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Em pauta
Estou aposentado, e agora?

Postado em 01/02/1999

Aposentadoria é teoricamente, sinônimo de dever cumprido e descanso. Tempo Livre para viver mais atento aos prazeres. Porém a prática não limita a teoria. Há aqueles que são incapazes de se desligar dos afazeres, outros que, simplesmente, não podem se dar o luxo de parar. Escritores, empresários e professores nos contam, em depoimentos inéditos, os altos e baixos de pendurar as chuteiras.

Herbert Levy

Minha experiência pessoal começa com o fato de que, aos doze anos, após cursar a Escola Modelo Caetano de Campos, na Praça da República, ingressei no 1º ano do Curso Complementar e daí tentei com êxito prestar exame para pular dois anos seguintes, ingressando no 1º ano da Escola Normal. Em conseqüência, aos 16 anos formei-me Professor Público.

Posteriormente, cursei a Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tendo sido escolhido orador da turma na festa da formatura marcada para 18 de novembro de 1937, isto é, oito dias após a proclamação da ditadura do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937. Convoquei companheiros do Partido Democrático, que comparecem em grande número, e diante de vários ministros da ditadura getuliana, inclusive militares, porque o fundador da Escola, senador Roberto Simonsen, que a presidia, era muito prestigioso nas áreas governamentais, fiz um hino à democracia e, para boa medida, critiquei duramente a ditadura, provocando intensos aplausos.

Talvez não conviesse à ditadura passar recibo do incidente, procurando deixá-lo passar despercebido. Mas no dia seguinte O Estado de S.Paulo furou a censura, publicando o discurso na íntegra.

Fui preso e processado pelo Tribunal de Segurança Nacional e, de 37 a 45, quando restabeleceu-se a ditadura, fui preso seis vezes e mais uma vez processado. Isso define meu espírito de luta, que já se revelara em 32. Comecei como segundo tenente no 1º Batalhão Paulista da Milícia Civil, primeira unidade a seguir o fronte, sob o comando do capitão Romão Gomes, a maior revelação militar do movimento.

Romão terminou no posto de coronel e comandante do Força Pública, deixando-me no comando da Coluna, de 5.800 homens, promovido a capitão, mas com funções de general de Brigada, fato singular entre os voluntários paulistanos.

Eleito para a Câmara dos Deputados em 1946, fiquei na ativa por mais de 40 anos; nesse período fui eleito Presidente Nacional da UDN, o que me fez chefe da oposição, e depois, por muitos anos, fiquei na liderança da bancada oposicionista, nunca abandonando a posição de luta.

Aposentei-me depois de 75 anos de idade, mas continuei minhas atividades até hoje, após ter completado 87 anos. Graças a Deus, continuo com boa diposição para o trabalho, no meu jornal diário, a Gazeta Mercantil, onde escrevo meus editoriais com o velho espírito de luta e condenando duramente a política econômica, particularmente os juros de agiotagem inexplicavelmente adotados, porque devastam as fontes produtoras e desrespeitam escancaradamente a lei básica, a Constituição Federal, que, proíbe juros acima de 12% ao ano.

Essas críticas tem me valido aplausos de pessoas altamente qualificadas, que não pretendem agradar-me.

 

Herbert Levy é presidente da Gazeta Mercantil

 

 

Raquel de Queiroz

Quem trabalha de aluguel, seja funcionário público, comerciário, jornalista etc., claro que tem na aposentadoria o seu fulcro maior de interesse, sua libertação pessoal – liberação para fazer o que quiser, quando quer – ou não fazer nada.

Com esse sonho correndo a sua frente, trabalha ou finge que trabalha durante anos seguidos; no final de contas verifica que dá tudo no mesmo. Podem ser trinta anos de ofício, cumpridos semana a semana, da segunda à sexta. O consolo é pensar que dantes ainda era pior, quando a aposentadoria só chegava após a velhice – cabelo branco não era documento. As leis melhoraram e a aposentadoria ficou ao alcance de todos. Nos últimos anos de trabalho você conta os meses, as semanas, os dias. Afinal, chega! Os colegas fazem um almoço de despedida e você volta definitivamente para sua casa, seu lar. E aí? Aí vai começar uma vida nova. Mas que vida? Você, até então, só conhecia por vida o acordar com despertador, o banho, o café corrido, o pegar a condução (ou dirigir seu próprio carro, o que lhe antecipa a idéia de já estar trabalhando, dirigir no trafego matinal é serviço pesado). Mas ficar em casa fazendo o quê? As crianças (se há crianças) estão no alvoroço da saída para a escola, a mulher reclama, mulher sempre reclama pela manhã. Ele se senta na poltrona com o jornal – (quanto sonhou com isso!) –, mas o jornal permitido, franco, não parece ter tanto interesse. Liga o rádio, a TV, os programas matinais são chatíssimos, receitas de cozinha, conselhos matrimoniais, e o noticiário é o da véspera, pois durante a noite não acontece nada, todos dormem, até os políticos.

Você arrasta os chinelos pelo corredor – durante um momento comemora o fato de poder estar de chinelos – e pijama! – em plena manhã de dia útil. Mas de chinelos para que? Ninguém fica passando pelos corredores pelo simples gosto de passear. Faço-lhe no coração um vago sentimento. De culpa, pelo pijama e pelos chinelos naquela hora matinal. Durante trinta anos se afadigou, correu, para estar de termo e de sapatos novos (quase sempre apertavam), dar o nó na gravata, enfiar o paletó já na porta do elevador.

Mas você afasta os sentimentos tédio se repete consigo: "Sou livre, agora, posso fazer o que quero!". Pode? A mulher já está por perto, pedindo que verifique a conta do armazém – o galego é um ladrão! – na sala, a empregada levanta o tapete e varre o chão; no quarto, a cama ainda está por fazer; ele não sabia que as camas se fazem tão tarde, saía sempre antes.

Como é confusa uma casa de família pela manhã. Ele só recordava o silêncio de antes, ela ainda dormia e ele já se vestia, enquanto a cozinheira, por força do hábito, já fez o café da manhã. E ele, que detestava café frio, tem que tomar o café sozinho, como antes. Por que não ficou na cama, quentinha? Justamente por isso, porque a cama está quentinha, desagradável, na manhã de verão.

Desconsolado, acaba tirando maquinalmente o pijama, enfiando as calças, o casaco. Sai à rua! Não sabe o que fazer. E aí pensa: "E se eu fosse ver como estão se comportando sem mim, aqueles caras da repartição?". Toma a condução, desce no ponto, se encaminha à repartição. E é recebido com uma salva de palma pelos colegas: "A gente sabia que você não iria se agüentar em casa! Mas veja, chegou atrasado, exatamente nove minutos!".

E ele: "É o meu luxo de aposentado! É só vim ver como vão as coisas".

E senta a sua mesa vazia, abre as gavetas, olha os outros trabalhando, dá um suspiro: "lá em casa também não há nada o que fazer!".

 

Raquel de Queiroz é escritora

 

 

José Mindlin

Antes de mais nada, não me considero aposentado, embora seja favorecido na vida com uma aposentadoria de 630 reais, como diretor da Metal Leve, depois de 40 e poucos anos de contribuição máxima à Previdência... Assim, a indagação "E agora?", apesar de eu ter interrompido minha atividade empresarial, não tem propriamente cabimento. Em vez de procurar o que fazer, meu problema é a falta de tempo para continuar o que vim fazendo através da vida, e a busca de uma fórmula para fazer menos coisas. Tendo deixado a Metal Leve, abriu-se um pequeno espaço, mas que se vê ameaçado por novas e contínuas solicitações de pessoas e entidades que me imaginam mais folgado do que era antes. Na realidade, não sei se quero mesmo fazer menos coisas, porque o vício de fazer paralelamente ao trabalho empresarial tudo o que fiz e continuo fazendo de diferente é bem antigo. Falo sempre de compartimentos estanques na cabeça que tornam possíveis essas atividades diversificadas e me permitiram ler sem parar durante todos estes anos. É que, com eles, consigo dividir bem o meu tempo, sem me deixar envolver excessivamente por algumas coisas em detrimento de outras.

Reconheço que quem dedicou sua vida só ao trabalho cessou, e a busca de novas atividades, depois do aparente prazer de algumas semanas ou meses de "ócio com dignidade", não deve ser nada fácil. A pessoa pode se ver perdida. Felizmente, não é o meu caso. Durante toda a minha vida ativa, de mais de 70 anos, sempre fiz, coisas bem diferentes. Senão, vejamos. Fui estudante de Direito e jornalista ao mesmo tempo. Fui advogado e livreiro de livros raros, isso com a idéia de pescar no viveiro obras para a biblioteca que comecei a formar aos 13 anos, há 71 anos atrás. Fui empresário envolvido em tecnologia, apesar de ser bacharel em Direito, e participando da Fiesp e CNI na promoção de exportações, design e capacitação tecnológica. Fui Secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia, isso tudo dedicando sempre tempo à família, à leitura, às viagens, às artes, à música e ao cinema. Bater papo com amigos, sempre gostei de fazer.

Pois bem. Tudo isso continua, às vezes sob outra forma: a família cresceu (hoje temos 4 filhos e 12 netos). Também cresceu a biblioteca, que me dá prazer permanente. Faço parte de várias entidades culturais, aqui e no exterior, e de atividade sociais relevantes, como, por exemplo, a Vitae. Dar conta da correspondência é um terrível desafio. Esforço de capacitação científica e tecnológica, eu continuo fazendo, por meio do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) a que pertenço. Conselhos ou Sociedades de Amigos de museus, bibliotecas ou arquivos são coisas que não faltam. E não são poucos os convites para conferências em vários Estados.

Esporte não chego a fazer, mas ando quase todos os dias de 2 a 4 quilômetros. Dificilmente resisto às tentações gastronômicas, isso na base de que a melhor forma de se livrar de uma tentação é ceder.

Gosto da vida e não me tomo a sério. De modo geral, vivo de bom humor. A idade, por isso, é um problema muito relativo. Minha queixa da vida é que ela é muito curta. Mas será que posso me queixar?

 

José Mindlin é jurista e bibliófilo

 

 

Waldeck Ornélas

Concluída, pelo Congresso Nacional, a votação da emenda constitucional da Reforma da Previdência, após mais de três anos de polêmica tramitação, o momento parece adequado para agora começar uma nova fase, sem a emoção e as distorções que marcaram a discussão da matéria, de clarificação de conceitos e formação de uma consciência nacional sobre o que é e qual a função da Previdência Social.

O período resultou positivo, pela divulgação de informações, pelo conhecimento da matéria – até então muito hermética –, pela manifestação das posições políticas e acadêmicas, pelo reconhecimento dos interesses gerais e localizados.

Em relação aos trabalhadores do setor privado, as distorções acumuladas no sistema de Previdência decorrem da falta de um ajuste estrutural que adequasse a Previdência Social ao novo perfil demográfico da população brasileira e evitasse uma série de favores concedidos ao longo do tempo a categorias e situações. É por isso que o rombo cresce ano após ano. Na verdade, nunca tivemos visão atuarial do nosso sistema previdenciário.

Ainda agora, em face da Câmara dos Deputados não ter mantido o critério de uma idade mínima para aposentadoria, pelo Regime Geral de Previdência Social, persistirão distorções que precisarão ser posteriormente corrigidas.

Já no âmbito do setor público, houve a clara percepção de que havia uma conta previdenciária sendo paga por toda a sociedade, menos pelos próprios beneficiários, que, só recentemente, passaram a contribuir para sua aposentadoria. O resultado é que, quando despertamos, a conta se encontrava em algo nada desprezível: cerca de R$ 35 bilhões neste ano. Desse total, nada menos que R$ 18 bilhões no âmbito do governo federal, ficando o restante para os Estados e Municípios. Assim, não apenas a União, mas também cada Estado e cada Município estão com suas capacidades de atender às reivindicações e às necessidades da população comprometidas por estarem pagando mais do que deveriam na conta previdenciária.

Neste sentido, aliás, o ente público deve ser visto apenas e tão-somente como empregador. Não é, contudo, o que ocorre. Na União, para cada real de contribuição descontado, o Tesouro coloca R$ 7,50 em vez de R$ 2 equivalentes à contribuição do setor privado!

É por isso que se faz necessária a contribuição do servidor, e com participação adequada para a parcela acima de R$ 1.200, que é o teto estabelecido para a aposentadoria dos trabalhadores do setor privado. Por sua vez, justifica-se a cobrança dos inativos do setor público – o que não ocorre no setor privado – porque aqui os aposentados e pensionistas têm direito a todos os aumentos que os servidores ativos podem receber, inclusive gratificações de produtividade, além da remuneração integral – o que também não ocorre com os colegas do setor privado.

Trata-se, portanto, de fazer o jogo da verdade. É chegada a hora de dar um rumo claro, preciso e específico à questão previdenciária em nosso país. Neste sentido, é indispensável que tenhamos todos um mesmo conceito básico a respeito dessa questão.

A Previdência Social é um seguro para quando ocorra perda da capacidade de trabalho, por idade, invalidez, doença, ou dar lugar à instituição de pensão em caso de morte. Entre nós, o prêmio desse seguro é pago mês a mês, parte pelo empregado, parte pelo empregador. Não dá, portanto, para descompletar a conta. Também é indispensável começar a ver a Previdência Social como uma conta corrente, na qual o trabalhador possa – e assim será – retirar seu extrato e acompanhar a evolução do saldo. Esta é a garantia do seu futuro na inatividade. É por isso que há uma previdência pública, compulsória e universal – para todos.

O fato de que seja administrada pelo governo visa exatamente à garantia de que os benefícios básicos sejam assegurados, mas não deve implicar que a Previdência seja uma conta aberta, como hoje, na qual não há correlação entre contribuições e benefícios, e a sociedade, via Tesouro, é chamada a cobrir o rombo da Previdência do setor público ou da atividade privada. Por isso mesmo, é preciso ter a clara consciência de que, sempre e quando o benefício previdenciário deixar de ser custeado pelo próprio segurado via contribuições, ele será bancado por toda a sociedade – via impostos.

Cresce cada vez mais entre nós a convicção de que a sociedade quer ver reduzida a carga tributária, com o Estado lhe prestando os serviços essenciais de que carece, vendo o país crescendo e gerando empregos. Será que essa mesma sociedade acha correto o poder público pagar a conta previdenciária, deixando de fazer o que lhe cabe? Pois isto é o que está ocorrendo. Este é o centro da discussão. Isto é o que está por trás da Reforma da Previdência. Esta é a decisão a tomar.

O governo tem adotado as providências que lhe cabem. Encaminhou ao Congresso a Emenda de Reforma Constitucional que deu lugar à ampla discussão e, agora, à aprovação da matéria. Paralelamente, tem adotado providências legais, gerenciais e administrativas para corrigir as distorções, ajustar as contas, promover a justiça social, dar transparência às regras, evitar a sonegação, fiscalizar com rigor, cobrar com eficiência, atender com presteza e qualidade.

Neste contexto inserem-se, agora no âmbito do Plano de Estabilidade Fiscal, as normas gerais para a providência do setor público, que corrigem as brechas legais que permitem evasão, por sonegação ou renúncia, além de tipificar e apenar os crimes contra a Previdência.

O objetivo é ter regras claras, transparentes, precisas. Tanto trabalhadores do setor público ou privado, todos devem ter um mesmo critério de contribuição e de benefícios, cada um que custeie sua própria Previdência. Que todos sejamos iguais perante a lei.

 

Waldeck Ornélas, senador licenciado (PFL/BA), é ministro da Previdência e Assistência Social.

 

 

Carlos Felipe Moisés

A primeira sensação é de euforia: "Agora posso fazer o que quiser, quando quiser e só se quiser". Antes, a obrigação, a submissão a horários e compromissos alheios, o adiamento da vida verdadeira; depois, o lazer, a liberdade, o tempo preenchido por vontade própria. Nas primeiras semanas, a conquista se traduz em atravessar os dias... sem fazer nada, sorriso triunfante. Preencher o tempo? Dormir, dormir muito; perambular por aí, de sandália e bermuda; jogar conversa fora, na padaria da esquina; bebericar uma cervejinha na hora em que der vontade, sem ter de aguardar o happy hour. Olhar a folhinha e só enxergar feriado, a semana toda, o resto da vida. Ah, a delícia de acordar e saber que o dia, e a noite, serão uma sucessão de happy hours...

Algum tempo depois, uma incursão ao sótão, para reencontrar, coberta de poeira, a velha coleção de selos. Ou a caixa de ferramentas, meio emperrada, ou... o que seja! Trazê-lo de volta à vida, recuperar o prazer, quase esquecido, daquele pequeno domínio, agora não mais restrito às escassas horas "vagas", sentimento de culpa. Para o aposentado, todas as horas são vagas. E plenas. Isso acrescenta, à sensação de euforia, a de ter rejuvenescido. "Nunca me senti tão bem disposto, em toda a vida!"

Mais adiante, porém, o repertório de novidades e descobertas se esgota e tudo começa a deslizar para outra espécie de rotina. Enfrentar o dia-a-dia se transforma em tarefa pesadamente monótona, a euforia cede lugar à melancolia, o prazer de governar as próprias horas vira irritabilidade constante. Então advêm a inércia, a indiferença, a depressão. Em poucos meses, nosso aposentado terá envelhecido bem uns dez anos. Aí não há alternativa: voltar a trabalhar ou encomendar o caixão.

A não ser que ele tenha um repente de lucidez e atine com o óbvio: prazer e dever não são incompatíveis. Sonhar com a aposentadoria como uma espécie de redenção equivale, na verdade, a eliminar a fronteira, fazendo que o sem-sentido de antes migre, intacto, para a ilusão do depois. Difícil atribuir sentido ao ócio absoluto, tão difícil quanto divisar alguma razão de ser no trabalho esvaziado de satisfação genuína.

Se o indivíduo encarar os seus longos anos de "contribuição" como mal necessário, tolerado com má vontade, olhos postos no futuro, não haverá aposentadoria que sirva de compensação. Ultrapassada a fronteira, ele logo se condenará ao tédio autocorrosivo – o mesmo, aliás, a que já se condenara muito tempo antes, sem perceber.

A aposentadoria, no geral, tende a ser antes um problema do que uma solução. Por isso existem "clínicas" avançadas que preparam o indivíduo para o grande evento. A meu ver, só mais uma inutilidade, outro equívoco. A não ser que essas clínicas sejam oferecidas a pessoas em início de carreira e não a gente prestes a se aposentar. Mas qual é o jovem que pensa em "aposentadoria"? O problema, quando existe, não está na aposentadoria em si, mas no modo como o indivíduo tenha lidando com o trabalho, desde o início.

O aposentado é um inútil? Um desocupado? Mas as circunstâncias não o induziram a sonhar exatamente com isso, a vida toda? O ócio não é o emblema definitivo da bem-aventurança? Pois é... Mas só depois de conquistá-lo é que o sujeito se dá conta da inversão de sinais. A solução, então, é simples: sejamos todos, docemente, um pouco inúteis, um pouco desocupados, um pouco ociosos, sempre. Só assim a aposentadoria deixará de ser essa overdose de satisfação inglória; só assim o indivíduo poderá ir curtindo, efetivamente, a euforia do aposentado, já ao assumir o primeiro emprego, sem precisar adiá-la para quando se desfizer do último. Ou para quando "euforia" for só um conceito abstrato, intangível.

 

Carlos Felipe Moisés é poeta, crítico literário e professor aposentado da USP. Nunca escreveu tanto como depois de se aposentar.

 

 

Marcelo Antonio Salgado

A universalização da aposentadoria é um fenômeno deste século, despontando como uma das mais fortes organizações sociais dos sistemas sociopolíticos.

Originalmente a aposentadoria constituía-se num sistema de organização voluntária, proposta por alguns grupos profissionais, com o objetivo de apoiar financeiramente o trabalhador e sua família nas situações de doença, invalidez e morte.

Ao longo do tempo o conceito de aposentadoria sofreu modificações, definindo-se, na atualidade, como uma obrigação social do Estado, apoiando financeiramente o indivíduo numa etapa da vida na qual decai sua força física e a própria aptidão para o trabalho. Esse conceito é fundamentado no princípio de que o trabalhador, após expressiva contribuição à sociedade, deve ser ajudado na sua velhice.

A aposentadoria também mantém uma relação estreita com a questão da produtividade. Os trabalhadores idosos, quer pelas perdas físicas, quer pela deficiência de conhecimentos tecnológicos, são menos preferidos. Assim a aposentadoria é uma forma de produzir a substituição das gerações no trabalho.

Independente da circunstância em que ocorra, seja cercada de amparo material ou com a queda de recursos para a subsistência, a aposentadoria traz para a grande maioria dos trabalhadores a eminência de um conflito social e individual.

Conflito social, pois após anos de trabalho a sociedade alija da produção homens e mulheres que ainda reúnem força e entusiasmo para continuarem participando. A própria experiência acumulada confere a muitos trabalhadores as condições de conhecimento e equilíbrio psicológico e emocional, imprescindíveis ao trabalho economicamente produtivo. Muitas pessoas, independentemente da idade ou tempo de trabalho, não se encontram preparadas psicológica e emocionalmente para a parada profissional e nem sequer a desejam. Entretanto, a moral social, escudada no conceito aparentemente humanitário de que o indivíduo idoso deve usufruir de um permanente repouso remunerado, transforma muitas pessoas em vítimas de seu próprio descanso.

Conflito individual, porque a aposentadoria coincide normalmente com o envelhecimento, sendo este último aspecto um condicionante da mudança, exigindo de cada um a segurança e maturidade para enfrentar e aceitar as modificações graduais que estão ocorrendo. Parar de trabalhar significa a perda do papel profissional e, conseqüentemente, a perda de papéis junto à família e junto à sociedade como um todo. A interiorização emocional dessas perdas, socialmente tão significativas, determina um certo afastamento da sociedade, traduzido pelo distanciamento do aposentado da convivência de diversos grupos.

A aposentadoria é uma profunda mudança em relação a um estilo e ritmo de vida solidificados ao longo de muitos anos. Por si só, esta mudança já exige grande esforço de adaptação, ainda mais quando coincide com o tempo do envelhecimento, época em que outras perdas se processam.

Decorridos os primeiros dias em que o ócio pode parecer uma situação agradável, encontra-se o aposentado na dura realidade de ocupar o tempo livre de forma saudável e construtiva. Não é tarefa fácil, pois nem sempre, o tempo de parada profissional foi preparado e a inatividade chega sem que ele esteja pronto para essa ruptura. O resultado, para muitos, é a morte social.

As sociedades se preocupam com o engajamento dos indivíduos na atividade produtiva, porém nem sempre assumem a responsabilidade de prepará-los para a inatividade. Critica-se os aposentados por sua apatia, pelos valores e cultura retrógrados, pela ausência de participação. Entretanto, pouco se faz para reverter essa situação.

O trabalho oferece oportunidades de relacionamento interpessoal e trocas de experiências humanas. Antes de tudo, o trabalho confere um sentimento de valor, prestígio e poder ou, simplesmente, uma identidade social que favorece sobremaneira o bom equilíbrio do indivíduo. Assim, a perda do papel profissional pode representar a fonte de muitos desajustes.

Ao longo da vida, os indivíduos são induzidos a um engajamento contínuo, especialmente no que se refere à vida profissional e familiar. Para muitos a vida é centrada nesses dois universos, determinando a dificuldade de formular outros projetos existenciais.

Para se encontrar novos papéis e desenvolver outras atividades durante o tempo da aposentadoria é preciso estar intelectualmente ativo e competente para mobilizar recursos. A maneira de conduzir a aposentadoria é o resultado das atividades vivenciadas e das relações sociais acumuladas nas etapas anteriores do ciclo de vida.

Quem não acumulou recursos contra a morte social é uma espécie de marginalizado, não conseguindo transformar o tempo livre em projetos positivos de vida. Neste caso a aposentadoria é um tempo sem sentido. É um vazio onde existem apenas as repetições de gestos e horas monótonas, interrompidas pelos atos biológicos essenciais à existência humana.

Para muitos aposentados resta apenas o passar do tempo cronológico, marcado pelo pêndulo lento e repetitivo de um relógio.

O tempo da aposentadoria pode ser redefinido pela utilidade social e desenvolvimento pessoal, com resultados igualmente ou mais satisfatórios do que o tempo de trabalho. Entretanto, é necessário que o aposentado esteja psicologicamente preparado para compreender essa possibilidade e socialmente apto à consecução dessas projetos.

A consciência relativa que a maioria das populações tem a respeito da aposentadoria e do próprio envelhecimento obriga-nos a considerar a necessidade de uma ação educativa que se proponha a ajudar os indivíduos a se prepararem melhor para usufruir o tempo livre, oriundo da parada do trabalho profissional. Esse processo inclui o despertar para os valores do lazer, com dimensões socialmente produtivas, capazes de reagrupar as diversas funções sociais, que, ao longo da vida ativa, se distribuíam entre o trabalho, a sociedade e a família. Preparar-se para o envelhecimento também significa conhecer bem a cadência natural do ciclo de vida, seus limites reais, os estereótipos e os preconceitos no sentido de se reduzir o processo natural de perda da auto-estima que inevitavelmente acomete a todos aqueles que vêem no envelhecimento um tempo exclusivo de perdas e incompetência.

 

Marcelo Antonio Salgado é gerente de Estudos e Programas da Terceira Idade do Sesc, assistente social, gerontólogo e epidemiólogo do envelhecimento.

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