Postado em 19/09/2005
Brasileiros fogem para a Guiana Francesa em busca de trabalho
IVAN PAGANOTTI e THAIS GURGEL
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Às margens do rio Oiapoque, no Amapá, há um obelisco que demarca a fronteira. Ao lado de trechos do Hino Nacional, no monumento há a frase "Município de Oiapoque, aqui começa o Brasil". Para mais de 40 mil brasileiros, porém, seria mais realista dizer que o país termina ali. A cidade é a última escala rumo à Guiana Francesa, que fica do outro lado do rio. O que leva, no entanto, milhares de pessoas a migrar justamente para esse vizinho? É simples: ali começa a Europa.
A afirmação pode causar estranhamento, mas a geografia explica: no meio da floresta Amazônica, o Brasil faz fronteira com a União Européia. A mais oriental das Guianas é o único território na América do Sul que nunca obteve independência de sua colonizadora e, portanto, não é uma nação. Como um departamento da França (que no nosso sistema de organização administrativa equivale a um estado), tem os mesmos direitos e obrigações que qualquer outro da chamada "região metropolitana", cuja administração tem sede em Paris. Somado a isso, há um fato que chega a surpreender: sua moeda é o euro, dado fundamental para explicar o fenômeno imigratório que vivencia.
A população da Guiana é de apenas 170 mil habitantes - o equivalente à da pequena cidade de São Caetano do Sul (SP) -, com uma parcela considerável composta por brasileiros. "Em número de imigrantes, perdemos somente para os haitianos", diz Antônio Taborda, secretário do Consulado do Brasil em Caiena, a capital do departamento.
Metade dos habitantes da Guiana é de estrangeiros, e há desde comunidades francófonas, como a do Haiti, até grupos da China, do Laos e do Camboja, formando um verdadeiro caldeirão étnico.
A presença estrangeira imprime traços interessantes na cultura local, e a contribuição brasileira é evidente. Restaurantes típicos são facilmente vistos pelas ruas da capital, o português é falado quase como língua oficial, a moda é ditada pelo gosto verde-amarelo e, como já se poderia esperar, o desfile de escolas de samba é tradição no carnaval.
O Eldorado vizinho
"Eu não sei dançar samba, mas comecei a fazer fantasia de carnaval e era porta-bandeira", relembra Marinélia Silva de Sá, a dona Mineli. Na Guiana Francesa, o carnaval começa em janeiro, e os desfiles dominicais repetem-se durante quase dois meses. Muitos grupos locais apresentam-se, mas os brasileiros mantêm uma hegemonia nas avenidas: o bloco Coração do Brasil, criado por dona Mineli, é o pentacampeão do carnaval de Caiena.
Antes de mudar para o departamento, há quase 31 anos, dona Mineli nem sabia que a Guiana Francesa existia. Com a revenda de roupas que recebia de São Paulo e de Miami, ela conseguiu abrir sua própria loja lá nos anos 1980. Desde então, a volta para casa fica a cada dia mais remota. "Comecei de novo aqui, do zero. Quero retornar, mas, depois de tanto tempo, o Brasil já não é o mesmo país que eu conhecia", avalia.
Um brasileiro vindo do Amapá, Pará ou Maranhão, por sua vez, dificilmente poderia imaginar que um governo pudesse conceder os benefícios que o Estado francês garante a seus cidadãos. Auxílios desemprego, família e saúde, ensino e assistência médica de qualidade são atrativos decisivos. Uma das ajudas sociais mais requisitadas é a Renda Mínima de Inserção (RMI), que assegura a subsistência de boa parte da população e é oferecida àqueles que não têm nenhuma outra fonte de rendimento. Equivale a um seguro-desemprego de 425 euros (por volta de R$ 1,5 mil) mensais por tempo indeterminado.
Para muitos, a oportunidade de trabalhar com salário elevado, se comparado ao padrão brasileiro, vale o risco da ilegalidade temporária e o preço da exploração - porque esses trabalhadores têm de se submeter a remunerações inferiores à média francesa. Mesmo com o alto custo de vida local, é possível economizar boas quantias. "Já mandei mil euros de uma só vez para minha mãe, que estava doente do coração e precisou do dinheiro para a cirurgia", conta Marilene Amaral.
Há seis anos trabalhando em uma casa de família francesa, Marilene encontrou muitas dificuldades nas duas primeiras tentativas de imigração para a Guiana. "Não achei emprego, não entendia a língua e tinha medo porque tudo parecia difícil." Na terceira viagem, conseguiu uma autorização temporária de permanência com a ajuda de seus patrões, mas atualmente ela não vê com tanta gratidão o baixo salário que recebe pelo serviço. "Passado um tempo, eles abusam da gente, porque dependemos do contrato para ficar aqui", desabafa.
O vínculo trabalhista confirmado facilita a obtenção do visto de permanência, mas acaba por criar uma relação de dependência entre contratado e contratante, principalmente para quem ainda não regularizou sua situação. Assim como outros imigrantes, os brasileiros raramente ocupam postos de destaque social e econômico em Caiena. Com baixa escolaridade e falta de qualificação profissional, para eles as ocupações mais comuns são as de pedreiro, servente e empregada doméstica.
Além da exploração no trabalho, a discriminação contra os imigrantes - principalmente brasileiros - e a severa repressão da polícia aos ilegais evidenciam que a vida na Guiana Francesa não é na realidade nada fácil. "Os clandestinos têm medo até de sair de casa e ser descobertos", conta Célia Monteiro, que obteve sua regularização há 13 anos.
Casada atualmente com um guianês, ela saiu de Macapá com dois filhos pequenos para seguir o ex-marido em busca de emprego. Chegando à Guiana, encontrou um ambiente hostil, pois a imagem do brasileiro é associada à prostituição e à marginalidade em geral: "Há muito preconceito", afirma.
"Quem construiu tudo aqui foi o brasileiro", contrapõe a belenense Perolina Chapuis, radicada há 22 anos no departamento. "O guianês nos admira como mão-de-obra, pois a gente trabalha muito e se conforma com pouco", explica ela, que conseguiu se estabelecer dividindo-se entre três empregos para sustentar os filhos.
Porta dos fundos
As grandes levas de brasileiros começaram a chegar à Guiana Francesa nos anos 60, durante a construção do Centro Espacial em Kourou, que atualmente também envia ao espaço satélites da União Européia. O departamento crescia com a base de lançamento de foguetes, mas necessitava de mão-de-obra. Assim, o governo francês passou a estimular a imigração de trabalhadores destinados a áreas como a construção civil, com salários até seis vezes superiores aos do Brasil.
Pela proximidade geográfica, a Guiana Francesa atrai principalmente gente do Amapá, Pará e Maranhão. Nesses estados, a população sofre com a falta de infra-estrutura, educação, assistência social e atendimento à saúde. De acordo com dados de 2000 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Maranhão apresenta o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país. O Amapá e o Pará também têm IDH inferior à média brasileira. Agrava ainda mais a situação a alta taxa de desemprego da região.
O maranhense Josenir Pereira de Souza é um dos muitos migrantes que optaram pelo êxodo para a Guiana Francesa, onde foi pilotar pequenos barcos de passageiros e carga - as chamadas catraias. Depois de navegar por um ano na cidade guianesa de Régina, recebendo em euros, a construção de uma ponte o obrigou a zarpar até o menos rentável rio Oiapoque, onde o pagamento costuma ser feito em reais.
Para os migrantes, chegar à fronteira no norte do Amapá é relativamente fácil: a única dificuldade são os 350 quilômetros de lama da BR-156, via de acesso a Oiapoque. O problema começa realmente após a curta travessia do rio, já do lado guianês. Quem não tem visto aventura-se clandestinamente de Saint-Georges de l’Oyapock - primeira cidade guianesa, cuja entrada é liberada a brasileiros - para o interior do território francês, pela recém-inaugurada estrada que liga a fronteira a Caiena.
O temor é ser parado no caminho pelos soldados da Gendarmerie (exército francês), que impedem o tráfego ilegal de pessoas na região. Apesar do amplo controle de imigração, ocasionalmente é possível fazer essa rota sem encontrar barreiras policiais na rodovia. Segundo análise do pesquisador de migração internacional Ronaldo Arouck, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a rigidez da fiscalização sobre o fluxo de trabalhadores imigrantes na Guiana Francesa varia de acordo com a necessidade ou o excesso de mão-de-obra nesse departamento. Assim, ela aumenta quando a oferta de empregos diminui - da mesma forma que se abranda com a falta de trabalhadores.
Conseguir chegar até o destino não é, porém, garantia de sucesso. O técnico agrícola Marcos (nome fictício) trabalhou dois meses clandestinamente em plantações próximas a Kourou, mas foi descoberto e deportado, sem receber seu salário. De volta a Macapá, ele pede ajuda para retornar a Oiapoque. "Meu patrão está me esperando na Guiana Francesa com meu dinheiro, tenho de voltar. É lá que está minha oportunidade."
Ainda que alguns brasileiros desistam da imigração devido à precariedade da condição dos clandestinos, à exploração que sofrem ou ao medo da polícia francesa, milhares perseveram. "São muitos os relatos de retorno, mesmo depois da deportação e perda de tudo o que eles conseguiram acumular", explica Ligia Simonian, antropóloga da UFPA. Ela ressalta que a Guiana Francesa pode funcionar também como trampolim para aventuras maiores: "A contigüidade com um ‘país europeu’ também leva o indivíduo a sonhar com uma imigração para a Europa propriamente dita".
Fontes de renda
Não são somente os migrantes brasileiros que viajam até Oiapoque na esperança de usufruir os benefícios do outro lado da fronteira. Na contramão do rio, turistas franceses e seus euros desembarcam na cidade e invadem o centro comercial para fazer compras. Ao sair das catraias, os forasteiros são imediatamente recepcionados por uma comitiva que se esforça em ser bilíngüe. "Precisamos deles, e eles de nós", explica Rosival Pereira da Silva, vendedor de rua. "A farinha em Kourou custa 2 euros. Aqui, só R$ 2, quase um terço do preço. É por isso que eles não compram só um quilo, levam logo uma saca de 60", diz ele.
Os turistas que gastam durante o dia todo aproveitam também a noite de Oiapoque. Nos finais de semana, os quiosques e bares pulsam ao som do brega paraense e do pop americano. A mistura de ritmos com o álcool agrada aos franceses: "Venho para fazer compras e pelo clima de festa da cidade. Mas muitos vêm mesmo para arranjar mulher", diz o militar francês Vincent Batillat, que estava acompanhando um amigo, também do exército, o qual "não se importava em pagar para ter uma namorada brasileira, nem que fosse por algumas horas".
Nilson Kaluf, vice-prefeito do município, assume a dependência econômica em relação ao vizinho francês: "O dinheiro que permite o desenvolvimento de Oiapoque vem das boates, dos produtos comprados pelos franceses e do ouro do garimpo". A mineração, ainda ativa do outro lado do rio, atrai um grande contingente de garimpeiros brasileiros que cruzam a fronteira ilegalmente para explorar as jazidas francesas. Nessa ocupação há 20 anos, Roberto Silva não vê diferença em trabalhar na Guiana Francesa, no Mato Grosso ou em Serra Pelada. "É a única chance que a gente tem de ganhar dinheiro, de comprar um carro; eu tiro de oito a dez salários mínimos por mês."
Para esses garimpeiros que estão sempre em trânsito, sem se fixar em parte alguma, o departamento francês é visto simplesmente como um estado brasileiro que fala outra língua - alguns deles cometem até o justificado equívoco de chamá-lo de "Goiânia Francesa".
Primeiro Mundo relativo
Ainda que atraia massas de imigrantes, o "Primeiro Mundo equatorial" da Guiana é muito relativo. Comparada à metrópole, a ex-colônia latino-americana engatinha em termos de desenvolvimento. O investimento em cultura, marca tradicional da administração francesa, é deficiente no departamento. Os imigrantes apontam a falta de lazer como um dos seus maiores problemas, razão das periódicas visitas ao Brasil - tanto por parte dos brasileiros quanto dos guianeses.
Mesmo os benefícios sociais bancados pelo governo não conseguem atingir os patamares metropolitanos. Existem favelas na cidade, e os prédios do centro histórico há muito esperam por restauração. O que pode parecer o Eldorado com que sonham populações tão carentes como as do norte e nordeste do Brasil jamais poderia ser comparado ao padrão de vida francês propriamente dito, do outro lado do oceano. "É inegável que não se têm as mesmas oportunidades que a metrópole oferece", admite Christophe Giraudet, funcionário do Tesouro público. "A verdade é que a França não se preocupa muito com a necessidade de desenvolver a Guiana. Para eles, isto aqui é o lugar das serpentes, dos mosquitos e da mata tropical", completa, jocosamente.
França tropical
A fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa esteve em constante disputa militar e diplomática até ser demarcada no ano de 1900. De início explorada para a produção de cana-de-açúcar, a antiga colônia, que já sediou presídios, passou a ter certa autonomia e igualdade em relação à administração central quando a França a incorporou definitivamente como departamento ultramarino, em 1946.
Desde então, a população goza de amplas liberdades civis e o departamento tem representação no Parlamento francês, apesar de permanecer dependente política e economicamente do governo central, sediado em Paris.
Índios europeus
A opção de transpor a fronteira é ainda mais banal para os povos indígenas da região, como os caripunas, os palicures, os galibis-do-oiapoque e os galibis-marvornos. "Essas comunidades são caracterizadas pelo deslocamento espacial, o que implica também transposição dos limites políticos", explica a antropóloga Cláudia Lopez, da Universidade Federal do Pará. As etnias têm aldeias formadas tanto no Brasil quanto na Guiana Francesa, e é comum encontrar famílias separadas pela fronteira.
Apesar da relativa abundância de empregos do lado francês, a maioria dos grupos indígenas vivem ali com a renda proporcionada pelo governo, já que dificilmente conseguem um trabalho fixo.
Uma exceção à regra é o filho de Manuel Miguel dos Santos, de 75 anos, ex-cacique da aldeia de Santa Isabel. Seu primogênito é motorista da Gendarmerie e volta ocasionalmente a Oiapoque para visitar a família. Manuel conta como chegam os índios que moram fora: "Os mais novos não querem mais falar patoá, só querem usar o português. Do outro lado também, todos só falam francês. Em pouco tempo, se não tomar cuidado, primos não vão mais se entender". Contrariado, ele faz um alerta: "Se perdermos o que nos une, que é a língua indígena, tudo isto aqui que vocês estão vendo vai ser dos brancos. Vai acabar".