Postado em 01/11/2005
Pesquisas aeroespaciais se ressentem de falta de recursos e excesso de burocracia
EVANILDO DA SILVEIRA
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Logo após o acidente com o Veículo Lançador de Satélites 1 (VLS-1), em 22 de agosto de 2003, que destruiu parte do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, e matou 21 engenheiros e técnicos do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva garantiu que o programa espacial brasileiro não seria interrompido. Ele prometeu que até 2006, quando terminaria seu mandato, haveria um novo lançamento do VLS-1. Esse compromisso não será cumprido, mas nem tudo é má notícia na área espacial. Depois de anos de recursos decrescentes e irregulares, os investimentos no Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) começam a voltar aos níveis verificados em meados da década de 1980, época em que o país mais destinou verbas a ele.
As pesquisas espaciais no Brasil começaram em 1961, por determinação do então presidente Jânio Quadros, impressionado que estava pelo lançamento do primeiro satélite construído pelo homem, o soviético Sputnik, em 1957 (no ano seguinte os Estados Unidos reagiriam criando a National Aeronautics and Space Administration, a Nasa, e lançando seu primeiro satélite artificial, o Explorer 1). Desde então, o Brasil já investiu em seu programa espacial cerca de US$ 1,5 bilhão (R$ 3,2 bilhões).
Pode parecer muito para um país com tantas carências em outras áreas, como saúde e educação, por exemplo. Mas não é, se comparado ao gasto de alguns países. Os Estados Unidos, por exemplo, aplicam cerca de US$ 15 bilhões por ano apenas na parte civil de seu programa espacial – outros US$ 15 bilhões vão para o setor militar. Mesmo a Índia, país em desenvolvimento assim como o Brasil, gasta US$ 450 milhões por ano.
Os dispêndios brasileiros ainda estão longe desse valor. "Em 2005, destinamos R$ 200 milhões ao programa", informa Sérgio Gaudenzi, presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB). Neste ano, segundo ele, os gastos do PNAE deverão ficar em torno de R$ 250 milhões. "Pouco a pouco estamos nos aproximando de nossa meta, que é alcançar US$ 200 milhões (cerca de R$ 440 milhões)", diz. A título comparativo, em 2000, o valor aplicado ficou em cerca de R$ 71 milhões. O pico dos investimentos do Brasil nessa área ocorreu em 1988: cerca de R$ 260 milhões, em valores de hoje. Depois disso, o volume foi caindo, até chegar a irrisórios R$ 21 milhões, em 1999. De lá para cá começou a recuperação.
Descontinuidade
Embora as pesquisas espaciais no Brasil datem dos anos 1960, foi só em 1980 que surgiu um programa estruturado, com a criação da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB). O objetivo era ambicioso: lançar satélites brasileiros, com foguetes de construção nacional, em uma base localizada no país. No começo, parecia que tudo iria dar certo. O melhor momento ocorreu entre 1984 e 1989, quando os recursos eram relativamente abundantes.
Houve avanços, mas não o suficiente para atingir todas as metas. Um exemplo é o atraso no projeto do VLS-1. O objetivo era lançar o primeiro protótipo em 1987, o que acabou não ocorrendo. A primeira tentativa só foi acontecer em 1997, e a segunda, em 1999. Em ambas, o VLS explodiu logo após o lançamento.
A falta de investimentos a partir de 1990 levou o programa ao envelhecimento e foi a causa mais profunda do acidente de 2003. O próprio relatório da comissão que investigou a tragédia, formada por representantes do governo e da comunidade científica, reconheceu esse fato em suas conclusões. Segundo o texto, "a defasagem expressiva de recursos financeiros e a descontinuidade na sua liberação provocaram, ao longo dos anos, redução de investimento em capacitação técnica e em desenvolvimento ou aquisição de tecnologias atualizadas". A conseqüência foi a interrupção temporária do programa e a queda da motivação dos servidores envolvidos na fase de desenvolvimento do VLS-1.
O brigadeiro reformado Hugo Piva, idealizador do projeto VLS-1, aponta outro problema que as pesquisas espaciais sempre tiveram de enfrentar no Brasil: a legislação, que não permite a livre contratação de pessoal nem fixação de salários de mercado. "A redução de verbas e o aumento asfixiante dos entraves burocráticos tornaram quase impossível o recrutamento, manutenção e aperfeiçoamento de pessoal técnico competente e motivado", diz. Segundo ele, a lei também não abre mais espaço para o envolvimento da iniciativa privada nos níveis adequados.
Hoje, o programa espacial é coordenado pela AEB, autarquia vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que é responsável ainda pelo Sistema Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (Sindae), o qual envolve, além da participação governamental, as indústrias e a academia. O CTA, o Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), o CLA e o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI), próximo a Natal (RN), todos vinculados ao Comando da Aeronáutica, são responsáveis pela construção dos foguetes e pela operação dos centros de lançamento e rastreio. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por sua vez, constrói e opera os satélites. Em suma, cabe à AEB definir "o que fazer" e suprir o orçamento dos órgãos setoriais, executivos, que definem "como fazer".
Algum sucesso
Apesar dos problemas, o Brasil tem conseguido alguns êxitos em seu programa espacial. Desde a criação da MECB, o país já construiu dois satélites de coleta de dados, o SCD-1 e o SCD-2. Ambos foram lançados por foguetes norte-americanos, em 1993 e 1998, respectivamente, e ainda estão em operação, coletando dados ambientais. Também construiu, em parceria com a China, dois Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (CBERS – sigla formada a partir de China-Brazil Earth Resources Satellite), dos quais o segundo está em operação, fazendo imagens do território nacional. Em 2007 deverá ser lançado o CBERS-2B e há previsão para a construção dos CBERS 3 e 4, que terão inovações – entre elas, câmeras de mais alta resolução.
O Brasil também domina a tecnologia de foguetes de sondagem, menores que o VLS-1 e utilizados para missões suborbitais, capazes de lançar cargas úteis de experimentos científicos, normalmente usadas em pesquisas meteorológicas. Isso foi possível graças ao desenvolvimento da família Sonda, iniciado em 1965. Um grande passo nessa área foi dado em 1974, com a construção do Sonda IV – com 1 metro de diâmetro e cerca de 8 toneladas, foi o primeiro desses foguetes a ser autopilotado. Ao todo, já ocorreram mais de 220 lançamentos de unidades da família Sonda.
A boa notícia é que a capacidade de produzir esses lançadores poderá trazer divisas para o Brasil. "Estamos negociando para este ano a venda de foguetes de sondagem VSB-30", revela Gaudenzi. A Agência Espacial Alemã se mostrou interessada em comprar da indústria nacional alguns exemplares desse modelo, o que abrirá um novo mercado para o país nessa área.
O programa espacial brasileiro também capacitou o país a participar da construção da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), o que, por sua vez, tornou possível a viagem ao espaço do primeiro astronauta brasileiro. O tenente-coronel-aviador Marcos César Pontes viajou até a ISS – que se encontra em órbita a 360 quilômetros da Terra – a bordo da nave russa Soyus TMA-8, em companhia do russo Pavel Vinogradov e do norte-americano Jeffrey Williams. A decolagem se deu no dia 30 de março, e o retorno, em 9 de abril.
Pontes realizou alguns experimentos científicos no ambiente de microgravidade da estação espacial, mas o maior benefício se deu em outro campo, o da propaganda. "O principal resultado certamente foi o incentivo à ciência e à tecnologia brasileiras, pois sua viagem trouxe ampla divulgação do programa espacial brasileiro, que é uma atividade de ponta", diz o presidente da AEB. Ele espera que tenha servido também para atrair jovens para carreiras de pesquisadores e de técnicos.
Resultados concretos
Depois de um período em que, devido à falta de recursos, tornou-se incerta a continuidade da participação do país na construção da estação espacial, a AEB e a Nasa retomaram, no dia 28 de julho, as negociações sobre o fornecimento de equipamentos brasileiros à ISS. Durante uma teleconferência, foi apresentada uma proposta de cooperação que simplifica os itens sob responsabilidade do Brasil. Em vez de peças completas, serão produzidas partes passíveis de ser 100% contratadas de empresas brasileiras, uma vez que a indústria nacional já está capacitada a fazer tais tipos de componentes.
Os termos e detalhes da cooperação serão oficializados em uma reunião na Nasa, em Houston, nos Estados Unidos, em data ainda a ser definida, na qual ocorrerá a assinatura de um protocolo. Com sua permanência no projeto, o Brasil poderá realizar novas pesquisas em microgravidade na ISS.
Passados três anos do acidente com o VLS-1, o país parece ter recuperado o alento e está inclusive ampliando seu projeto de desenvolvimento de veículos lançadores, que, no entanto, passou por uma revisão crítica completa. "Agora, há maior rigidez no que se refere aos quesitos de segurança, o que nos obrigou também a rever o cronograma", explica o coronel-aviador Wander Almodovar Golfetto, diretor do IAE.
Em 24 de outubro de 2005, foi lançado o Programa de Veículos Lançadores de Satélites Cruzeiro do Sul. "É um plano de médio e longo prazo que se estende até 2022 e prevê o desenvolvimento de cinco novos modelos", explica Golfetto. Denominados Alfa, Beta, Gama, Delta e Épsilon (nomes das estrelas principais da constelação do Cruzeiro do Sul), eles terão capacidade de transportar satélites de pequeno e de grande porte para as mais diversas órbitas terrestres.
Segundo Golfetto, já foram iniciados estudos para o desenvolvimento do sucessor do VLS-1. Trata-se do VLS Alfa, primeiro veículo da família Cruzeiro do Sul. Esse foguete será constituído pelo primeiro e pelo segundo estágios do VLS-1 e por um terceiro movido a combustível líquido, que substituirá o terceiro e o quarto estágios a propelente sólido de seu antecessor. Com essa alteração, sua capacidade de transporte será dobrada.
Nova tecnologia
O maior investimento a ser feito no desenvolvimento do novo foguete é, assim, na tecnologia de um motor a propelente líquido. "Para isso, precisamos ainda instalar laboratórios, banco de provas e promover treinamento de recursos humanos", explica Golfetto. Se considerarmos, no entanto, que o VLS Alfa aproveitará dois estágios do VLS-1, assim como a tecnologia e a infra-estrutura já desenvolvidas, os investimentos ficarão em torno de R$ 140 milhões, ao longo de quatro anos, incluído nesse valor o custo de dois protótipos de qualificação.
Para que esse foguete saia do chão, no entanto, será necessário reconstruir a torre móvel e a plataforma de lançamento do CLA, destruídas no acidente de 2003. A obra está emperrada devido a problemas no processo licitatório. "Das duas empresas participantes, a segunda colocada entrou com uma ação na Justiça, questionando alguns pontos da licitação", explica Gaudenzi. Só quando sair a sentença o IAE poderá dar seqüência ao projeto. Se tudo correr bem, um novo lançamento está previsto para 2008.
Há planos ainda de ampliação do CLA, para torná-lo um centro comercial de lançamento de satélites, e o primeiro passo para tanto já foi dado. Brasil e Ucrânia assinaram um acordo de cooperação técnico-econômica, que prevê a utilização do foguete ucraniano Cyclone-4 e de uma plataforma de lançamento do CLA. Para isso, os dois países vão criar uma empresa binacional nos moldes da hidrelétrica Itaipu – a Alcântara Cyclone Space (ACS) –, que, segundo seus estatutos, será vinculada à AEB e à NSAU, a agência espacial da Ucrânia.
Com sede em Brasília, a ACS irá oferecer seus serviços ao mercado nacional e internacional. Como Alcântara fica bem perto da linha do Equador, os lançamentos feitos de lá exigem menos energia e por isso são mais baratos. Brasil e Ucrânia tirarão proveito dessa vantagem para garantir uma boa fatia no promissor mercado espacial – calcula-se que possa chegar a U$ 10 bilhões nos próximos anos.
Apesar dessas perspectivas, para parte da sociedade brasileira o país faria melhor se usasse os recursos destinados às pesquisas espaciais para sanar carências mais urgentes nas áreas da saúde e da educação, por exemplo. O ex-reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Carlos Henrique Brito Cruz, que participou da comissão que investigou o acidente de 2003, diz que não é bem assim. "O Brasil tem de se conhecer para poder traçar suas políticas e estratégias de desenvolvimento", explica. "Para isso, precisa ter capacidade de construir e lançar satélites, com a finalidade de mapear seu território e seus recursos naturais. Essas são tecnologias que nenhum país repassa, é necessário aprender a fazer sozinho."
Satélites e foguetes não são, no entanto, os únicos resultados concretos de um programa espacial. Por serem de ponta, essas pesquisas dão origem a uma infinidade de tecnologias e produtos. Entre os exemplos mais conhecidos estão o teflon, o velcro, o forno de microondas, as brocas especiais de dentista, criados pelo programa espacial norte-americano e hoje de uso comum. Os subprodutos são inúmeros e incluem ainda os chips para computadores, baterias solares para relógios e calculadoras, além de materiais compostos ultraleves e revestimentos cerâmicos resistentes a altíssimas temperaturas e à abrasão, empregados em aviões e nos carros modernos.
Crias do programa
Entre os resultados das pesquisas espaciais brasileiras está um aço ultra-resistente, empregado no trem de pouso do Boeing 747. "O Brasil é o único país, além dos Estados Unidos, que fornece esse tipo de aço para a Boeing", diz o brigadeiro Piva, que cita ainda outro exemplo. Para fazer o tubo do primeiro foguete desenvolvido pelo CTA, que não tinha mais do que 50 centímetros de comprimento, foi preciso construir uma máquina especial, que depois passou a ser usada para produzir tuchos de válvulas dos motores de automóveis, que eram importados. Só isso gerou uma economia de US$ 1 milhão por mês ao país.
Todos os produtos resultantes de pesquisas espaciais são de alta tecnologia. Segundo cálculos da Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (Aiab), o valor agregado por quilograma do produto final é de R$ 0,30 para o setor agrícola, R$ 10 para automóveis, R$ 100 para eletrônicos, R$ 1.000 para aviões e R$ 50.000 para satélites. "Quanto maior o nível de tecnologia de um produto, mais valioso ele será", explica o engenheiro Walter Bartels, presidente da Aiab. "A importação de 1 quilo de um míssil inteligente, por exemplo, equivale à exportação de 100 mil quilos de minério de ferro."
Outros benefícios, mais diretos, tampouco podem ser esquecidos. "Com sua extensão, o Brasil não pode ficar sem satélites de comunicação ou de observação do solo (sensoriamento remoto), se deseja saber o que existe em seu território", diz Piva. "Como eles podem ‘ver’ lugares inacessíveis, são de grande valia para prospectar minerais, ajudar a agricultura a fazer previsões de colheita e do clima, observar as florestas e monitorar a poluição dos rios e do oceano", acrescenta. Por isso, afirma, o Brasil não pode pôr informações tão importantes como essas nas mãos de países estrangeiros. Precisa saber por conta própria.
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