivada expandiu-se 22% no país entre 1990 e 2003, a produção de grãos mais do que duplicou, passando de 59 milhões de toneladas para 125 milhões. Esse ganho de produtividade explica-se, em grande parte, pelo aumento de mais de treze vezes no consumo de micronutrientes, no mesmo período.
Além disso, parcela considerável da demanda se deve ao crescimento vertiginoso da produção do item mais importante do mercado agrícola brasileiro, a soja, que consome 45% dos micronutrientes comercializados no país.
Até a década de 70, os micronutrientes eram obtidos diretamente de minérios encontrados na natureza. Embora eles também contenham metais pesados tóxicos, o processo de beneficiamento desse material era menos questionável do ponto de vista ambiental, pois os níveis de contaminantes eram muito baixos. Porém, de acordo com Schultz, trabalhar com os minérios exige altos investimentos em equipamento. Dessa forma, a dificuldade técnica e a busca pela redução de custos de produção acabaram estimulando as empresas a buscar uma solução mais barata.
Menor custo, mais poluentes
Cerca de 18 anos atrás, quando ainda era técnico da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), o químico e engenheiro Élio Lopes dos Santos identificou altos teores de metais pesados tóxicos em medições feitas em chaminés de fábricas de adubos, o que levantou suspeitas sobre a presença de agentes contaminantes no processo industrial. Isso porque, enquanto os níveis máximos de chumbo encontrados na rocha fosfática, principal matéria-prima dos fertilizantes, variam em torno de 38 ppm (partes por milhão, medida equivalente a gramas por tonelada), aqueles verificados por Lopes atingiam até 20 mil ppm. O que explicava esses elevados índices de contaminação era a utilização de resíduos industriais altamente tóxicos para obter os níveis necessários de zinco e de outros elementos nos fertilizantes.
A partir da descoberta de Lopes, verificou-se que a prática estendia-se a todas as fornecedoras de micronutrientes. "De forma irresponsável, as indústrias passaram a usar resíduos como matéria-prima", afirma ele.
Os principais materiais utilizados pelas fábricas do setor eram a chamada escória de fundição e o pó de aciaria, ambos subprodutos contaminados da atividade metalúrgica e siderúrgica. "Descobriu-se que havia muito zinco e cobre nesses resíduos, mas também metais pesados tóxicos, como cromo, chumbo e cádmio, além de organoclorados", explica Lopes.
Essas substâncias todas são identificadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como prejudiciais à saúde humana. O chumbo, por exemplo, está associado a problemas neurológicos e renais. Muito piores, os organoclorados (compostos orgânicos que contêm cloro), especialmente as dioxinas e os furanos, também encontrados nos resíduos, apresentam alto potencial cancerígeno.
O negócio é extremamente lucrativo para as siderúrgicas, pois elas acabam ganhando duplamente com a venda de seu lixo. Isso porque, além de receber pela mercadoria, se livram dos custos da disposição adequada dos resíduos em aterros especializados, o que, hoje, significa uma economia de cerca de US$ 100 por tonelada.
Para as formuladoras de micronutrientes, os benefícios são igualmente atraentes, uma vez que adquirem matéria-prima a custos irrisórios. Além disso, segundo Lopes, "essas fábricas são as únicas que não geram nenhum tipo de resíduo, porque o incorporam a seus produtos".
Vistoria nas empresas
Devido à gravidade das denúncias, em maio de 1999, o Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente (CAO-UMA) do MPE de São Paulo passou a cobrar ações mais efetivas de fiscalização por parte da Cetesb.
Entretanto, em razão da inoperância da agência e da suspeita de que havia conivência dos fiscais com as empresas poluidoras, em 2000 o próprio MPE decidiu vistoriar as indústrias de micronutrientes que atuavam em cidades do interior paulista, como Suzano e Paulínia.
Segundo o parecer de Lopes, ficou constatado que as empresas, de fato, utilizavam resíduos tóxicos no processo industrial. As análises realizadas tanto na matéria-prima quanto nos produtos finais revelaram índices alarmantes de contaminação. Na vistoria feita na empresa Nutriplant, localizada em Paulínia, a amostra do produto acabado apresentava 7.050 ppm de chumbo, uma concentração muito superior à do zinco (2,8 mil ppm), que deveria ser mais abundante, já que é o elemento de interesse do composto. Nas análises feitas na Produquímica, os micronutrientes continham 2,5 mil ppm de chumbo e 1,2 mil ppm de cádmio.
Esses teores foram comparados com os das matérias-primas e dos produtos finais de marcas conhecidas de fertilizantes, como Fosfértil, Manah e Serrana, que não utilizam resíduos em sua formulação. O resultado demonstrou nitidamente a maior incidência de poluentes nos processos que empregam esses materiais. Enquanto os produtos elaborados pela Nutriplant e pela Produquímica apresentaram uma concentração de chumbo de milhares de ppm, nenhum outro daquelas marcas superou o patamar de 65 ppm. O mesmo aconteceu com os teores de cádmio. Nas amostras da Nutriplant foram encontrados também organoclorados.
Infelizmente, o quadro pouco evoluiu com o passar do tempo. Em meados de 2004, foi realizada nova inspeção, agora com a participação do MPF, nas mesmas empresas e em outras do interior de São Paulo, como a Mixmicro, de Suzano, a Agroplanta, de Batatais, e a Galvani, de Paulínia. "A situação era chocante", relata o procurador da República em Santos (SP) Luiz Antonio Palacio. Dessa vistoria, além da constatação de que os resíduos continuavam sendo usados de forma descontrolada, resultaram representações trabalhistas contra as companhias e acusações de improbidade administrativa contra a Cetesb, por negligência na fiscalização.
Por intermédio de sua assessoria de imprensa, a Cetesb declarou que só teve conhecimento do caso após ter sido informada pelo MPF e pelo MPE, em julho de 2004, e que constituiu um grupo de trabalho para acompanhar a questão. Informou ainda que as empresas que produzem micronutrientes "vinham sendo consideradas não prioritárias nas ações de controle, pelas características das substâncias declaradas por elas como matérias-primas nos processos de licenciamento. Uma vez constatada a ocorrência de problemas, a prioridade para esse tipo de empreendimento está passando por uma reavaliação".
Comércio ilegal
Como se não bastasse a utilização de resíduos tóxicos industriais gerados no país para a formulação de micronutrientes, a partir de 1990 surgiram denúncias de que havia empresas que importavam esse material. A primeira apreensão noticiada, motivada por informações da organização não-governamental (ONG) Greenpeace, ocorreu no porto de Santos (SP), em 1992. A carga vinha da Inglaterra e tinha sido comprada pela Produquímica, que foi obrigada a enviá-la a um aterro especial para resíduos perigosos.
Segundo Schultz, desde então, sua companhia não importou mais resíduos. No entanto, conforme o parecer elaborado por Élio Lopes, a empresa Engeclor, de propriedade da Produquímica, realizou, entre 2001 e 2003, ao menos cinco compras de resíduos provenientes do exterior. As cargas eram originárias dos Estados Unidos, Espanha, México e Holanda.
A maior fiscalização afetou o fluxo dessas mercadorias. "Depois das apreensões, diminuiu a chegada desses materiais ao porto de Santos. Ao mesmo tempo, porém, aumentou nos de Sepetiba (RJ) e de Paranaguá (PR)", conta Palacio.
Devido à alta incidência de transações comerciais desse tipo, o MPF alertou a Coordenação Geral de Administração Aduaneira (Coana), órgão vinculado à Receita Federal e responsável pela fiscalização dos portos, para que fortalecesse o controle a fim de evitar a entrada desses materiais no país.
Outra medida tomada foi a instauração de inquéritos policiais contra as empresas importadoras.
Mas o próprio procurador é cético quanto ao combate a essa prática. "Hoje, ainda estão entrando rejeitos industriais tóxicos no Brasil, e isso vai continuar. Se entram armas e drogas, eles passam também", afirma.
A questão da lei
Até hoje, não existe legislação referente à utilização de resíduos tóxicos na produção de micronutrientes. Há, no entanto, textos técnicos que definem claramente tais materiais como perigosos. Um exemplo é a norma 10.004 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), segundo a qual esses resíduos "podem apresentar risco à saúde pública, provocando ou contribuindo para um aumento de mortalidade ou incidência de doenças, e/ou apresentar efeitos adversos ao meio ambiente, quando manuseados ou dispostos de forma inadequada".
Mesmo assim, essas informações não são suficientes para dissuadir as fábricas de micronutrientes de utilizá-los como matéria-prima. Pior ainda, desde 1999, elas passaram a pressionar os órgãos ambientais para que estabeleçam, rapidamente, normas relativas à questão. Por intermédio de suas entidades representativas e munidas de dados controversos, as empresas procuraram a Cetesb para reivindicar a regulamentação da prática no estado de São Paulo.
Foi a intervenção providencial do MPE que impediu que isso ocorresse. Na ocasião, a entidade criticou a agência ambiental por ter se baseado apenas em informações fornecidas pelas próprias empresas interessadas, sem recorrer a análises próprias.
Por conta da pressão do MPE, a Cetesb desistiu de estabelecer normas. Mas a negativa do órgão não garantiu a vitória dos críticos do uso de resíduos contaminados na indústria de micronutrientes. Isso porque a agência transferiu a responsabilidade dessa regulamentação para a esfera ambiental federal. Atualmente, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) está estudando a criação de critérios federais para o emprego dessas substâncias como matéria-prima.
Outro fator que demonstra que a batalha da legalização está muito longe de terminar foi a iniciativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) de baixar a portaria 49, que trata dos limites máximos de agentes tóxicos nos fertilizantes. O texto, disponibilizado em 25 de abril deste ano para consulta pública por 60 dias, só deve ser publicado após criteriosa análise.
Para aqueles que se opõem ao uso de resíduos na indústria de micronutrientes, isso significará uma derrota, pois deixa aberta a possibilidade de que as empresas diluam os altos teores de contaminantes das matérias-primas no produto final. "É um precedente perigosíssimo. Diluição não é controle, porque a carga tóxica que será disposta no solo permanece a mesma", alerta Élio Lopes. Esse dado é ainda mais grave se considerados a persistência e o efeito cumulativo dos metais pesados no meio ambiente.
No entanto, segundo Hideraldo Coelho, fiscal federal agropecuário do Mapa, a portaria não permitirá a utilização de resíduos na formulação de fertilizantes. Ele explica que, "para que o Mapa conceda registro a um produto, ele precisa ter licença ambiental. Não serão registrados produtos que não tenham passado pelo crivo do Ministério do Meio Ambiente (MMA)".
Segurança versus risco
De acordo com Sérgio Alejandro, assessor ambiental da Produquímica, apesar da polêmica, as discussões em torno da regulamentação tiveram um aspecto positivo: o desenvolvimento, ao menos em sua empresa, de melhores tecnologias de beneficiamento dos resíduos. "O processamento dessas substâncias é nosso objetivo", diz Schultz.
Segundo ele, desde 1996, a Produquímica investe em um processo industrial mais limpo, que elimine completamente os metais pesados tóxicos e outros poluentes dos micronutrientes, e tem conseguido bons resultados. Entretanto, o caso da companhia não é a regra, mas sim a exceção no ramo.
Para embasar seus argumentos em favor da legalização, a companhia tem financiado diversas publicações técnicas. Boa parte delas é de autoria de Eurípedes Malavolta, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, ligado à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP). No livro Fertilizantes e seu Impacto Ambiental, ele sustenta a tese de que os ataques à formulação de micronutrientes a partir de resíduos contaminados são baseados em mitos.
Outra entidade que partilha da bandeira defendida pela Produquímica é a Anda. Segundo Eduardo Daher, diretor executivo da associação, há oito anos foi criado um comitê que já avaliou mais de 400 amostras de produtos nacionais e importados. Os resultados dessas pesquisas mostram que, com tratamento adequado do resíduo, o risco de contaminação é mínimo. "Esse material é mais limpo do que o minério", afirma Gerhard Schultz, e acrescenta que as plantas são muito seletivas quanto ao que extraem do solo. "Existem estudos que mostram que elas não absorvem metais pesados tóxicos", garante. Mesmo assim, ele admite que não há informações suficientes sobre os problemas causados por esses contaminantes sobre a fauna ou os rios. Afinal, a infiltração das chuvas pode carregar os poluentes acumulados no solo para os lençóis freáticos, o que afetaria o abastecimento de água, principalmente das regiões contaminadas.
O aspecto mais enfatizado pelos que são contrários à regulamentação que permitiria o uso de resíduos na formulação de micronutrientes é a falta de informação. "Esses poluentes são conhecidos por apresentar riscos ao meio ambiente e à saúde pública", argumenta o biólogo Roberto Varjabedian, assistente técnico do MPE. "E ainda não há conhecimento científico suficiente sobre os impactos causados pela disposição desses resíduos no solo", completa. Ele também vê precipitação da parte das empresas na busca pela aprovação da legislação.
Embora um consenso pareça distante, é importante dizer que não existe radicalismo nas posições contrárias à liberação do uso de resíduos tóxicos como matéria-prima para a indústria de micronutrientes. "Não somos contra a reciclagem. Mas todo resíduo tem de ser tratado", diz Élio Lopes. Isto é, se as empresas conseguirem eliminar completamente os poluentes e forem realizados todos os estudos necessários para comprovar que seus produtos não prejudicam o meio ambiente ou a saúde humana, o uso de resíduos pode até se tornar uma excelente alternativa econômica para a fabricação de micronutrientes.
Dessa forma, qualquer regulamentação deve se basear na segurança ambiental. E essa é uma palavra de ordem quando se trata da difusão de metais pesados tóxicos e outros poluentes perigosos num mercado como esse, que espalha anualmente mais de 400 mil toneladas de micronutrientes pelas lavouras de todo o país.