Arte agreste
Considerado por Ariano Suassuna o melhor gravador popular do Nordeste, o artista pernambucano J. Borges fala da vida e da arte do cordel
José Francisco Borges, ou J. Borges, como é conhecido no mundo das artes plásticas, nasceu em Bezerros, Pernambuco, em 1935. Autor das obras da exposição A Arte de J. Borges – Do Cordel à Xilogravura, realizada no Sesc Santana, o pernambucano é um dos mais festejados artistas populares da América Latina. Gênio da xilogravura e da escrita em cordel, já percorreu, por conta de sua obra, mais de 20 países europeus, além da América Latina e dos Estados Unidos. Foi alvo de uma reportagem do jornal americano New York Times há cerca de três anos e chegou a vender 5 mil dólares em gravuras em dois dias nas terras de Tio Sam. Foi lá também que um lote de suas xilogravuras foi comprado por 30 mil dólares num leilão. J. Borges passou apenas dez meses na escola e diz que deve tudo que sabe ao cordel. O dinheiro que recebe por suas obras nunca foi esperado pelo artista, que ainda hoje vive no agreste pernambucano, com Nena, sua atual mulher, e seus dez filhos, frutos dos três casamentos. Em depoimento exclusivo à Revista E, Borges falou sobre a trajetória difícil e as realizações de uma vida dedicada à cultura popular. Confira os melhores trechos.
Quando eu era novo, me apaixonei pelo cordel porque essa era a única diversão da época, em Bezerros, cidade onde nasci, no sertão de Pernambuco. Não tínhamos rádio e naquela época, década de 30, nem existia televisão. Também não tínhamos acesso a revistas, a jornais, a nada. As poucas notícias que chegavam lá, vinham pelo cordel, que, além de trazer em forma de poesia histórias tradicionais da cultura popular, também fazia as vezes de jornal. Nem carro chegava em Bezerros naquele tempo e apenas um fazendeiro da região possuía rádio, ou seja, o cordel era realmente nossa grande fonte de notícias. Era por ele que eu ficava sabendo de fatos da época, como o cangaço. Até a vitória de Getúlio Vargas nas eleições e, depois, a sua morte, fiquei sabendo pelo cordel. Quando Getúlio morreu, a vendagem foi histórica: 500 mil exemplares. Durante minha infância, toda noite meu pai lia uma ou duas histórias para os filhos e foi assim que me apaixonei por essa forma de escrever. Aquilo era uma diversão e tanto para todos nós. Só consegui ir para a escola aos 12 anos e a freqüentei por apenas dez meses. Ou seja, tudo que sei hoje devo à pequena leitura que aprendi naquela época e ao cordel. A xilogravura veio depois na minha vida, somente quando escrevi meu primeiro cordel, por volta dos 25 anos, e precisei ilustrá-lo.
Nunca vi, sempre soube Nunca tinha visto ninguém fazer uma xilogravura, mas sabia como funcionava o processo. Vendi bem o primeiro cordel ilustrado por mim e continuei fazendo. Em pouco tempo, outros cordelistas já me encomendavam ilustrações. Cerca de cinco anos depois, um fato mudou por completo minha carreira. Foi quando uns turistas do Rio de Janeiro vieram me procurar. Eles me viram imprimindo gravuras de cordel, gostaram muito e fizeram algumas encomendas. Esses cariocas, então, mostraram o trabalho a Ariano Suassuna, que me considerou o melhor gravador popular do Nordeste. E, como a palavra dele é muito forte, o povo acreditou. Saiu na TV Globo, no Diário de Pernambuco, no Jornal do Commercio, no Estado de S. Paulo e em muitos outros jornais. Isso aconteceu no fim dos anos 60. A imprensa foi toda me conhecer em uma semana só e no sábado dessa mesma semana eu já comecei a receber muita gente para comprar meus trabalhos.
Xilo para sempre Nunca mais parei de fazer xilogravura e hoje o mundo todinho tem trabalhos meus. Tenho viajado bastante – já fui a países como Suíça, Estados Unidos, Venezuela, Cuba – e tenho 235 cordéis publicados. Ilustrei livros importantes, como Palavras Andantes, do famoso escritor uruguaio Eduardo Galeano. Lá estão 180 ilustrações minhas. Primeiro a obra foi publicada em espanhol e depois em português. Em 1997, por conta da tradução em inglês, viajei para os Estados Unidos, onde o livro foi muito vendido. Nos EUA, eu gosto muito de Santa Fé, capital do Novo México. Lá está um dos maiores museus do mundo, o Museu de Arte Popular de Santa Fé, que tem obras minhas. Consigo vender uma gravura lá por 36 dólares, enquanto aqui eu vendo por 20 reais. Em Austin, capital do Texas, tem uma loja que desde 1992 vende trabalhos meus. Em 2004 saiu uma matéria grande sobre mim no New York Times e a partir de então a venda por lá melhorou muito. O povo vai muito na conversa da imprensa. Por conta disso, a loja, que me fazia pedidos uma vez por ano, agora faz duas vezes por ano. Depois eu fui para Kansas City, que fica no Missouri. Passei três dias por lá e meu trabalho também foi muito bem aceito. Trabalhei na Hallmark, uma grande empresa que fabrica de tudo. Eles ficaram sabendo de mim por meio dessa loja de Austin e me convidaram para fazer gravuras lá mesmo. Ganhei 1.000 dólares de cachê e vendi em dois dias 5 mil dólares. Foi ótimo. Isso tudo em 1997, quando também fui para Cuba a convite do governo de Pernambuco. Viajei com mais 200 pessoas para mostrar a nossa cultura. Em Cuba, não há dinheiro nem para comprar uma vela para morrer. Passei 12 dias lá e notei que, apesar de as pessoas serem muito sofridas, são muito alegres. Lá se vive nu e cru. O povo passa fome e só se veste quando alguém doa roupas. Mesmo que tenham dinheiro, não têm o que comprar. Nos hotéis se encontra gente pedindo sabão para tomar banho porque não tem. Tive pena. Eu e um menino lá de Olinda demos todas as nossas roupas para o pessoal de lá. Antes de irmos para lá, tivemos uma reunião em Recife em que fomos avisados de que deveríamos nos abastecer de sabonete, pasta de dente, roupas íntimas e tudo mais porque lá não haveria onde comprar nada. Então eu fui bem abastecido. No final, quando eu vi a pobreza, eu dei todas as minhas roupas, voltei só com uma calça e uma camisa. Dei cuecas, sabonetes meus e do hotel e tudo mais. Doei uns cinco trabalhos meus para a Casa de Cultura de Santiago. Todos gostaram muito.
Rotina Todo dia eu acordo às 5 horas. Meu ateliê fica a 10 metros de casa. Vou para lá e começo a riscar alguma coisa, desenhar e escrever. O meu cunhado, que também mora em casa, e meu filho de 15 anos fazem impressão. Tenho outros dois filhos que também trabalham comigo. Às 7 horas, todos chegam e começamos a trabalhar. Nesse tempo também atendo quem vem me visitar ou conhecer meu trabalho. Vou fazendo as gravuras, eles fazem a impressão, colocam capas nos cordéis. Trabalho não falta. Paro de trabalhar lá pelas 5 horas da tarde. Costumo também dormir cedo, depois do Jornal Nacional, vou logo para cama. Aos finais de semana, vamos à feira cedo fazer compras e de tarde passeamos. Domingo, também, vou à casa de amigos, visito algumas barragens da região. É bom tomar banho em lugar diferente de vez em quando. Trabalhei muitos anos nos fins de semana, atualmente tiro esses dias para descansar. Muitas vezes não consigo porque chega alguém de longe, até mesmo estrangeiros, querendo me conhecer e querendo gravuras assinadas. Na verdade, é esse dia-a-dia que me inspira. É de onde sai tudo que escrevo e ilustro. A poesia de meus cordéis vem da minha região mesmo, do dia-a-dia do povo, da nossa convivência, das lendas, do folclore. Isso foi o que sempre me inspirou. Até hoje nunca falhou.
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