
Hoje tem espetáculo?
por
Adolfo Mazzarini Filho
Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor. Às oito da noite?
É sim, senhor.
Hoje tem marmelada? Tem sim, senhor.
Hoje tem goiabada? Tem sim, senhor. E a moça na janela? Tem cara
de panela.
E a negra no portão? Tem cara de tição.
E o palhaço, o que é? É ladrão de muié.
Ó raio, ó sol, suspende a lua!
Viva o palhaço que está na rua.
Minha infância
foi recheada de poesia e circo. A poesia pelo meu pai e o circo porque
era uma das únicas manifestações artísticas
que chegavam ao interior. Sim, também havia o cinema e a música.
Mas a chegada de um circo numa pequena cidade era uma transformação
total. Lembro-me da euforia, do movimento: o desfile de chegada, a lona
sendo erguida, o convite feito pelos artistas em todos os cantos. O nosso
cotidiano modificava, o assunto do momento passava a ser o circo e suas
histórias... A do casal de domadores recém-casados que haviam
sido atacados pelos leões, das pessoas que fugiam com o circo,
dos meninos que corajosamente furavam a lona. E todos queriam ver o maior
espetáculo da terra. Pelo menos daquela nossa pequena terra.
Nas funções, as atrações de sempre, mas se
eu pudesse ia todos os dias. Os palhaços, o táxi maluco,
os trapezistas, os malabaristas e equilibristas, a contorcionista, o atirador
de facas, os animais, a bandinha, o globo da morte, as mulheres com roupas
ousadas e sensuais. E na segunda parte o circo-teatro. Encantava-me com
aqueles dramas e comédias: Sansão e Dalila, O Homem Que
Nasceu Duas Vezes, Lágrimas de Homem, Mestiça, E o Céu
Uniu Dois Corações... Dos circos da minha infância
lembro-me do Circo Robatini, Circo Teatro Irmãos Almeida, Circo
Teatro Universo, Circo Teatro Rosário, Circo Teatro Novo Mundo
e, talvez o mais famoso de todos, Circo Teatro Guaraciaba.
O tempo passou, as mudanças vieram, mas o circo sempre esteve presente
em minha vida. Já não era a mesma emoção da
infância, como não era a mesma cidade. Mas o fascínio
sempre foi o mesmo. Morei em muitos lugares e, sempre que havia um circo,
lá estava eu. Na hora de escolher minha profissão, não
por acaso, fui estudar artes cênicas.
No entanto, foi através do Sesc que tive o privilégio de
me aproximar mais do circo e seus artistas. Primeiro, em Campinas, primeira
unidade em que trabalhei e na qual conheci de perto o novo circo francês.
Realizamos na cidade, com enorme sucesso, apresentações
do Les Art Sauts, com seu caminhão-trapézio encantador,
do Que-Cir-Que, com um banho de técnica e criatividade, e da trupe
de Jérome Thomas, que reescreveu a arte dos malabares.
Em 1997, por ocasião do centenário de nascimento do palhaço
Piolin, um dos mais expressivos palhaços do país, coordenei
o projeto Sua Majestade o Circo, que, numa lona montada no Teatro de Arena
do Centro de Convivência Cultural, reuniu durante três semanas
o circo tradicional e a nova geração do circo brasileiro.
Já em São Paulo, em janeiro de 2002, realizamos também
o Circo-Cine-Teatro Sesc Belenzinho, sob uma grande lona armada na praça
central da unidade, arquibancadas para 500 pessoas, picadeiro e palco,
onde aconteceram espetáculos de circo-teatro, exibições
de filmes comentados, espetáculos circenses para crianças,
espetáculos de circo tradicional e de circo contemporâneo,
além de diversas oficinas das técnicas circenses.
Hoje, por mais que se fale que o circo está acabando, que só
sobreviverão os grandes circos, a arte circense tem se fortalecido
muito e sobrevive também fora do picadeiro. A nova geração,
que surgiu nas últimas décadas em vários países,
com a denominação de circo contemporâneo ou novo circo,
que nem sempre são oriundos de famílias circenses, faz escola
de circo, estuda, cria uma nova forma dessa arte, unindo técnicas
do circo com outras artes. Temos no Brasil inúmeros grupos que
surgiram e pertencem a essa geração, que revitalizam o circo.
Já há alguns anos, artistas de vários grupos brasileiros
vêm sendo contratados para trabalhar no Cirque du Soleil, o circo
canadense considerado um dos melhores do mundo.
É por isso e por muito mais que podemos afirmar, com toda alegria,
que hoje tem espetáculo sim, senhor!
Adolfo Mazzarini Filho, formado em artes cênicas, é
técnico do Sesc Belenzinho
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