
SER
TÃO SERTÃO
Cinqüentenário
de publicação de Grande Sertão: Veredas, obra-prima
de João Guimarães Rosa, é um bom motivo para entrar
no universo mágico do autor mineiro
Ao
escrever sobre uma grande personalidade, surge uma tentação
poderosa: a de logo emplacá-lo em um ranking de "o
mais importante de seu tempo", "o dos melhores de sua área
de atuação" ou qualquer outra catalogação
que ajude o leitor a entender a relevância da obra e do criador
em questão. A tentação aumenta quando a figura é
João Guimarães Rosa, o autor de Grande Sertão:
Veredas, livro que completa 50 anos de publicação em
2006. Lançado em 1956, ocupa quase 600 páginas, nas quais
se acompanha a saga de Riobaldo, um típico jagunço do sertão
mineiro. E a pergunta é inevitável: em que lugar da literatura
brasileira está Grande Sertão? "Em primeiro",
responde a professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Nilce Sant'Anna
Martins (veja boxe Ave, Palavra!),
autora de O Léxico de Guimarães Rosa (Edusp, 2001).
A mesma resposta vem também de Walnice Nogueira Galvão,
professora de teoria literária e literatura comparada da USP e
autora de Guimarães Rosa (Publifolha, 2000) e Formas
do Falso - Um Estudo Sobre a Ambigüidade no Grande Sertão
(Perspectiva, 1972). "Trata-se do livro mais rico e significativo
da literatura brasileira. É de uma ambição enorme.
Guimarães Rosa quis fazer - e de fato fez - uma grande meditação
metafísica sobre a plebe rural brasileira, sobre esse homem pobre
do interior do Brasil", comenta Walnice. Independentemente de listas
e rankings, o fato é que o romance, pontuado por batalhas
entre jagunços e coronéis, histórias de amor e pactos
com o diabo, é tido como um profundo mergulho na vida do sertão.
Para escrevê-lo, em suas andanças pela região, Guimarães
Rosa sempre levava a inseparável cadernetinha, a quem contava tudo
que via e ouvia.
Poesia e tolerância
O ineditismo da obra não está exatamente em contar histórias
do sertão, mas o que guarda toda a diferença é o
modo como Rosa trabalhou o enredo. "Graciliano Ramos fez isso em
Vidas Secas (1938)", diz Walnice. "Mas não com
tanta ambição, profundidade e elaboração artística
da linguagem. Nesse aspecto, Guimarães Rosa é imbatível.
Ninguém chegou aos pés dele nem vai chegar, porque a literatura
brasileira já tomou outro rumo." Para Walnice, a ambigüidade
estrutural de Grande Sertão confirma a genialidade comumente
associada ao autor. "Nada no livro é unívoco, tudo
tem pelo menos duas interpretações", diz. "O narrador
protagonista, o Riobaldo, é, por exemplo, um jagunço e um
fazendeiro rico ao mesmo tempo. É também analfabeto e letrado.
No geral, todas as pessoas que aparecem no livro são divididas
entre Deus e o diabo, o bem e o mal. Até mesmo Diadorim, outro
personagem, é homem, mas também é mulher." A
professora explica que é justamente essa ambigüidade que torna
a obra mais rica, interessante e cheia de "compaixão e humanidade".
Uma complexa metáfora do apreço pela tolerância. "Guimarães
Rosa tinha muito respeito pela diversidade que cerca o ser humano e seus
comportamentos", analisa Walnice. "Isso aparece também
em outros livros seus."

Exímio jogador
de xadrez
Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908 em Cordisburgo, cidadezinha
do sertão de Minas Gerais, e por lá ficou até os
9 anos, quando se mudou para Belo Horizonte. Na capital do estado, salvo
uma breve estada em São João del Rei, viveu até completar
a faculdade de medicina. Ainda criança, já acenava para
aquela que, segundo ele mesmo, seria sua "eterna amante": a
língua. A paixão por idiomas tornou-o um poliglota. Ainda
pequeno, aventurou-se pelo francês e holandês. Adulto, dominava
também o inglês, alemão, russo, italiano e espanhol.
Foi esse interesse que o empurrou para a diplomacia, carreira que abraçaria
após abandonar a medicina. "(...) Repugna-me qualquer trabalho
material", dizia. "Só posso agir satisfeito no terreno
das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos.
Sou um jogador de xadrez. Nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com
o futebol." Antes do fim da década de 30, Guimarães
Rosa prestou concurso no Itamaraty, no qual foi aprovado em segundo lugar,
dando início à carreira como diplomata. Com o nazismo rondando
a Europa, ele foi nomeado cônsul em Hamburgo, na Alemanha, em 1938.
Durante a guerra, usou sua posição para aplacar o pavor
de alguns perseguidos pelo regime do ditador alemão Adolf Hitler,
concedendo-lhes o visto brasileiro. Mais tarde foi homenageado pelo governo
israelense por tal feito. Tanto ele quanto Aracy de Carvalho, sua segunda
esposa, dão nome a um bosque nos arredores de Jerusalém.
Na literatura, estreou em 1929, quando escreveu quatro contos para a revista
O Cruzeiro. Somente em 1946, publicou Sagarana, com nove
contos. Ficou, então, dez anos recolhido até lançar
Corpo de Baile, em 1956, obra que reúne três histórias:
Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém
e Noites do Sertão. Pouco depois veio Grande Sertão:
Veredas e com ele a consagração (veja
boxe O encontro da cidade com o sertão). Seguiram-se à
obra-prima Primeiras Estórias (1962), Tutaméia: Terceiras
Estórias (1967), Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra (1970),
sendo esses dois últimos obras póstumas. Em 1961, Guimarães
Rosa recebeu o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia
Brasileira de Letras (ABL), pelo conjunto da obra e, dois anos mais tarde,
foi eleito por unanimidade como o mais novo membro da casa. A morte surpreendeu-o
ainda jovem, aos 59 anos, e deu-se por problemas no coração.
"Ele não teve uma vida muito longa, mas foi o suficiente para
deixar uma das maiores obras da literatura", diz Nilce Martins. Para
ele, como escreveu em Grande Sertão: Veredas, "viver
é sempre foi muito perigoso."
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O
encontro da cidade com o sertão
Atividades
no Sesc Carmo e Interlagos comemoram o aniversário do clássico
de Guimarães
Considerada
por alguns especialistas no assunto a maior obra da literatura brasileira,
Grande Sertão: Veredas completou meio século
neste ano. A data será comemorada em todo o Brasil. E o Sesc
São Paulo é um dos endereços da festa. Na verdade,
são dois, já que as atividades se dividem pelas unidades
Carmo e Interlagos. No Carmo, o evento Veredas do Rosa segue até
6 de outubro e reúne teatro, exibição de documentários,
leitura dramática, música e uma exposição
de banners que, espalhados por todo o prédio, trazem textos
e fotos de Guimarães Rosa. "Foi o Grande Sertão:
Veredas que me levou à viola", revela o músico
Paulo Freire, que participou do evento comentando o documentário
Urucuia (1998), de Angélica del Nery. Freire conta
que quando leu a obra, em 1977, não resistiu à curiosidade
de "conhecer o som desse grande sertão". Foi então
que decidiu morar na região do Rio Urucuia, retratada no
filme. "Percebi que só era possível entrar no
universo criado por João Guimarães Rosa depois de
mergulhar na musicalidade do sertanejo. Ali tive contato com violeiros
e o mundo que cerca a viola - há até a possibilidade
de pacto com o capeta. Quanto mais toco a violinha, maior é
a vontade de abrir o Grande Sertão. Ou seja, ela vive
me devolvendo para o livro." Em outro documentário,
Livro Para Manuelzão (2006), também de Angélica
del Nery e que será exibido no dia 2 de outubro, é
retratada a vida de Manoel Nardy (foto), vaqueiro que inspirou o
personagem Manuelzão, do livro Manuelzão e Miguilim
(1956), e também o encontro da cineasta com Guimarães
Rosa. No dia 4, acontece ainda a programação Sertão
É do Tamanho do Mundo, em que as atrizes Azê Diniz
e Alessandra Branches interpretam trechos de Grande Sertão:
Veredas no terraço do Edifício Martinelli. Já
no Sesc Interlagos, as comemorações seguem até
29 de outubro, com a programação de Sertão
Brasil - Uma Viagem pelas Veredas do Rosa. Além de uma exposição
ao ar livre que retrata passagens do livro, outras atividades buscam
aproximar os participantes da natureza abundante da unidade - já
que a fauna e a flora do Brasil eram dois assuntos notoriamente
apreciados pelo autor. Em Aves Daqui, Aves do Sertão, a idéia
é comparar os pássaros que aparecem em sua obra e
as espécies que visitam a unidade.
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Ave,
palavra!
A
opulenta linguagem do autor gerou até dicionário próprio
O título
que dá nome a este texto é o nome do último
livro póstumo de Guimarães Rosa, publicado em 1970.
"É uma saudação, como 'ave, Maria'. Funciona
como 'salve, palavra'", explica a professora aposentada da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH),
da Universidade de São Paulo (USP) Nilce Sant'Anna Martins,
estudiosa da obra do escritor mineiro. Segundo a professora, para
ele qualquer palavra era interessante - ele chegava até mesmo
a inventar algumas. "Na minha opinião, uma das mais
interessantes que inventou foi o verbo que designava os diferentes
ruídos que vinham do mato. Segundo ele, o mato 'aeiouava',
do verbo 'aeiouar'. Ou seja, ele juntou todas as vogais para sugerir
que as vozes dos passarinhos tinham todas as tonalidades",
explica. A rica linguagem, tanto a inventada como a do sertanejo
que habita seus livros, foi a marca registrada da obra de Guimarães
Rosa. Esse vocabulário do sertão, às vezes
tão distante do Brasil urbano, aguçou a curiosidade
da professora. Todos os verbetes não entendidos foram marcados
e pesquisados. E assim ela construiu O Léxico de Guimarães
Rosa (Edusp, 2001), um dicionário que traz cerca de 7
mil verbetes recolhidos dos livros do autor, 2.700 não dicionarizados.
"Provavelmente são invenções dele",
comenta Nilce. "Nesses casos, procurei chegar ao sentido mais
próximo da palavra, guiando-me pelo contexto em que ela está
inserida. Se não achei sentido nenhum, simplesmente pus 'palavra
sem explicação'", esclarece. O trabalho consumiu
anos de pesquisa e muitas horas de leitura. Entre o início
do projeto e sua conclusão foram 20 anos. Por vezes, para
encontrar uma palavra, a professora consultava seis dicionários
diferentes, sem contar os vocábulos que pediam uma pesquisa
em dicionários de línguas estrangeiras. "Grande
Sertão: Veredas é o que tem o vocabulário
mais rico. Lá está a mais variada mostra do que Guimarães
Rosa costumava fazer, que era usar a língua comum a todos
e acrescentar as alterações próprias da linguagem
popular, sobretudo, do sertanejo", diz. Ela cita alguns exemplos.
"Em vez de orvalho, ele escreve aroalho. Em vez de responder,
arresponder. Mas há também situações
em que palavras cultas estão na boca do sertanejo. É
o caso de "escurril", que significa ridículo, bobo.
"Essa expressão foi usada pelo Riobaldo em um diálogo
com Zé Bebelo no Grande Sertão", conta
a professora. A linguagem de Guimarães Rosa é o que
mais afugenta leitores desprevenidos ou, ao contrário, prevenidos
demais. "Não há o que temer", garante a
professora. "Há um certo exagero no que diz respeito
à dificuldade do texto rosiano", acredita ela. Pelo
bem ou pelo mal, o glossário de O Léxico de Guimarães
Rosa funciona como um apoio e tanto aos novatos. Afinal, o escritor
e a língua eram como "um casal de amantes, que juntos
procriavam apaixonadamente, mas a quem tinha sido negada a bênção
eclesiástica e científica", afirmava o próprio
Rosa.
A seguir alguns exemplos da invenção do autor:
AEIOUAR - "O mato - vozinha mansa - aeiouava." Significado:
emitir sons variados. Palavra inventada, que não consta em
dicionários.
GOÉCIA - "Por certo, ele praticaria a goécia,
comunicava-se com o antro dos que não puderam ser homens."
Significado: encantamento, enfeitiçamento. Do grego, goeteía.
FRATERNURA - "Amálgama de irmãos é ternura."
Significado: ternura de irmãos. Palavra inventada, que não
consta em dicionários.
SORRIUZINHO - "Ela sorriu, sorriuzinho." Significado:
o sufixo aqui foi acrescentado para sugerir que quem sorriu, o fez
de forma meiga.
TUTAMÉIA - "Por conta de tropeiros de Urucuia-a-fora
não terem auxiliado de abrir a tutaméia de um saquinho
de sal, nem de vender para os dali..." Significado: pequena
porção, bagatela.
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