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Ficção inédita

Postado em 04/10/2006

REVISTA E - Outubro 2006

 

 

 

 

PAGODE DAS CAGARRAS

 

 

por Godofredo de Oliveira Neto

 

 

Não que eu queira mudar de cara, isso não. Mas quero viver numa boa, sair em revistas, essas coisas. O meu casamento com a Ditinha não apareceu em lugar nenhum, nem em jornal, nem em revista, nem na televisão, nada. Por quê? Neguinho não gosta de carninha na grelha, pagode, cerveja em copo de plástico? Nem do calor pendurado lá em cima na laje do barraco, o sambinha comendo solto? Quem decide o que é feio e bonito, bom ou ruim, justo ou injusto, ético ou imoral? A natureza ou os homens mesmos? Quem decide quem sai ou não na televisão? Não pode bermuda, camiseta sem manga, chinelão, topezinho apertado, shortinho rosa-choque marcadinho, é isso? Tá bem, não pode não pode. Desisto. Deve ter Deus andado por aí. E ele já decidiu aquilo que eu disse há pouco. Tô com ele e não abro, ele deve saber decidir o que é feio e o que é bonito. Mas ele tem que me mostrar, e é nessas bandas da cidade que ele aparece mais, pelo menos parece.



- Mas aqui não dá, bicho, galerinha daqui não vai comprar a tua música nem comer o teu churrasquinho na beira do calçadão olhando o mar de Ipanema, não vai, cara. Os moradores iam chiar, e a polícia baixar o pau. E o teu passado é barra, cara, cai na real.



Oi, brodi! O que passou passou, tá? Eu sei que você sabe parte do meu passado, porque eu mesmo te contei. Agora sou cantor. Acompanho a política. Tenho o 2º grau completo. A coisa agora é da periferia pro centro, não do centro pra periferia. Aquela vez do acontecimento foi mal, tá certo, foi mal. Mas não morreu ninguém. O carro era pra mostrar pra Ditinha, impressionar ela. Ela andava de olho grande pro Kenedi, lá do morro. O cara tinha grana, ganhava fácil, vendia ilusão em saquinho, morou? Ele viveu pouco, o bando rival matou ele como um cachorro.



Carro preto, vidro escurão, buzina estridente. A Ditinha quase caiu pra trás quando me viu.



- De onde veio a grana, Oldinei? De onde?



- Tô economizando o dinheiro da lavação de vidro, Ditinha, pô, só isso. Hoje uma coroa no sinal lá da Lagoa me deu 10 contos.



- E como é que tu ia conseguir tanto 10 contos assim pra comprar um carro desse, Oldinei! Tá achando que eu sou otária?



Foi essa mais ou menos a resposta dela. Não funcionou. A Ditinha é mulher direita, a mãe é religiosa. Me disseram que o que ela tinha com o Kenedi é só como ir no cinema ou ver a novela. Olha o cara, acha bonito, mas é na tela. É só boniteza, mais nada. Não sei não. Mas prefiro acreditar. No dia seguinte, de madrugada, devolvi o carro. Fiz do mesmo jeito que peguei ele, só que agora ao contrário. Em vez de bater no vidro com arma de brinquedo e dizer: "Perdeu, perdeu, passa o carro daí, tio, passa aí, perdeu" (o coroa saiu do carro naquela vez todo perfumado, a mulher dele, parecia filha, li depois que era a mulher, toda cocotinha, loura tipo Xuxa, saiu maneirinha pela outra porta. Entrei no carro, botei a primeira e saí cantando pneus), imaginei, dessa vez, um cara tipo o Kenedi batendo com o revólver no vidro e dizendo: "Sai daí rápido, xará, senão te apago". Abri a porta, saí mansinho, todo perfumado, como o coroa. Usei o perfume que a Ditinha me deu pelo meu aniversário. Foi bem na porta do prédio, o carro ficou estacionado bem de frente pra portaria onde o cara morava, na Delfim Moreira, bem direitinho onde eu tinha roubado ele, eu era molecão ainda, como já te disse. E ele, o dono do carro! De onde ele tirou o dinheiro pra comprar a Mercedes?



- Ele é um notório contrabandista, está preso em Miami, nos Estados Unidos. Pelo menos é o que se comenta. Mas outros que têm dinheiro enriqueceram honestamente, aliás, como você agora. Nem todo mundo é como o sujeito aí da Mercedes.



Pois é! E ele fazia pagode na laje dele olhando pro mar?



- Não sei. Só sei que era conhecido por só usar roupas de grife, tinha 300 pares de sapatos importados, era maníaco por roupas de marca, adorava sair nas colunas sociais. Li uma matéria no jornal sobre ele.



Então, é muito pior que eu. E por que as coisas que ele gostava eram as mesmas que saíam nas revistas de moda?



Por que ele saía em tudo que é programa de TV? O que que ele tem de melhor que eu? Eu roubei quando era adolescente, mas pelo menos me arrependi logo, 24 horas depois. A Ditinha é fogo, mandona que só ela. Mudei de vida desde aquele dia, mudei para sempre. Mas o que as minhas coisas têm que as revistas e os programas da televisão não gostam? Tem uma coisa: eu não sou bobo não, não mesmo! Não quero aparecer na televisão de esmola não. Não quero sucesso postiço. Essa onda aí, de dizer que o que tá na moda é o que vem da periferia pra dentro, tem que ser de verdade, e não só pra esvaziar a nossa cultura, se for de verdade, beleza. Porque o pensamento já está viciado. Se alguém diz "aceito", é porque quem decide é essa pessoa. É como o papo de descobrimento que a gente aprendeu na Escola Luiz Delfino, lá embaixo do morro. Se os índios já estavam aqui, por que que fala descoberta? Quem descobriu quem? Com a idéia de ser negro mesma coisa. Os negros, como eu, tinham uma civilização toda prontinha e certinha lá na África. Pobre, mas certinha. O pessoal do movimento já me explicou isso.Vieram pra cá na marra, obrigados. Não querem presente do tipo: vou eleger vocês como os verdadeiros brasileiros. Isso a gente decide junto com os brancos, que também vieram de fora, e com os índios, que já estavam aqui. Isso a gente decide com todo mundo na paz e na fraternidade. O que eles falam de identidade cultural brasileira a gente resolve o que é entre os que estão no jogo. Já aconteceu coisa com o meu primo que me deixou prevenido. Ele tinha uns 18 anos, eu mais ou menos 15. Foi num bar lá no pé da Serra de Petrópolis, a gente tomando vodca e cerveja.



- Boa-tarde - um deles disse. E logo perguntou: - Quem é o Kiko, aqui?



- Sou eu - respondeu o meu primo.



- A gente queria ver se discutia com você sobre a tua música, Kiko. Ela é a melhor que a gente tem visto nesses últimos tempos. Nós somos de uma gravadora, e a gente trabalha com a cultura negra, a nossa paixão e a nossa vida.
Os caras eram negros como nós. Mas com roupa da zona sul do Rio, tipo artista de novela das 8. O Kiko ficou ainda mais negro de alegria, deu uma talagada só no copo de vodca, tomou o restinho de uma cerveja direto no gargalo, e deixou sair um grito de alegria. Já levantou abraçado com os caras. Hoje ele tá cada vez mais pobre, parou de compor, enganaram ele bonitinho. E fizeram isso com mais uns dez caras lá da comunidade.



- Mas a tua música e os teus churrasquinhos o pessoal daqui do prédio não quer, Oldinei.



A minha música eu pego ela de tudo que é lugar, como quando a gente colava do caderno e do livro no colégio no dia da prova. Boto letra que me trazem de revistas antigas, misturo tudo, faço igual com a melodia. Copio sem parar, e sai essa aí que você ouviu ontem e que os moradores reclamaram. Se fosse pintor de quadros imitava igualzinho e botava o meu nome em baixo. Quem quiser que vá reclamar pra Deus. Ainda bem que, a meu ver, Deus não se mete nessas coisas, tem mais o que fazer. Tenho certeza que a mãe da Ditinha concorda. E churrasquinho, chinelão, camiseta cavada, copo de papel e cerveja gelada, topezinho e shortinho eu gosto e pronto.



- Concordo com você, mas sabe como é. O condomínio tem regras, a cidade tem leis contra o barulho e por aí vai.



As leis eu conheço também. Tem uma família que morava lá no lote, do lado da gente, eram todos branquinhos que nem aquelas galinhas de granja que a gente vê na televisão. Eram do interior aí de um estado. A família toda era artista. Um fazia bonequinhos de gesso, outro estátuas de madeira, outra desenhava, o pai tocava sanfona, a mãe acordeom, o mais novo era poeta de cordel. Um dia vieram uns caras parecidos com aqueles do Kiko. Só que eram brancos, terno branco, sapato marrom brilhando, corrente de ouro. Enganaram a família prometendo maravilhas para a filha mais nova, salário alto, roupas para todo mundo, cesta básica toda semana e por aí afora. Mas na verdade a menina foi é trabalhar na noite em Copacabana. O irmão mais velho descobriu. Ela fugiu. Voltou pra casa. Uma tarde os sujeitos apareceram de novo. O irmão e mais dois primos deram uma surra nos três caras, que não esperavam a reação. Eles ficaram, os três, de costela quebrada, um perdeu todos os dentes da frente. O chefão da comunidade veio rapidinho dizer que a família tinha que se mandar dali logo, porque um daqueles homens era autoridade e vinham matar todos. E vieram mesmo, em carro oficial e tudo. Eu vi da minha janela. De noitinha, no dia seguinte, chegaram sete homens armados que já entraram atirando no barraco. Viram que tava vazio, e mesmo assim, não entendi bem por que, acho que era raiva, dispararam toda a munição que tinham no chão e nas paredes da casinha. Móvel não tinha mais nenhum mesmo. Até o vaso sanitário foi metralhado.



- Pois é, Oldinei! E nós, como é que ficamos quanto às reclamações dos moradores?



Reconheço que me chamar aqui pra sala de visita, me oferecer esse uisquinho, e me ouvir todo esse tempo já faz de você um síndico diferente de tudo o que está aí. Eu é que pergunto como é que a gente faz!



- Por ora acho que a gente pode e deve misturar tudo aqui, Oldinei, concorda? Música, bebida, comida, chama o teu povo lá do teu apartamento pra descer, traz a grelha, vamos todos juntos aproveitar essa vista da praia de Ipanema, e imaginar todo mundo lá nas Ilhas Cagarras num grande pagode, o Pagode das Cagarras. Amanhã a gente vê o que faz.


Godofredo de Oliveira Neto é autor, entre outros livros, de Menino Oculto (Editora Record, 2005)

 

 

 

 

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