Postado em 05/07/2005
Centro da cidade de São Paulo luta para apagar imagem de abandono e decadência
ANDRÉ CAMPOS e CARLOS JULIANO BARROS
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Dois milhões de pessoas transitam diariamente pelo centro de São Paulo, onde se localiza expressiva parte da memória e do patrimônio histórico da maior cidade da América do Sul. Apesar de ainda concentrar um elevado número de empregos, contar com uma farta rede de transporte coletivo e possuir uma moderna infra-estrutura, a região já não representa o coração financeiro da capital do estado mais rico do Brasil. Se no passado o centro foi endereço dos negócios e do glamour paulistano, hoje enfrenta o estigma do abandono e da violência.
A requalificação dessa área tão importante para o município é uma missão que mobiliza o governo, nas esferas federal, estadual e, principalmente, municipal. Reverter o esvaziamento populacional ocorrido nas últimas décadas, atrair investimentos para dar mais oxigênio à economia da região e combater a degradação de espaços públicos e imóveis particulares são alguns dos principais desafios a ser superados.
Da lanchonete Pitchula, na esquina da Rua dos Gusmões com a Couto de Magalhães, no bairro da Luz, pode-se observar a área que o inconsciente coletivo dos paulistanos considera o principal reduto do tráfico de drogas e de atividades ilícitas no centro de São Paulo: a Cracolândia. Mas o dono desse restaurante de nome popular – nas redondezas da refinada Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado – não partilha dessa opinião. Em dez anos de funcionamento, seu bar foi assaltado apenas uma vez, e "por bobeira", ressalva. Ele garante que a relação com os usuários da droga que batizou aquela região é bastante tranqüila. Também se diz cansado de ouvir idéias para recuperar as imediações.
O terreno da lanchonete situa-se numa área que o governo municipal pretende em breve desapropriar com o objetivo de colocar em andamento uma das mais alardeadas e polêmicas empreitadas de requalificação do centro formuladas nos últimos anos: o Projeto Nova Luz (ver texto abaixo). A idéia é transformar o bairro e o entorno da Rua Santa Ifigênia num pólo do chamado setor terciário avançado, destinado a abrigar instituições de ensino, agências de publicidade e shopping centers. "O projeto tem como intuito atrair investimentos para gerar empregos", define o prefeito Gilberto Kassab. Essa é a grande aposta da gestão iniciada por José Serra para varrer a Cracolândia do mapa. No papel, o primeiro passo é derrubar o quarteirão em que se encontra a Pitchula, que cederá espaço às novas sedes da subprefeitura da Sé e da Companhia de Processamento de Dados do Município (Prodam).
O Nova Luz é o capítulo mais recente da longa história de tentativas de recuperação do centro da maior metrópole brasileira, missão que desafia governantes há pelo menos 30 anos. Para entender o processo de degradação da região, é preciso viajar à década de 1940, quando a elite paulistana atravessou o vale do Anhangabaú e fez morada nas cercanias das praças Ramos de Azevedo e República, deixando para trás o "triângulo histórico" formado pelas ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento. Época de vida cultural agitada: dos quase 150 cinemas que havia na região até a metade do século passado, hoje sobrevivem pouco mais de uma dezena, que dependem de filmes pornográficos para não fechar as portas.
Nos anos 1960, o ritmo de expansão da cidade se acentuou e, acompanhando o setor imobiliário, que passou a atender a demanda dos consumidores de alta renda por habitações mais modernas, bancos e empresas subiram a Rua da Consolação e aportaram na Avenida Paulista. Esse deslocamento em direção ao quadrante sudoeste da cidade seguiu firme e forte nas décadas seguintes, passando pela Avenida Faria Lima e, nos últimos tempos, chegou à Marginal Pinheiros e à Avenida Luiz Carlos Berrini. Porém, mesmo com a mudança das elites para bairros afastados do centro, a infra-estrutura lá existente ainda alimenta a especulação imobiliária e mantém o metro quadrado da região como um dos mais caros da cidade. "Quem quer morar não pode pagar. E quem pode pagar não quer morar", resume Nabil Bonduki, ex-vereador e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
"O centro foi, então, ocupado por uma série de atividades populares e redes informais, de camelôs a cooperativas de catadores de material reciclável. Há também movimentos sociais que lutam pelo direito à habitação, organizações que trabalham a questão do gênero com prostitutas. O maior problema da região é a forma como o poder público tem lidado com essa multiplicidade de facetas", afirma a urbanista Beatriz Kara, do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAU-USP.
As políticas de recuperação do centro postas em prática nos últimos anos se concentram principalmente em dez distritos – Bela Vista, Bom Retiro, Brás, Cambuci, Consolação, Liberdade, Pari, República, Santa Cecília e Sé. São áreas de "reestruturação e requalificação", segundo o Plano Diretor Estratégico (PDE), lei aprovada pela Câmara Municipal em 2002 para regular o uso dos espaços físicos da capital. Lá moram atualmente apenas 4% da população do município, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somente entre 1992 e 2000, a região perdeu 23% dos seus empregos, e em distritos como Sé e República, símbolos por excelência de São Paulo, a taxa de desocupação dos imóveis chega a 18%.
"O centro precisa ser pensado de maneira ampla. Não se deve privilegiar uma área pequena, como prevê o Projeto Nova Luz, por exemplo, por mais relevante que seja", afirma Bonduki. O que é preciso fazer, então? O próprio PDE, do qual o ex-vereador foi relator, fornece as indicações para modificar esse cenário: repovoar a região, dinamizar os setores de comércio e serviços, além de reorganizar o sistema de transporte coletivo e conservar o patrimônio histórico.
Ambulantes e empresários
Desde a gestão de Marta Suplicy, verifica-se um esforço por parte do governo municipal para mudar o perfil econômico do centro de São Paulo. "Uma das iniciativas foi transformá-lo em sede do poder público, com a mudança para lá da prefeitura e da maioria das secretarias municipais, o que levou para a região 11 mil funcionários. O governo do estado também transferiu suas secretarias, e isso aumentou a demanda por serviços e atividades", explica Nadia Somekh, responsável pela coordenação do programa Ação Centro (ver texto abaixo) na gestão anterior.
Todavia, é fato que a identificação do centro ainda é mais forte com o comércio popular e informal. Atualmente, na área da subprefeitura da Sé, há mais de 1,2 mil ambulantes com licença para trabalhar nas vias públicas. É impossível apontar com precisão o número de pessoas que vendem seus produtos sem permissão, mas elas podem passar do dobro das legalizadas. Para Amilca Irineu, presidente da Associação dos Trabalhadores Ambulantes de São Paulo (Atasp), parte da solução para o problema seria a construção de espaços específicos para a categoria. Há cerca de dois anos, ele comanda o Pop Centro da Rua Senador Queirós, próximo à Rua 25 de Março. O mini-shopping, que gera 1,3 mil empregos diretos, fica instalado em um prédio onde no passado já funcionou o pregão da Bolsa Cerealista da cidade, mas que se encontrava abandonado. "A prefeitura nunca contribuiu com nada. Tivemos de pagar até pelo alvará de funcionamento", afirma Irineu. Há ainda outras três experiências semelhantes espalhadas pelo centro de São Paulo.
A questão do comércio de ambulantes remete a outro assunto controverso: a abertura de calçadões para o tráfego de automóveis. Idealizados em meados dos anos 1970 pelo então prefeito Olavo Setúbal, os calçadões tinham o objetivo de privilegiar o trânsito dos pedestres e estimular o uso do transporte coletivo na região central. Hoje, são cerca de 7 quilômetros de vias, que perfazem 60 mil metros quadrados. Com o passar do tempo, eles foram ocupados por atividades informais, e há quem enxergue na proposta de abertura uma forma rápida de expulsar os camelôs. "Asfaltaram um pedaço do calçadão da Rua 24 de Maio para tirar os ambulantes de lá. Eles saíram e foram para a Rua Barão de Itapetininga", critica Nadia Somekh. "Essas áreas teoricamente são de pedestres, mas na prática ali também circula uma enorme quantidade de veículos, de forma caótica. Assim, em vez de se facilitar, criam-se dificuldades para os pedestres, e aí as empresas se mudam daqui", analisa Marco Antonio de Almeida, superintendente-geral da Associação Viva o Centro (AVC), que congrega grandes grupos interessados na requalificação da área.
Segundo a AVC, a dificuldade de acesso por carros é um dos motivos que afugentam os grandes investidores da região. "Os principais centros metropolitanos possuem um sistema de garagens subterrâneas. Em São Paulo, proibiu-se a construção delas na década de 1970, o que dificultou a permanência de empresas que dependem do automóvel", explica Almeida. Para tentar amenizar o problema, a prefeitura vai autorizar a instalação de pelo menos cinco estacionamentos pela iniciativa privada. Ao menos três desses empreendimentos já tiveram licitação aberta: na Avenida São João, na Praça João Mendes e na Praça Dom José Gaspar.
Encontrar uma saída para o comércio informal e resolver os entraves à circulação de carros no centro parece tarefa bem mais simples, no entanto, do que atrair a atenção de grandes empresas e, assim, alterar efetivamente o perfil econômico da região. "O centro possui a melhor infra-estrutura da cidade: água, luz, telefone, energia elétrica reticulada, fibra ótica, metrô, equipamentos culturais", avalia Almeida. Mas, ao que tudo indica, nem mesmo a concessão de benefícios fiscais, nos moldes previstos pelo Projeto Nova Luz, parece ser capaz de reverter o fenômeno do desinteresse pelo centro. O elevado preço dos imóveis, que se mantêm supervalorizados mesmo com condições estruturais precárias, e até mesmo o fantasma da violência são alguns dos motivos dessa situação, segundo Topázio Silveira Neto, presidente da Associação Brasileira de Telesserviços (ABT). A entidade vem há algum tempo participando de reuniões com representantes da prefeitura para discutir o Nova Luz. De acordo com ele, das dez firmas inicialmente interessadas, apenas duas ou três ainda cogitam a hipótese de levar seus escritórios para a região. "Além disso, os incentivos fiscais oferecidos são insuficientes para motivar a transferência de uma empresa. Importante seria que eles fossem válidos a partir da aprovação do projeto pela prefeitura, permitindo a redução de impostos durante o período de transição", argumenta.
Outra entidade convidada pela prefeitura a debater o Nova Luz foi o Secovi, sindicato que reúne as principais incorporadoras da construção civil. Segundo Eduardo Della Manna, diretor da instituição, existem vários obstáculos que levam o setor imobiliário a ver com cautela o investimento nos bairros da região central, e não só no perímetro da Cracolândia. Além do alto preço dos terrenos, a morosidade dos órgãos competentes para a aprovação de novos projetos, que precisam ser avaliados a fim de não comprometer a integridade do patrimônio histórico tombado, é um empecilho considerável. "Já falamos várias vezes as mesmas coisas, e até agora não tivemos as questões devidamente respondidas", revela. No caso específico do Projeto Nova Luz, por exemplo, há ainda um temor de natureza política. "Por que colocar dinheiro lá e correr o risco de uma próxima gestão não ter a região da Luz como prioridade? O setor imobiliário, por trabalhar no longo prazo, precisa de segurança jurídica", completa.
Habitar é preciso
Contrariando a tendência da cidade, o centro de São Paulo passou por um brutal esvaziamento nas últimas décadas. Somente entre 1980 e 2000 – quando a população do município pulou de 8,5 para 10,4 milhões – os dez distritos que o compõem perderam 30% de seus habitantes. Conseqüência da saída do capital e da perda de qualidade de vida, a falta de moradores restringe as possibilidades econômicas da região, principalmente fora do horário comercial. Além disso, o centro ainda convive com o estigma de ser uma área desértica e perigosa à noite – apesar dos indícios de uma incipiente retomada de sua vida noturna, em bares no entorno do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), próximo à Praça da Sé, e no célebre cruzamento da Avenida Ipiranga com a Avenida São João.
Nesse contexto, a necessidade de repovoar o centro é tida como consenso nos debates sobre requalificação, e o retorno da classe média tornou-se uma intenção invariavelmente presente nos planos que são anunciados pelos governantes. "A demanda para isso existe, porém não há oferta compatível", revela Della Manna, que defende mudanças legais para viabilizar reformas nos edifícios desocupados. Segundo ele, devido ao perfil antigo dos imóveis, nem sempre há possibilidade de fazer as alterações de acordo com as exigências previstas no Código de Obras do Município – legislação dos anos 1990 e que não contempla as particularidades de prédios mais velhos, como os da região central. "O setor propôs, ainda no ano passado, a criação de dispositivos legais para resolver isso", diz ele.
A idéia de atrair a classe média tomou corpo com o governo Serra/Kassab. Prova disso é que no início deste ano o secretário municipal de Habitação, Orlando de Almeida Filho, levantou a possibilidade de transformar o Edifício São Vito, localizado ao lado do Mercado Municipal, em moradia para famílias que ganham de seis a dez salários mínimos. Até 2004, quando foi desocupado pela prefeitura, o prédio era uma gigantesca favela vertical em que viviam cerca de 3 mil pessoas. A gestão anterior anunciava a intenção de fazer 375 apartamentos onde antes havia 600 quitinetes, refinanciando parte deles aos antigos ocupantes – em sua ampla maioria de baixa renda. Contudo, ainda não há nenhuma definição quanto ao destino da edificação.
Um dos principais símbolos da degradação do centro de São Paulo, o São Vito traz à tona outro lado da questão habitacional na região. Apesar do esvaziamento, ela abriga uma ampla gama de pessoas em condições de alta vulnerabilidade social, como moradores de cortiço e pessoas em situação de rua. Grupos que, não raro, se dizem à margem dos projetos de revitalização que, em nome da requalificação urbana, tendem a expulsar a população pobre da área.
Muito além dos debates sobre o futuro do centro, o incentivo à habitação social na região integra hoje as discussões sobre o planejamento global de uma cidade que cresce nas periferias e esvazia-se em áreas onde há toda a infra-estrutura instalada. Trata-se de um fenômeno que gera prejuízos múltiplos: ao meio ambiente, com ocupação de áreas de mananciais; ao poder público, demandado para transformar favelas em bairros; e à população pobre, confinada a habitações precárias e obrigada a percorrer as enormes distâncias que separam casa e trabalho.
A necessidade de reverter esse processo é prevista inclusive pelo Plano Diretor Estratégico do município, que delimita diversas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) na região central da cidade – áreas com terrenos ou imóveis subutilizados que devem ser destinadas prioritariamente à moradia popular. Entre outras regulamentações, 50% da área construída ou reformada por empreendimentos imobiliários dentro do perímetro dessas Zeis deve se destinar a habitações para famílias com renda de até seis salários mínimos. No entanto, para Della Manna, um decreto da prefeitura que limita a venda dessas unidades ao valor de R$ 44 mil inviabilizou projetos do gênero. "A esse preço, ninguém está conseguindo construir", afirma. "Se quiserem que o mercado imobiliário produza, é preciso mudar isso", assegura.
Na gestão Serra/Kassab, houve um aumento significativo da tensão entre a prefeitura e os diversos movimentos sociais que militam por moradia popular no centro. Entre os motivos estão incertezas relacionadas à continuidade de políticas habitacionais integradas ao Ação Centro postas em prática pela gestão anterior, assim como a intensificação das reintegrações de posse em prédios ocupados por grupos de sem-teto (ver texto abaixo).
A situação do Programa Bolsa Aluguel é exemplar. Criado em 2004 para subsidiar o aluguel de pessoas em áreas de intervenção, como o próprio Edifício São Vito, o programa não foi ampliado na atual gestão, e o pagamento das bolsas chegou a sofrer atrasos no início deste ano. Acionada na Justiça, a prefeitura foi obrigada a cumprir todos os acordos firmados com os cadastrados. A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) informou que as mais de 1,3 mil famílias beneficiadas continuarão a ser atendidas até o final dos seus contratos. Após isso, é bem possível que o programa seja suspenso.
O Bolsa Aluguel era um dos programas contemplados com dinheiro do BID na gestão anterior, que previa a aplicação de 15% dos recursos do convênio – US$ 25,9 milhões – para habitação social no centro. Há ainda outros, como o Locação Social, o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) e o Programa de Intervenção em Cortiços, que visam à criação de moradias populares nos distritos centrais e à melhoria das habitações precárias na região. A Sehab informa que os três programas continuam em funcionamento. Segundo o órgão, há 145 apartamentos para idosos em vias de ser entregues no bairro do Pari, além de iniciativas para regularização de cortiços nos bairros da Luz, Brás e Glicério.
Cultura e desenvolvimento
O centro é, de longe, a região com maior concentração de equipamentos de cultura de São Paulo. De acordo com dados do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), lá estão 35% das bibliotecas, 45% dos centros culturais, metade dos teatros e a maior parte do patrimônio tombado do município. Um considerável estoque de espaços de lazer e entretenimento que às vezes se encontram em áreas bastante degradadas e são encarados como alavancas para a atração de pessoas e outros segmentos econômicos que viabilizem a revalorização imobiliária dessas regiões.
Essa concepção foi encampada pela atual prefeitura, que investe em projetos como a restauração da Biblioteca Mário de Andrade e a criação de um pólo cultural na Vila Itororó, na Bela Vista (ver texto abaixo), para dar fôlego à requalificação do centro. "Finalmente as instâncias de planejamento estão compreendendo que, ao incorporar os elementos culturais, seus programas são mais bem-sucedidos", afirma Carlos Augusto Calil, secretário municipal de Cultura. Antonio Zagatto, assessor da subprefeitura da Sé, acredita inclusive que o centro tem potencial para ser uma espécie de "sala de visitas" da cidade. "Lá há um alto volume de investimentos feitos ao longo da história, que podem servir para desenvolver o turismo em São Paulo."
Na esteira dessas idéias, o bairro da Luz é desde 2002 objeto de um programa do governo federal que destina verbas à recuperação do patrimônio histórico em diversas regiões do país. Trata-se do Monumenta, cujos recursos possibilitaram, em abril deste ano, a reforma de um coreto e de um ponto de bondes localizados no Jardim da Luz – antigo reduto da elite paulistana, hoje às portas da Cracolândia. "Quando imóveis de interesse histórico são restaurados, existe um natural interesse do mercado imobiliário em voltar seus olhos para o local", justifica Regina Ponte, do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) do município, órgão responsável pela execução dos projetos. Como contrapartida, prefeitura e governo do estado entram com 15% cada um no valor total gasto nas obras.
Os R$ 9,7 milhões destinados hoje pelo Monumenta a ações na região da Luz correspondem a metade do orçamento previsto inicialmente. O corte no valor original ocorreu em 2005, devido à demora na implementação de projetos. Segundo a coordenação nacional, a capital paulista é a cidade que vem realizando a pior execução do programa. A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) tenta, atualmente, negociar a revisão desse corte.
Limpeza ou higienização?
Em setembro do ano passado, a prefeitura iniciou uma obra polêmica: a construção de uma rampa no vão do túnel que liga a Avenida Paulista à Avenida Doutor Arnaldo. O objetivo era impedir, por motivos de segurança, a presença de pessoas naquela área – muitos assaltos estariam acontecendo nos arredores. O fato de dezenas de moradores de rua viverem no local motivou protestos de diversas entidades da sociedade civil. E inspirou o apelido de "rampa antimendigo", hoje associado ao empreendimento.
Para o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua, esse é apenas mais um capítulo de uma história recorrente na cidade, em que é comum confundir revitalização urbana com higienização social. "As reformas em praças, por exemplo, são historicamente voltadas para a expulsão dos moradores de rua, através de práticas como instalação de bancos ondulados para que as pessoas não durmam neles", diz.
Para Lancellotti, um dos principais problemas relacionados às políticas voltadas para essa população é o fato de o poder público normalmente agir como se o albergue fosse a única resposta para uma clientela bastante heterogênea – de portadores de transtornos mentais em situação de rua, passando por desempregados sem condições de manter suas casas, a vítimas de enchentes e incêndios que não têm para onde ir. "É necessário pensar em alternativas de trabalho e habitação", diz.
Esse objetivo é encampado pelo Moradias Provisórias, outro programa incluído no Ação Centro e que também passa por revisão. São espécies de "repúblicas" onde moram 400 pessoas com alguma renda, mas ainda sem condições de pagar aluguel. "Acontece que essas moradias estão se tornando definitivas, o que é muito complicado", diz Floriano Pesaro, titular da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads). O limite para permanecer no programa é de um ano, mas muitos se recusam a sair depois de terminado o período.
Outra iniciativa nessa área foi a aprovação, em maio deste ano, de um projeto de lei do vereador Paulo Teixeira (PT-SP) que obriga a contratação de, no mínimo, 2% de pessoas em situação de rua – para serviços como corte de grama e coleta de lixo – pelas empresas vencedoras de licitações públicas no município. O projeto aguarda agora sanção do prefeito.
Segundo a prefeitura, 12 mil pessoas vivem hoje nas vias públicas de São Paulo. No centro está a maioria delas, devido a fatores que vão desde a maior concentração de equipamentos de assistência social à grande quantidade de material reciclável existente na região. Boa parte dos que moram nas ruas trabalham como catadores, atividade que tem futuro indefinido desde que foi anunciada, no ano passado, a intenção da prefeitura de promover mudanças no sistema de coleta de lixo. De acordo com Pesaro, a idéia é que os catadores possam se dedicar mais à reciclagem – em centrais espalhadas pela cidade – e menos à coleta. "Atualmente, a maior parcela do dinheiro fica com intermediários. É uma exploração", diz.
Há, no entanto, ressalvas e incertezas relacionadas às propostas da prefeitura. Segundo Guiomar dos Santos, do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), uma das idéias apresentadas foi levar os trabalhadores do centro para um complexo de reciclagem na Vila Maria. "Não concordamos. Muitos moram na área central e transferi-los para a periferia não é solução."
A situação é complicada, mas ao menos existem recursos para tentar resolvê-la. A prefeitura dispõe hoje de aproximadamente 15 milhões de euros – provenientes do convênio BID-Ação Centro e de outro acordo estabelecido com a União Européia – para projetos de inclusão social no centro da cidade. Entre as prioridades, diz Pesaro, está a reformulação da rede de albergues, com o objetivo de torná-los menores e mais humanizados, e o aumento do número de agentes de proteção social.
Propostas para o centro
Garagens subterrâneas – A fim de ampliar a oferta de vagas em estacionamentos no centro, a prefeitura abriu licitação para a construção de três garagens subterrâneas. Bancadas por investidores privados, elas vão se localizar na Avenida São João e nas praças Dom José Gaspar e João Mendes.
Shoppings populares – O Pop Centro, na Avenida Senador Queirós, é um dos três shoppings populares existentes hoje na região central. A criação de novos bolsões do gênero é apontada como alternativa para retirar os ambulantes das ruas.
Programa Monumenta – Em maio deste ano, foi entregue à população a reforma de um coreto e de um ponto de bondes localizados no Jardim da Luz. As obras vinculadas a esse projeto pretendem revalorizar a região através de investimentos em seu patrimônio histórico.
Praça das Artes – A cultura é a aposta para recuperar a chamada Quadra 27. Tanto é que a prefeitura declarou de utilidade pública esse perímetro, onde sonha ver, no lugar de prédios deteriorados, as sedes da Escola Municipal de Música e do Balé da Cidade. A área também pode abrigar um anexo para o Teatro Municipal.
Calçadões – Os calçadões estão sendo revistos pela prefeitura. A idéia é acabar com pelo menos cinco deles para facilitar o trânsito de automóveis na região. O primeiro passo foi dado em janeiro deste ano, com a abertura de parte do calçadão da Rua 24 de Maio.
Nova Luz – Principal vitrine da gestão de Gilberto Kassab para o centro, o Projeto Nova Luz concederá benefícios fiscais a empresários dispostos a se transferir para a região. Também gerou polêmica por prever a demolição de quadras na Cracolândia para a construção do novo prédio da subprefeitura da Sé.
Opinião profissional
A reportagem de Problemas Brasileiros ouviu a opinião de dois renomados arquitetos, Fábio Penteado e Pedro Paulo Saraiva, acerca da atual situação do centro de São Paulo.
Fábio Penteado: O problema do centro é ter sido abandonado pelo poder público. Agora, quando tudo foi jogado fora, fica muito difícil retomar. Para recuperá-lo, seria necessário muito mais verba do que os US$ 100 milhões disponibilizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). É preciso restabelecer uma relação das pessoas com aquela região, fazer com que tenham vontade de ir até lá. No entanto, cada vez que se inaugura um shopping center, desloca-se para mais longe uma atividade que antes era comum, de viver, trabalhar e encontrar-se no centro. Hoje as pessoas já crescem vivendo em outro mundo, não têm mais noção de rua, de espaço público. Resgatar esse sentimento seria muito importante.
Pedro Paulo Saraiva: A cidade tem muitos problemas, que estão longe de ser equacionados. O centro, entretanto, é o reflexo mais alarmante, a ponta desse iceberg gigantesco que reflete os enormes abismos existentes em nossa sociedade. O retorno dos órgãos governamentais para aquela região é essencial, até como gesto político das elites, que abandonaram as áreas históricas da cidade, adotando redutos segregados de aparente segurança e de gosto duvidoso. A cidade histórica – sem dúvida de melhor qualidade arquitetônica – foi deixada como "lixo urbano" aos excluídos sociais, que "tomaram conta" de várias áreas centrais. Além disso, as políticas de transporte têm equivocadamente transformado o centro em local de passagem, levando à formação de toda sorte de comércio informal, fazendo de vias e praças públicas espaços extremamente deteriorados, seja pelo uso excessivo, seja pela falta de planejamento paisagístico e visual.
Proponho o retorno do palácio do governo do Morumbi para os Campos Elíseos, bem como de todos os órgãos estatais e secretarias, e a desativação dos diversos terminais de ônibus do centro.
Por uma nova Luz
Quando o assunto é requalificação do centro de São Paulo, o Projeto Nova Luz pode ser considerado a menina dos olhos do governo municipal. Desde março do ano passado, a prefeitura vem fazendo batidas na região da Cracolândia, numa verdadeira cruzada contra as drogas e a prostituição. "A primeira fase foi tirar o crime organizado de lá, melhorar a infra-estrutura, a limpeza pública e a iluminação, o que precisa continuar a ser feito", explica Andrea Matarazzo, subprefeito da Sé, que comanda o projeto.
O passo seguinte foi a aprovação de uma lei de incentivo, regulamentada em fevereiro deste ano, pela qual se delimitaram 23 quadras onde empresários terão uma série de benefícios fiscais para desenvolver suas atividades. Essa área também compreende um perímetro menor, considerado de utilidade pública, que poderá ser desapropriado e ter suas construções eventualmente demolidas, caso desperte o interesse de investidores privados.
Apesar do entusiasmo da prefeitura, críticas não faltam ao Projeto Nova Luz. "Não há nenhuma preocupação com as pessoas que lá vivem", alfineta Francisco Comaru, urbanista do Instituto Pólis. "Estão chamando de centro um pedacinho da cidade. Isso é gravíssimo. Além disso, as empresas não necessitam de subsídios. Quem precisa é a população pobre, que está sendo expulsa da área central", completa Nadia Somekh, presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb) durante a gestão de Marta Suplicy.
Benefícios fiscais do Projeto Nova Luz
• Redução de 50% do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto de Transmissão Inter-Vivos (ITBI-IV) para empresas que transferirem suas atividades para o perímetro do Projeto Nova Luz.
• Abatimento de até 60% do Imposto sobre Serviços (ISS) para construção ou reforma de imóveis na área contemplada.
• Possibilidade de converter até 80% do investimento em Certificados de Incentivo ao Desenvolvimento (CIDs), que poderão ser utilizados no pagamento do IPTU e do ISS e na compra de créditos de bilhete único para funcionários.
Ações e reações
A história recente dos projetos de requalificação do centro de São Paulo ganhou fôlego no apagar das luzes do mandato de Celso Pitta, quando o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) concedeu um empréstimo de US$ 100 milhões para um programa de recuperação dessa área. Na gestão de Marta Suplicy, mais US$ 68 milhões foram somados ao montante liberado pelo BID como contrapartida do governo municipal, que criou o Ação Centro – um conjunto de 130 propostas para modificar o perfil econômico e social da região.
O programa tem prioridades como reverter a desvalorização imobiliária, recuperar a função residencial, além de elencar iniciativas de inclusão social e ações para melhorar segurança e iluminação. Quando foi concebido, apresentava metas ambiciosas, como repensar o sistema de circulação da cidade, de forma que 700 mil pessoas não precisassem passar pelo centro apenas para fazer conexão de meios de transporte.
No entanto, desde o início do mandato de José Serra, o Ação Centro passa por uma revisão. "As 130 ações eram pouco integradas. Não paralisamos os projetos, até porque eles não chegaram a ser projetos de fato, estavam em fase embrionária", explica Antonio José Zagatto, assessor da subprefeitura da Sé. Algumas obras de envergadura, porém, foram realmente suspensas. A construção de um piscinão no vale do Anhangabaú, por exemplo, foi abortada por recomendação da Secretaria Municipal de Infra-Estrutura Urbana e Obras (Siurb). "O custo era enorme e o benefício, reduzido", justifica Zagatto.
Um fato preocupante, na opinião de Francisco Comaru, do Instituto Pólis, é a falta de interlocução da prefeitura com a sociedade civil a respeito da requalificação do centro. Prova disso foi a desativação de um fórum criado na gestão passada em que diversas entidades debatiam propostas para a região. "Hoje, não existe discussão alguma sobre o Projeto Nova Luz, por exemplo. Éramos críticos à estrutura do conselho existente, mas pelo menos havia um canal de diálogo", explica. O representante da subprefeitura da Sé diz que, para que o fórum seja reativado, é preciso um decreto do prefeito que nomeie as entidades que farão parte dele. "É uma idéia interessante, mas não fundamental, porque o órgão acaba adquirindo uma conotação política", afirma Zagatto.
Favela vertical
São centenas de apartamentos improvisados, feitos com divisórias de pedaços de madeira. Os banheiros são coletivos – um por andar – e os corredores, escuros devido à iluminação deficiente. Para alcançar os andares superiores, somente pela escada. Os elevadores do prédio não funcionam.
Assim é o Edifício Prestes Maia, no bairro da Luz, a maior ocupação vertical do país. Lá vivem 468 famílias, segundo o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), entidade que ocupou o prédio em dezembro de 2002. O imóvel, que ficou vazio por mais de dez anos, possui dívida milionária de IPTU e tem sua desapropriação reivindicada pelo MSTC para a construção de moradias populares – algo que a Secretaria Municipal de Habitação afirma ser inviável devido ao alto custo da iniciativa.
Obedecendo a uma ordem judicial, a Polícia Militar chegou a dar prazo de 21 dias, em janeiro deste ano, para que as famílias deixassem o edifício. Horas antes da data final, a prefeitura conseguiu, a pedido de vereadores, que o despejo fosse adiado. O processo continua tramitando na Justiça.
Principal símbolo da atuação de movimentos sociais por moradia no centro da cidade, o Prestes Maia é também a última grande ocupação existente na região. Durante a gestão do prefeito José Serra, ocorreu uma significativa intensificação de reintegrações de posse em edifícios nos distritos centrais. "É lamentável. Hoje não existe diálogo com a Secretaria Municipal de Habitação", afirma Ivanete de Araújo, coordenadora do MSTC.
Essa falta de sintonia fica evidente nas próprias palavras do secretário da pasta, Orlando de Almeida Filho. Em artigo publicado no jornal "Diário de S. Paulo", ele afirma que no Edifício Prestes Maia vivem aproximadamente 1,1 mil indivíduos. E questiona: "Qual o objetivo de as ‘lideranças’ informarem sistematicamente à imprensa a presença de 468 famílias e 2 mil pessoas? Será que alguém irá usufruir ilicitamente do atendimento dos órgãos públicos quando da execução da ordem de reintegração de posse determinada judicialmente?"
Conflitos de interesse
Repleta de colunas gregas, esculturas e outros adornos, a Vila Itororó, no distrito da Bela Vista, é composta por 42 casas que formam um conjunto arquitetônico bastante original – e que, para muitos, beira o bizarro. Foi construída na década de 1920, pelo imigrante português Francisco de Castro, e também é conhecida como "vila surrealista".
O projeto de recuperação da área, anunciado pela prefeitura em janeiro deste ano, prevê a criação de um pólo cultural e de lazer no local, hoje ocupado por dezenas de cortiços. Segundo a Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó (AMA-Vila), a área abriga 70 famílias, das mais variadas condições econômicas.
A proposta, que pegou de surpresa os moradores, sintetiza grande parte dos conflitos de interesse que envolvem hoje projetos de intervenção urbana no centro. De um lado, a prefeitura espera, com a criação do pólo cultural, dar visibilidade e trazer investimentos para o entorno da área. Do outro, os moradores articulam formas de barrar o projeto, que prevê sua saída da Vila Itororó.
Fundada em abril deste ano, a AMA-Vila pretende elaborar uma proposta alternativa para o local, conciliando a criação de equipamentos públicos com a permanência das residências. De acordo com Antônia Souza Cândida, coordenadora da entidade, a prefeitura ofereceu aos moradores cartas de crédito de R$ 20 mil a R$ 40 mil. "Com esse dinheiro não dá para comprar imóvel nenhum na área da Bela Vista", afirma.
Para o secretário municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil – cuja pasta é responsável pelo projeto –, conflitos de natureza econômica e ideológica fazem parte de processos de intervenção urbana. "O que não podemos é ficar parados por causa disso, nem insensíveis aos argumentos que sejam levantados."