Postado em 01/11/2005
Duplicação da Rodovia dos Tamoios, acesso ao litoral norte paulista, causa controvérsias
JULIANA BORGES
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O projeto de duplicação da Rodovia dos Tamoios (SP-099), que liga São José dos Campos, no interior de São Paulo, a Caraguatatuba, no litoral, nem saiu do papel e já está causando polêmica. Assim como vem acontecendo com muitas grandes obras governamentais que cortam ou rodeiam trechos de preservação ambiental ou ecossistemas frágeis, está em curso uma inflamada discussão entre opositores e defensores da obra. Se depender da maioria dos empresários do vale do Paraíba e da região de Campinas, transportadores de carga e empreiteiros, a idéia deve ser colocada em prática logo, já no ano que vem. Contudo, se prevalecer a vontade do movimento ambientalista e de muitos moradores do litoral norte paulista, a obra será postergada ao máximo. O motivo de tanta controvérsia tem origem na seguinte questão: é possível construir uma grande obra pública sem causar graves impactos sociais e sérios danos ao meio ambiente? "O ponto não é ser a favor ou contra o desenvolvimento de uma determinada área, mas como fazer grandes empreendimentos de maneira sustentável", diz Mário Mantovani, diretor de Mobilização e um dos fundadores da Fundação SOS Mata Atlântica. "O governo quase sempre esquece de levar em consideração como equacionar problemas que determinada obra trará a uma região. Com a Tamoios está sendo assim."
A duplicação da SP-099, que tem custo estimado de R$ 1 bilhão, era uma das prioridades da Secretaria dos Transportes do atual governo do estado. Porém, ela acabou não saindo do papel, não tem trajeto estipulado nem estudos de impacto ambiental concluídos. O empreendimento faz parte de um projeto maior – a criação de um corredor de exportação entre a região do vale do Paraíba e Campinas e o porto de São Sebastião, que, além da segunda pista da Tamoios, inclui também a construção de um alcoolduto, melhorias no porto, nas rodovias Carvalho Pinto e Dom Pedro I e nos aeroportos de São José dos Campos e Viracopos, em Campinas. Tudo isso consumirá, no total, R$ 3,1 bilhões, divididos entre o poder público e a iniciativa privada. "O corredor de exportação é uma forma de integrar várias plataformas de transporte e de pensar a infra-estrutura do estado de forma unificada, o que trará muitos benefícios à produção industrial de São Paulo", diz o secretário estadual dos Transportes, Dario Reis Lopes.
Em pelo menos um ponto os opositores e incentivadores do corredor de exportação concordam: é inquestionável que a viabilização desse projeto terá forte impacto no litoral norte do estado. "A obra vai mudar a configuração de toda a região. E não nos referimos apenas ao aumento do número de carros, mas a uma mudança econômica profunda", afirma o advogado e ambientalista Eduardo Hipólito, membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e morador do município de São Sebastião. "Não estamos preparados para isso."
Aumento dos problemas
Aqueles que defendem a duplicação imediata da SP-099 alegam que é urgente melhorar o acesso rodoviário a São Sebastião para agilizar o escoamento da produção industrial do interior paulista e desafogar o porto de Santos. Os que são contra afirmam que a obra irá piorar a já difícil situação dos municípios do litoral norte, que sofrem com a carência de infra-estrutura, saneamento básico e habitação. A criação do corredor deve acelerar ainda mais as transformações pelas quais Caraguatatuba, São Sebastião, Ilhabela e Ubatuba – cidades que estão na lista das que mais cresceram em São Paulo – vêm passando nos últimos anos. Enquanto o número de habitantes do estado aumentou 1,5% entre 2000 e 2005, esses municípios tiveram um crescimento populacional de, no mínimo, 20% no mesmo período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ubatuba, que hoje tem 79 mil habitantes, registrou um aumento de 36% em sua população. Já São Sebastião, que tinha 58 mil moradores em 2001, hoje tem 73 mil, o que significa crescimento de mais de 25%. O problema se agrava no verão, quando milhões de turistas descem a serra em busca de uns dias de sol à beira-mar.
Com aumento populacional tão acelerado, as condições de saneamento, habitação, saúde e coleta de lixo do litoral, que sempre estiveram longe do ideal, ficam ainda piores. Para se ter uma idéia, São Sebastião é o município que tem a melhor cobertura de esgoto da costa norte de São Paulo. No entanto, o índice não passa de 41%. Em Ilhabela, o número de casas atendidas é de apenas 3%. Os outros 97% ainda usam fossas ou jogam seus dejetos direto nos rios ou no mar. "Se, hoje, as prefeituras não dão conta de atender tanta gente, imagine com a duplicação da Tamoios, que vai facilitar muito o acesso de turistas e de novos moradores", diz Mantovani, da SOS Mata Atlântica. "Ninguém é contra a duplicação e o uso do porto de São Sebastião. Somos contra fazer a obra sem pensar no outro lado, em como os problemas sociais, ambientais e habitacionais no litoral serão resolvidos", acrescenta.
Outra conseqüência negativa do crescimento desordenado dessas cidades é a ocupação irregular dos morros, que, de acordo com a legislação ambiental, deveriam estar preservados. Apenas na cidade de São Sebastião já existem 41 favelas. "Há gente morando a 400 metros de altitude, dentro da área do Parque Estadual da Serra do Mar. O limite máximo permitido é 200 metros", afirma Mantovani.
Diante de tantos problemas, a preocupação dos ambientalistas e de muitos moradores da região é compreensível. "Uma ponta da cadeia, a região de Campinas e do vale do Paraíba, está preparada e tem necessidade dessa obra. Mas o litoral norte não tem estrutura para suportar tamanha intervenção", diz Hipólito, do Consema.
Em condições ideais, todas essas deficiências deveriam ser solucionadas antes do início das obras de duplicação, para que o litoral norte estivesse preparado para absorver os impactos. Mas, na opinião de Dario Reis Lopes, a situação é de urgência, pois a pista simples da SP-099, mesmo com as obras realizadas entre 2002 e 2004 – transformação do acostamento em terceira pista e alargamento em alguns trechos –, não dá conta da atual demanda. "Além disso, se ficássemos esperando todas as questões sociais serem resolvidas, nem essa nem nenhuma outra obra rodoviária sairia do papel", afirma o secretário. "Não há como nos preocupar com os problemas de todo mundo", acrescenta.
Discussão semelhante a essa ocorreu no final da década de 1980, quando o governo do estado tentou aprovar a construção de uma rodovia que, como a Tamoios, também cortaria o Parque Estadual da Serra do Mar. Batizada de Estrada do Sol, ela sairia do vale do Paraíba e encontraria a Rio-Santos na altura da cidade de São Sebastião. Assim como hoje, a SOS Mata Atlântica e outras organizações de defesa do meio ambiente fizeram forte oposição ao empreendimento, até conseguir barrá-lo. "Os argumentos daquela época eram os mesmos de agora: o poder público não sabia equacionar os impactos que a obra teria na região", diz Mantovani. "A degradação atual do litoral mostra que estávamos certos. Se o governo não conseguiu controlar o crescimento caótico da região sem a Estrada do Sol, imagine o que teria acontecido se a rodovia tivesse sido construída", conclui.
Alternativa para exportar
Enquanto no litoral norte a duplicação da Rodovia dos Tamoios é vista com muitas ressalvas, no interior de São Paulo a situação é bem diferente. Para os empresários e autoridades públicas da região de Campinas e do vale do Paraíba, a criação do corredor de exportação e as melhorias no porto de São Sebastião são consideradas um grande avanço. "São obras que deveriam estar prontas ontem", diz Saulo Duarte Pinto Junior, presidente do conselho consultivo da seccional Campinas do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças. "É preciso desafogar o porto de Santos e criar uma alternativa para escoar a produção do interior de São Paulo, do Mato Grosso e de Goiás."
Hoje, para exportar um produto fabricado na região do vale do Paraíba ou de Campinas, é preciso levá-lo ao porto de Santos, que já opera no limite de sua capacidade (há um projeto do governo para ampliação das instalações, mas as obras ainda não começaram). De caminhão, a carga segue para São Paulo, cruza a cidade e desce pelo sistema Anchieta-Imigrantes até a Baixada Santista. A criação do corredor de exportação pode facilitar – e baratear – bastante esse processo. Primeiro, porque o trajeto do vale do Paraíba até o litoral norte é muito mais curto do que até Santos. Segundo, porque, para chegar a São Sebastião, os caminhões não precisam passar pela capital, o que traz um ganho de tempo significativo, uma vez que atravessar São Paulo às vezes leva mais de duas horas. Por último, as indústrias não seriam mais obrigadas a enfrentar as longas filas do porto de Santos.
Marcelo Cereser, presidente do Grupo Castelo, fabricante de vinagres com sede em Jundiaí e que tem faturamento de cerca de R$ 40 milhões por ano, é um dos empresários que vê com bons olhos a possibilidade de utilizar o porto de São Sebastião. Normalmente, o tempo gasto para trazer um contêiner até a fábrica, carregá-lo e levá-lo de volta a Santos é de 48 horas. Porém, nos últimos meses, devido à sobrecarga do sistema, algumas vezes a administração portuária estipula que todo esse processo leve, no máximo, apenas 12 horas.
"É impossível cumprir essa determinação. Só para ir de Jundiaí a Santos e depois voltar, o caminhão gasta cerca de oito horas na estrada", reclama Cereser. "Essa redução de tempo é uma maneira educada de dizer que seu produto terá a exportação atrasada", completa. Recentemente, devido a esse problema, 20 contêineres do Grupo Castelo seguiram para Angola fora do prazo. "Estamos vendo nossa competitividade comprometida por causa de um gargalo no porto de Santos", diz Cereser. Segundo ele, mesmo com um pequeno aumento no trajeto – Jundiaí fica mais próximo de Santos do que de São Sebastião –, o porto do litoral norte é uma alternativa viável para evitar atraso nos embarques.
Para empresas do vale do Paraíba, os ganhos serão incontestáveis. "É muito mais rápido chegar ao porto de São Sebastião. Não tem sentido que tudo o que é produzido na região de São José dos Campos e Taubaté tenha de ir até São Paulo, se existe um porto em São Sebastião", afirma Flávio Benatti, presidente da Federação das Empresas de Transporte de Cargas do Estado de São Paulo (Fetcesp).
Até 2003, o porto de São Sebastião era utilizado basicamente por navios petroleiros. A partir de 2004, depois de uma reforma que custou cerca de R$ 12 milhões, ganhou dois píeres para atracação e, com isso, passou a ser usado para embarcar, entre outros produtos, cevada, barrilha e veículos, que, desde então, contam com pátios de armazenagem. No primeiro semestre deste ano, cerca de 11 mil carros foram exportados a partir dali. "Hoje, o porto deixou de ser deficitário: no ano passado teve um superávit de US$ 33 milhões", informa Dario Reis Lopes.
Porém, a capacidade do porto de São Sebastião – 400 mil toneladas anuais – ainda é irrisória diante dos 67 milhões de toneladas movimentadas em Santos todos os anos. "A idéia não é que os dois terminais concorram, mas se complementem", diz Benatti, da Fetcesp.
O porto de São Sebastião tem diversas vantagens em relação ao de Santos. Uma delas é a profundidade natural, de mais de 20 metros, que permite a atracação de navios maiores. No de Santos, que fica numa região de acúmulo constante de sedimentos, o canal precisa ser freqüentemente dragado para poder receber embarcações de grande calado.
Mudança na matriz
Especialistas em transportes afirmam que a duplicação da Rodovia dos Tamoios não será suficiente para servir o porto de São Sebastião. "Um terminal marítimo também precisa ser abastecido por ferrovias", diz Benatti. Mas, de acordo com a Secretaria dos Transportes, não há necessidade de construir uma linha de trens que chegue até São Sebastião. "O porto vai se especializar no embarque de produtos de alto valor agregado, como eletroeletrônicos, que vêm do vale do Paraíba e só podem ser transportados por caminhões", argumenta Lopes. "Dessa forma, a obra de duplicação atenderá à demanda."
Entretanto, o professor especialista em transportes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Alexandre Delijaicov acha absurdo o argumento do secretário. "As pessoas têm necessidade de justificar a duplicação e não consideram a questão como um todo", contesta. "Já chegou a hora de o poder público pensar em construir um sistema ferroviário decente em São Paulo, para transportar tanto pessoas quanto cargas." O argumento do professor é antigo, mas nem por isso ultrapassado: o transporte rodoviário, além de ser mais caro que o ferroviário, polui mais. Segundo o especialista, enquanto uma mercadoria transportada por ferrovia custa US$ 0,14 por tonelada por quilômetro, por rodovia o preço é de US$ 0,40. Mas a economia não é o único item a favor dos trens. "O litoral norte é hoje um desastre, uma terra sem futuro. Os donos de casas de veraneio, com seus carros, lotam cada vez mais as praias e os morros, fazem especulação com os terrenos e, depois, vão embora. Duplicar a Tamoios significa incentivar um modelo errado de transporte desde a base", justifica Delijaicov. A seu ver, a matriz rodoviarista estabelecida no Brasil, a especulação imobiliária e o crescimento desordenado no litoral norte de São Paulo estão interligados, pois todos eles são amparados pela elite econômica.
Licenciamento ambiental
Outro assunto delicado envolvido na criação do corredor de exportação é o licenciamento ambiental. Assim como aconteceu com a Rodovia dos Imigrantes, que liga a capital paulista à Baixada Santista, a estrada vai cortar vários quilômetros do Parque Estadual da Serra do Mar, um dos poucos redutos de floresta tropical preservada no Brasil. Para receber autorização para o início das obras, qualquer empreendimento desse porte precisa vir acompanhado de um estudo de impacto ambiental, conhecido como EIA-Rima, que deve ser aprovado pelo órgão competente – no caso da duplicação da Tamoios, a responsabilidade é da Secretaria de Meio Ambiente. Segundo o secretário dos Transportes, a idéia é fazer cinco Eias-Rimas – um para o trecho plano da Tamoios, onde a duplicação será feita junto com a pista atual, um para o trecho de serra, onde será construída uma pista nova, como na Imigrantes, um para a alça de contorno de Caraguatatuba, outro para a alça de contorno de São Sebastião e, finalmente, um último para o porto de São Sebastião. "Com estudos separados, não teremos como avaliar os impactos ambientais na sua totalidade", critica Hipólito, do Consema. Os trechos do projeto que estão gerando mais polêmica são aqueles que oferecem maior risco ao meio ambiente, como a parte de serra da Tamoios, que fica dentro do parque estadual. "A nosso ver, seria interessante que não houvesse mais nenhuma intervenção dentro dos limites do parque, mas, como isso não é possível, temos de procurar mitigar os impactos sobre o meio ambiente", diz Humberto Gallo Júnior, coordenador regional dos parques do litoral norte. Segundo ele, uma maneira de minimizar esses impactos é construir túneis, que reduzem a devastação e não induzem à ocupação. Outros trechos problemáticos são as duas alças de contorno, que passarão muito próximo do pé da serra do Mar, em áreas que já estão sendo devastadas pela ocupação irregular.
Na opinião do secretário dos Transportes, a maior polêmica vai girar em torno das compensações ambientais – um mecanismo financeiro de acerto de contas pelos impactos ocorridos devido à implantação de um empreendimento. "Estamos estudando a possibilidade de mudar a natureza da compensação, isto é, se derrubarmos árvores, em vez de providenciar o replantio, poderíamos financiar obras de saneamento básico", explica ele. Segundo Lopes, a melhor forma de tratar essa questão sem atrasar muito a realização do corredor de exportação é, primeiro, iniciar as obras do alcoolduto, que seguirá o caminho da pista já existente da Tamoios e causará menos impactos ambientais. Enquanto isso, as considerações sobre a duplicação da rodovia seriam debatidas por todas as partes envolvidas. Para o secretário, essa é uma forma de não emperrar o empreendimento, como ocorreu na construção do trecho sul do anel viário ao redor de São Paulo, que ficou quase seis anos em discussão e só saiu do papel em setembro. Mas, se depender dos opositores ao projeto, é o que vai acabar acontecendo.
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