Luta
contra o crime
por Luiza Nagib
Eluf
Luiza Nagib Eluf
formou-se em direito pela Universidade de São Paulo (USP) em 1979
e é, desde 1983, membro do Ministério Público Estadual.
No final dos anos 80 especializou-se na área criminal e, após
ter participado de uma série de julgamentos, voltou sua experiência
e pesquisa para a área dos crimes passionais. "Comecei pesquisando
os crimes sexuais, já que havia muitos casos de estupro e atentado
violento ao pudor dentro da família", explica. O resultado
de seus estudos está no livro Crimes contra os Costumes e Assédio
Sexual (Editora Jurídica Brasileira, 1999), um levantamento com
mais de 2 mil páginas, concluído em 1997 e editado dois
anos depois. Além dele, a convidada deste mês da seção
Encontros é também autora de A Paixão no Banco dos
Réus (Editora Saraiva, 2002), no qual volta ao tema da violência
doméstica, e co-autora, com Jaime Pinsky, de Brasileiro É
Assim Mesmo (Editora Contexto, 1993), em que aborda a discriminação
e o preconceito. Lançou-se também na ficção,
com o romance Retrato (Editora Conex, 2005), que tem o amor - "não
doentio", como define - como enfoque. Na conversa que teve com o
Conselho Editorial da Revista E, Luiza Nagib Eluf, que já recebeu,
em 2000, o prêmio Mulher do Ano na área jurídica,
concedido pelo Conselho Nacional da Mulher, fala de preconceito e violência
contra a mulher, de como anda a legislação brasileira para
tais assuntos e da importância de uma sociedade organizada que cobre
ações dos governos - "pois sem cobrança ninguém
faz nada", afirma.
Às vezes, tem-se
a impressão de que a mulher estuprada é aquela que saiu
de casa à noite e passou por uma rua mal iluminada e deserta. Mas
a verdade não é essa. O grande agressor da mulher é
aquele que mora com ela, ou é próximo dela. É claro
que ela pode ser atacada na rua, mas a regra não é essa.
Fiz, então, uma vasta a pesquisa e escrevi um livro, em 1997, com
2.054 páginas [Crimes contra os Costumes e Assédio Sexual],
que foi editado em 1999. Deixava-me muito sensibilizada a forma como era
encarada, no julgamento, a questão do estupro e da violência
sexual contra a mulher. Muitas vezes se achava que ela estava mentindo,
que queria prejudicar o "coitadinho do sujeito que não fez
nada", ou então, que ela havia gostado da relação
sexual. Tinha-se muita dificuldade de condenar os agressores. Além
disso, havia muitos casos em que o estuprador era o pai, ou o padrasto
da vítima. E a mãe, muitas vezes, acabava sendo conivente
com a situação, acobertando a conduta do companheiro.
Outro problema era levar a julgamento casos de mulheres assediadas no
ambiente de trabalho - na época, em 1997, nem sequer existia o
crime de assédio sexual. Batalhei muito para que essa conduta fosse
especificada no Código Penal, o que acabou acontecendo em 2002.
Trabalhei em casos em que os agressores eram absolvidos, e isso me motivou
a defender a vítima, não porque ela seja uma coitada, mas
simplesmente porque é justo. Quando fiz o livro sobre os crimes
contra os costumes, que abordava a violência sexual, comecei a ver
que muitas vezes os casos acabavam em morte. A gota d'água para
mim foi quando o jornalista Pimenta Neves, que trabalhava no jornal O
Estado de S. Paulo, matou Sandra Gomide. Se já é inaceitável
que as mulheres continuem sendo espancadas pelo simples fato de não
querer permanecer numa relação, o que dizer de casos em
que o espancamento acaba evoluindo para o assassinato?
Relação
de gêneros
Todos esses casos são reflexos da mesma situação:
a inferioridade da mulher na relação de gênero. E
isso começa dentro de casa e contamina todas as relações
entre os sexos. Meu livro A Paixão no Banco dos Réus retrata
a paixão que mata. Aborda 14 casos de crimes passionais e mostra
que essa prática não diminuiu, apesar de a posição
da mulher no Brasil ter evoluído bastante. Agora, eu pergunto:
o sujeito pode ser absolvido porque estava perturbado pelo ciúme?
Os júris e tribunais superiores já absolveram réus
em alguns casos sob esse fundamento.
Até alguns anos atrás não existia doutrina penal
a favor da mulher, era tudo altamente machista. Os grandes doutrinadores
diziam que, para configurar o estupro, era necessária uma resistência
"militante" da vítima, ou seja, a mulher teria de lutar,
até quase sua própria morte, contra o ato. Peguei trechos
de criminalistas que diziam isso, transcrevi no meu livro e bombardeei
essa doutrina. A mesma coisa aconteceu com assassinatos. Pesquisei vários
casos, mais de 100, que aconteceram no Brasil e selecionei 14. Comecei
com um homicídio histórico, o cometido por Pontes Visgueiro,
ocorrido em 1873. Ele era um desembargador de 61 anos que matou a namorada,
de 17, uma criatura muito pobre que havia sido prostituída pela
própria mãe. Visgueiro se apaixonou e quis casar-se com
a moça, mas ela se recusou. Ele, então, a matou de forma
macabra, o que conto no livro. A partir desse caso, mostrei a evolução
dos julgamentos até o caso Pimenta Neves, ocorrido em 2002, que
ainda não foi definitivamente julgado.
Passo lento
Representei o Brasil como membro da delegação oficial que
participou da Conferência Internacional da Mulher, em Pequim, no
ano de 1995, patrocinada pela ONU [Organização das Nações
Unidas]. Em meio às muitas questões discutidas lá,
ficou claro que o Brasil ainda tinha problemas de patriarcalismo arraigado.
Perto de alguns países, como Irã, Paquistão, Japão,
China, Sudão, Índia, Egito, em resumo, países da
Ásia e África, estamos bem adiantados. Já em relação
a outros, como o Canadá e os países nórdicos, estamos
apenas engatinhando. Lembro-me de que na reunião o Chile era apontado
como um país que tomava posições conservadoras, mas
temos de levar em consideração que a situação
política na época (1995) era outra. Agora, foi eleita uma
mulher para presidente [Michelle Bachelet, a primeira mulher a conquistar
a presidência daquele país. Venceu as eleições
em 15 de janeiro, quando disputou o segundo turno com o candidato Sebastián
Piñera]. Vamos ver se isso muda. Ela começou muito bem,
montando um gabinete paritário entre homens e mulheres [composto
igualmente por homens e mulheres, no caso, dez ministros de cada gênero].
Na ocasião dessa conferência, a Argentina também era
vista como muito conservadora. Na época, o presidente era o [Carlos]
Menem, muito comprometido com a Igreja católica. Onze anos já
se passaram depois dessa conferência, e acho que o Brasil evoluiu
pouco durante esse período.
Sociedade organizada
Acho da maior importância que se promova a cidadania em todos os
níveis, porque ela ainda praticamente não existe no país.
Nossa sociedade não é organizada. Atualmente, vejo embriões
se formando, muitas ONGs, mas ainda estamos em um patamar muito inicial
- principalmente em comparação a países como os Estados
Unidos, que têm a sociedade totalmente organizada e que se une para
defender seus direitos. Quando retornei de Brasília [depois de
ter sido secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério
da Justiça, no governo de Fernando Henrique Cardoso], voltei com
a convicção de que não se resolve absolutamente nada
da capital federal. As pessoas ficam perdidas dentro de um governo federal
tão centralizado. O país é grande e existem muitos
problemas diferentes em cada região. As pessoas assumem os altos
cargos da administração pública e então percebem
a imensidão do desafio, mas não abrem mão da concentração
de poder. E isso nós percebemos em todos os governos. Esse é
o desastre do Brasil. Somos um país totalmente heterogêneo,
desde a economia até a cultura. Não é possível
centralizar muitas decisões em Brasília. A única
forma de ter um resultado satisfatório é trabalhar em um
universo menor. E esse universo menor é o estado, o município
e o bairro. Não adianta ter grandes políticas traçadas
na esfera federal se esquecermos do que pode ser feito na cidade. Por
isso, comecei a participar da entidade do meu bairro. Eu não vejo
incompatibilidade em trabalhar em uma ONG e na esfera pública.
Acho importante essa dupla função, porque a sociedade organizada
é que vai cobrar do governo que ele cumpra suas obrigações
- pois sem cobrança ninguém faz nada.
A promotora Luiza
Nagib Eluf esteve presente na reunião do Conselho Editorial da
Revista E em 22 de fevereiro
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