Cruzada existencial
Considerado um dos maiores expoentes da psicologia, Carl Gustav Jung dedicou a vida a desvendar os mistérios da alma
As entranhas da alma já foram esmiuçadas em verso e prosa. A música, vira e mexe, recorre ao tema, em canções como O Que Será (À Flor da Pele). "O que será que será que dá dentro da gente que não devia? Que desacata a gente, que é revelia?", indaga Chico Buarque na letra, escrita em 1976. Através de artistas, pensadores, alquimistas, religiosos, gente comum, enfim, o assunto foi popular em grande parte da história. Depois do século 19 isso mudou. E a ciência passou a se ocupar da mente. Quase no finzinho desse período, pela primeira vez, o doutor Sigmund Freud (1856 -1939), um psiquiatra austríaco, cunhou o termo psicanálise. Desde então, é considerado o pai dessa área científica. Depois dele, muitos avançaram com base em suas teorias. Um dos mais profícuos foi o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). "É muito comum dizer que Jung foi discípulo de Freud, até que houve a ruptura na relação dos dois. Mas Jung sempre teve as próprias idéias, os dois trabalharam juntos", diz o psiquiatra Luiz Paulo Grinberg, autor de Jung - O Homem Criativo (FTD, 2003). Ele explica que, assim como Freud, Jung criou um sistema teórico e prático para lidar com o inconsciente. "Ele desenvolveu um pensamento a respeito da psique e também uma técnica para trabalhar com as manifestações do inconsciente no encontro terapêutico", afirma. Ambos eram médicos e a grande revolução capitaneada por eles foi trazer a psicologia para dentro da medicina. Isso não quer dizer, no entanto, que o inconsciente fosse, até então, desconhecido. Na Grécia Antiga, por exemplo, os sonhos - considerados por Jung um importante instrumento terapêutico - eram usados como ferramenta para chegar a um diagnóstico e até para indicar a cura. Nos templos de Esculápio - deus da medicina, filho de Apolo e da ninfa Coronis - era comum o paciente contar seus sonhos ao sacerdote. Porém, somente a partir do século 19 o inconsciente passou a ser reconhecido pela medicina. Isso numa época em que a doutrina em voga era o positivismo. "Essa corrente funcionava à base do ver para crer. Só se admitia um diagnóstico a partir de exames e após o médico apalpar o paciente para então chegar a uma conclusão. No entanto, o inconsciente é algo invisível e intangível. Trata-se do mundo das imagens, da fotografia das nossas emoções", diz Luiz Paulo Grinberg.
Contribuições Quarenta e cinco anos após a morte de Jung, a obra deixada por ele extrapola a psicologia e ecoa com muita importância em outras áreas do pensamento ocidental. "Alguns dos conceitos de Jung são muito revolucionários diante da psicologia", afirma Liliana Liviano Wahba, doutora em psicologia, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. "No entanto, podemos dizer que, para o pensamento atual, de maneira geral a grande contribuição de Jung é no campo da perspectiva ética do ser humano e do alcance do homem e de suas ações, principalmente daqueles que estão no poder, para fazer o mal", explica ela. E o mal, para o psiquiatra, significava, segundo Liliana, a destruição de outras pessoas. "Sua grande preocupação era com o que o homem é capaz de fazer quando se desconhece", diz.
Consciência e responsabilidade A professora conta que Jung costumava usar o termo "consciência de massa", para se referir a um contingente de pessoas que é dominado por um líder visionário ou profético, que age de maneira deliberada ou pouco consciente de si mesmo. Tal influência pode ser desastrosa sobre uma massa que também está "com um nível de consciência rebaixado", esclarece ela. "Ou seja, se não conhecemos nossa própria psique, podemos fazer coisas terríveis. Isso porque, de acordo com Jung, todos nós temos um lado sombrio. Podemos chamá-lo de inveja, desejo de poder, maldade, perversão etc. O fato é que todo mundo tem isso dentro de si, em maior ou menor grau", afirma a especialista. Essa falta de conhecimento, principalmente quando associada a um poder político muito grande, pode trazer danos terríveis. A equação deixa margem, no entanto, a uma pergunta: quem se conhece mais é necessariamente melhor consigo e com os outros? "Um dos paradigmas de Jung era a importância de cultivar a consciência. Aqueles que têm mais consciência agiriam, portanto, com mais responsabilidade. A não ser em casos extremos, que são anomalias morais, ou seja, as psicopatias", afirma Liliana. Ainda hoje se discute dentro da psicologia se as psicopatias têm cura. Afinal, para o psicopata não é fácil debruçar-se sobre a própria consciência. Mas as outras pessoas deveriam estar aptas a fazê-lo. Só que nem sempre isso acontece. "Ao juntar um psicopata e um bando de inconscientes, tem-se uma bomba catastrófica, de efeito letal", diz a professora. Por isso a psicologia vai além das paredes do consultório. "É possível exercer com ela um efeito sanativo social", conclui.
Trajetória Carl Gustav Jung nasceu em 16 de julho de 1875, na Suíça, em uma família religiosa e culta. Seu pai era Johann Paul Achilles, um pastor protestante e doutor em filosofia e lingüística. A mãe, uma dona-de-casa, filha de um pastor livre-docente em língua e literatura hebraica. Em 1895, quando o jovem suíço iniciou os estudos na faculdade de medicina, Freud publicou juntamente com Joseph Breuer um livro considerado revolucionário. Estudos de Histeria aborda o caso de Ana O., uma de suas pacientes, que sofria de paralisia histérica. Ou seja, a paralisia da moça não tinha explicações orgânicas. "Tratando o célebre caso da paciente Ana O., Freud desenvolveu técnicas inovadoras que deram lugar ao nascimento da psicanálise", explica o psiquiatra Luiz Paulo Grinberg, no livro Jung - O Homem Criativo. Para sorte de Jung, Eugen Bleuler, seu professor, foi um dos primeiros médicos a reconhecer a contribuição de Freud. Ele então encarregou Jung de chefiar a equipe que pesquisou e descobriu os complexos do inconsciente. Foi a partir de 1906, que Freud e o psiquiatra suíço passaram a corresponder-se regularmente. No ano seguinte, Jung foi a Viena conhecê-lo. Até 1913, um colaborou intensamente com o outro, o que resultou numa forte amizade. Mas, por uma série de pequenos atritos teóricos, eles foram se afastando aos poucos, até que chegaram a ponto de discordar em relação a conceitos básicos sobre a natureza do inconsciente. Depois disso, nunca mais se reencontraram. Com o rompimento, Jung passou a chamar seu método de trabalho de análise, não mais psicanálise. "A psicoterapia que se debruça sobre o estado inconsciente da alma foi descoberta basicamente por Freud e chama-se psicanálise. Após a separação, no entanto, Jung teve de criar uma teoria dele. Ele a chamou de psicologia analítica, hoje em dia análise junguiana", explica a professora Liliana Wahba. Jung morreu em 1961, deixando diversas contribuições, como os conceitos de inconsciente coletivo e arquétipo (veja boxe Jargão do divã).
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Veja Boxes:
Jargão do divã
Veja Jung sobe ao palco
Jung sobe ao palco
Sérgio Britto vive no teatro o médico suíço que revolucionou a percepção do homem sobre si mesmo
É fato bastante comum que personagens carismáticos da história ultrapassem a própria época e acabem em cima do palco, interpretados por grandes atores. Assim é com Carl Gustav Jung (1875-1961), um dos maiores nomes da psicanálise. No Brasil, a mais recente montagem sobre esse personagem estreou em 2005. Na pele do psiquiatra suíço estava Sérgio Britto. Dono de uma trajetória reconhecida, Britto comemorou seus 60 anos de carreira com o espetáculo Jung e Eu, que esteve em cartaz no Sesc Belenzinho em fevereiro. O espetáculo foi dirigido por Domingos de Oliveira, que também escreveu o texto com Giselle Falbo Kosovski. A peça recebeu duas indicações para o Prêmio Shell – melhor autor e melhor ator – e deixou o público paulistano com gostinho de quero mais. Segundo Britto, o problema talvez seja resolvido no fim do ano, quando Jung e Eu deve retornar aos palcos da cidade. “Nessa altura da vida [Britto está com 83 anos] eu só aceito propostas que me interessem muito”, diz ele. “Assim foi com Jung.” O intérprete se envolveu profundamente com a temática. Para se ter uma idéia, jura que, até encenar a peça, não acontecia com ele aquilo que o psicanalista julgava ser um dos mais importantes mecanismos da psique humana. “Eu não costumava sonhar. Agora sonho”, revela. Em cena, Britto alterna a interpretação de dois personagens, Jung e o ator shakespeariano Leonardo Svoba que, aos 80 anos, aceita o convite de viver o médico suíço em uma peça, sem nunca ter se interessado por psicanálise. O público fica a par do personagem pelo movimento dos óculos: se o ator usa o acessório, trata-se de Jung, se não, Svoba está em cena. Para ser o mais fiel possível a Jung, Britto optou por usar um microfone quando está na pele do psicanalista. “Assim posso falar baixo, exatamente como ele fazia”, explica. Para Domingos de Oliveira, a idéia que rege o espetáculo é deixar o público livre para conhecer essa personalidade que revolucionou a percepção do homem sobre si mesmo. “Não me preocupei em contar a história de Jung, mas sim em deixar a imaginação viajar”, diz. “Esta é a nossa modesta visão de um encontro de Jung com seu intérprete. A peça traça um paralelo entre o encontro do teatro com a psicanálise”, observa Sérgio Britto.
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Jargão do divã
Mesa de bar é o lugar ideal para a famosa prática da psicologia de boteco, aquela em que todo mundo devaneia muito, usando termos sobre os quais ninguém, na verdade, tem grande conhecimento. Mate algumas de suas dúvidas, no pequeno glossário a seguir.
Superego – Também uma das instâncias do aparelho psíquico, foi descrito por Freud como um censor, um juiz do ego, que funciona como força inibidora sobre o comportamento.
Id – Outra instância do aparelho psíquico, atua no inconsciente. Em português claro, é como se o superego fosse o inibidor e o id, o atiçador. De acordo com Freud, o id constitui o pólo pulsional da personalidade, aquele fortemente emocional, impulsivo e essencialmente irracional.
Arquétipos e inconsciente coletivo – Os arquétipos são uma espécie de matriz, uma raiz comum a toda a humanidade e da qual emerge toda a consciência. Revelados por Jung, possibilitaram o reconhecimento de duas camadas no inconsciente: a pessoal, que criamos após o nascimento, por meio do acúmulo de nossa história, e a impessoal, chamada inconsciente coletivo, com a qual já nascemos.
Sublimação – A única coisa que você sabe sobre Freud é que para ele tudo tem a ver com sexo? Pois na teoria criada por ele isso tem o nome de sublimação. Trata-se de explicar atividades humanas que aparentemente não têm relação com atividade sexual, mas que segundo ele teriam como elemento propulsor a força da pulsão sexual.
Histeria – Histéricas não são pessoas simplesmente escandalosas e também não é privilégio feminino. Freud descobriu que pacientes histéricos sofriam de antigos conflitos sexuais, que estariam guardados no inconsciente. Desvendadas as causas inconscientes desses conflitos, por meio da análise dos sonhos e das fantasias, seria possível aliviar os sintomas da histeria, que em alguns casos chegava até mesmo à paralisia do indivíduo.
Recalque – Trata-se de uma espécie de mecanismo de defesa que nos faz esquecer de fatos indesejáveis, ou seja, de lembranças incômodas e emoções dolorosas.
Fonte: Jung – O Homem Criativo, de Luiz Paulo Grinberg (FTD, 2003); Vocabulário da Psicanálise, de La Planche e Pontalis (Martin Fontes, 1997)
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