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Literatura

Postado em 04/10/2006

REVISTA E - Outubro 2006

 

SER TÃO SERTÃO



Cinqüentenário de publicação de Grande Sertão: Veredas, obra-prima de João Guimarães Rosa, é um bom motivo para entrar no universo mágico do autor mineiro




Ao escrever sobre uma grande personalidade, surge uma tentação poderosa: a de logo emplacá-lo em um ranking de "o mais importante de seu tempo", "o dos melhores de sua área de atuação" ou qualquer outra catalogação que ajude o leitor a entender a relevância da obra e do criador em questão. A tentação aumenta quando a figura é João Guimarães Rosa, o autor de Grande Sertão: Veredas, livro que completa 50 anos de publicação em 2006. Lançado em 1956, ocupa quase 600 páginas, nas quais se acompanha a saga de Riobaldo, um típico jagunço do sertão mineiro. E a pergunta é inevitável: em que lugar da literatura brasileira está Grande Sertão? "Em primeiro", responde a professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Nilce Sant'Anna Martins (veja boxe Ave, Palavra!), autora de O Léxico de Guimarães Rosa (Edusp, 2001). A mesma resposta vem também de Walnice Nogueira Galvão, professora de teoria literária e literatura comparada da USP e autora de Guimarães Rosa (Publifolha, 2000) e Formas do Falso - Um Estudo Sobre a Ambigüidade no Grande Sertão (Perspectiva, 1972). "Trata-se do livro mais rico e significativo da literatura brasileira. É de uma ambição enorme. Guimarães Rosa quis fazer - e de fato fez - uma grande meditação metafísica sobre a plebe rural brasileira, sobre esse homem pobre do interior do Brasil", comenta Walnice. Independentemente de listas e rankings, o fato é que o romance, pontuado por batalhas entre jagunços e coronéis, histórias de amor e pactos com o diabo, é tido como um profundo mergulho na vida do sertão. Para escrevê-lo, em suas andanças pela região, Guimarães Rosa sempre levava a inseparável cadernetinha, a quem contava tudo que via e ouvia.




Poesia e tolerância
O ineditismo da obra não está exatamente em contar histórias do sertão, mas o que guarda toda a diferença é o modo como Rosa trabalhou o enredo. "Graciliano Ramos fez isso em Vidas Secas (1938)", diz Walnice. "Mas não com tanta ambição, profundidade e elaboração artística da linguagem. Nesse aspecto, Guimarães Rosa é imbatível. Ninguém chegou aos pés dele nem vai chegar, porque a literatura brasileira já tomou outro rumo." Para Walnice, a ambigüidade estrutural de Grande Sertão confirma a genialidade comumente associada ao autor. "Nada no livro é unívoco, tudo tem pelo menos duas interpretações", diz. "O narrador protagonista, o Riobaldo, é, por exemplo, um jagunço e um fazendeiro rico ao mesmo tempo. É também analfabeto e letrado. No geral, todas as pessoas que aparecem no livro são divididas entre Deus e o diabo, o bem e o mal. Até mesmo Diadorim, outro personagem, é homem, mas também é mulher." A professora explica que é justamente essa ambigüidade que torna a obra mais rica, interessante e cheia de "compaixão e humanidade". Uma complexa metáfora do apreço pela tolerância. "Guimarães Rosa tinha muito respeito pela diversidade que cerca o ser humano e seus comportamentos", analisa Walnice. "Isso aparece também em outros livros seus."






Exímio jogador de xadrez
Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908 em Cordisburgo, cidadezinha do sertão de Minas Gerais, e por lá ficou até os 9 anos, quando se mudou para Belo Horizonte. Na capital do estado, salvo uma breve estada em São João del Rei, viveu até completar a faculdade de medicina. Ainda criança, já acenava para aquela que, segundo ele mesmo, seria sua "eterna amante": a língua. A paixão por idiomas tornou-o um poliglota. Ainda pequeno, aventurou-se pelo francês e holandês. Adulto, dominava também o inglês, alemão, russo, italiano e espanhol. Foi esse interesse que o empurrou para a diplomacia, carreira que abraçaria após abandonar a medicina. "(...) Repugna-me qualquer trabalho material", dizia. "Só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez. Nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol." Antes do fim da década de 30, Guimarães Rosa prestou concurso no Itamaraty, no qual foi aprovado em segundo lugar, dando início à carreira como diplomata. Com o nazismo rondando a Europa, ele foi nomeado cônsul em Hamburgo, na Alemanha, em 1938. Durante a guerra, usou sua posição para aplacar o pavor de alguns perseguidos pelo regime do ditador alemão Adolf Hitler, concedendo-lhes o visto brasileiro. Mais tarde foi homenageado pelo governo israelense por tal feito. Tanto ele quanto Aracy de Carvalho, sua segunda esposa, dão nome a um bosque nos arredores de Jerusalém. Na literatura, estreou em 1929, quando escreveu quatro contos para a revista O Cruzeiro. Somente em 1946, publicou Sagarana, com nove contos. Ficou, então, dez anos recolhido até lançar Corpo de Baile, em 1956, obra que reúne três histórias: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Pouco depois veio Grande Sertão: Veredas e com ele a consagração (veja boxe O encontro da cidade com o sertão). Seguiram-se à obra-prima Primeiras Estórias (1962), Tutaméia: Terceiras Estórias (1967), Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra (1970), sendo esses dois últimos obras póstumas. Em 1961, Guimarães Rosa recebeu o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras (ABL), pelo conjunto da obra e, dois anos mais tarde, foi eleito por unanimidade como o mais novo membro da casa. A morte surpreendeu-o ainda jovem, aos 59 anos, e deu-se por problemas no coração. "Ele não teve uma vida muito longa, mas foi o suficiente para deixar uma das maiores obras da literatura", diz Nilce Martins. Para ele, como escreveu em Grande Sertão: Veredas, "viver é sempre foi muito perigoso."

 


 

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O encontro da cidade com o sertão

 

Atividades no Sesc Carmo e Interlagos comemoram o aniversário do clássico de Guimarães

 

Considerada por alguns especialistas no assunto a maior obra da literatura brasileira, Grande Sertão: Veredas completou meio século neste ano. A data será comemorada em todo o Brasil. E o Sesc São Paulo é um dos endereços da festa. Na verdade, são dois, já que as atividades se dividem pelas unidades Carmo e Interlagos. No Carmo, o evento Veredas do Rosa segue até 6 de outubro e reúne teatro, exibição de documentários, leitura dramática, música e uma exposição de banners que, espalhados por todo o prédio, trazem textos e fotos de Guimarães Rosa. "Foi o Grande Sertão: Veredas que me levou à viola", revela o músico Paulo Freire, que participou do evento comentando o documentário Urucuia (1998), de Angélica del Nery. Freire conta que quando leu a obra, em 1977, não resistiu à curiosidade de "conhecer o som desse grande sertão". Foi então que decidiu morar na região do Rio Urucuia, retratada no filme. "Percebi que só era possível entrar no universo criado por João Guimarães Rosa depois de mergulhar na musicalidade do sertanejo. Ali tive contato com violeiros e o mundo que cerca a viola - há até a possibilidade de pacto com o capeta. Quanto mais toco a violinha, maior é a vontade de abrir o Grande Sertão. Ou seja, ela vive me devolvendo para o livro." Em outro documentário, Livro Para Manuelzão (2006), também de Angélica del Nery e que será exibido no dia 2 de outubro, é retratada a vida de Manoel Nardy (foto), vaqueiro que inspirou o personagem Manuelzão, do livro Manuelzão e Miguilim (1956), e também o encontro da cineasta com Guimarães Rosa. No dia 4, acontece ainda a programação Sertão É do Tamanho do Mundo, em que as atrizes Azê Diniz e Alessandra Branches interpretam trechos de Grande Sertão: Veredas no terraço do Edifício Martinelli. Já no Sesc Interlagos, as comemorações seguem até 29 de outubro, com a programação de Sertão Brasil - Uma Viagem pelas Veredas do Rosa. Além de uma exposição ao ar livre que retrata passagens do livro, outras atividades buscam aproximar os participantes da natureza abundante da unidade - já que a fauna e a flora do Brasil eram dois assuntos notoriamente apreciados pelo autor. Em Aves Daqui, Aves do Sertão, a idéia é comparar os pássaros que aparecem em sua obra e as espécies que visitam a unidade.

 

 

 

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Ave, palavra!

 

A opulenta linguagem do autor gerou até dicionário próprio

 

O título que dá nome a este texto é o nome do último livro póstumo de Guimarães Rosa, publicado em 1970. "É uma saudação, como 'ave, Maria'. Funciona como 'salve, palavra'", explica a professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP) Nilce Sant'Anna Martins, estudiosa da obra do escritor mineiro. Segundo a professora, para ele qualquer palavra era interessante - ele chegava até mesmo a inventar algumas. "Na minha opinião, uma das mais interessantes que inventou foi o verbo que designava os diferentes ruídos que vinham do mato. Segundo ele, o mato 'aeiouava', do verbo 'aeiouar'. Ou seja, ele juntou todas as vogais para sugerir que as vozes dos passarinhos tinham todas as tonalidades", explica. A rica linguagem, tanto a inventada como a do sertanejo que habita seus livros, foi a marca registrada da obra de Guimarães Rosa. Esse vocabulário do sertão, às vezes tão distante do Brasil urbano, aguçou a curiosidade da professora. Todos os verbetes não entendidos foram marcados e pesquisados. E assim ela construiu O Léxico de Guimarães Rosa (Edusp, 2001), um dicionário que traz cerca de 7 mil verbetes recolhidos dos livros do autor, 2.700 não dicionarizados. "Provavelmente são invenções dele", comenta Nilce. "Nesses casos, procurei chegar ao sentido mais próximo da palavra, guiando-me pelo contexto em que ela está inserida. Se não achei sentido nenhum, simplesmente pus 'palavra sem explicação'", esclarece. O trabalho consumiu anos de pesquisa e muitas horas de leitura. Entre o início do projeto e sua conclusão foram 20 anos. Por vezes, para encontrar uma palavra, a professora consultava seis dicionários diferentes, sem contar os vocábulos que pediam uma pesquisa em dicionários de línguas estrangeiras. "Grande Sertão: Veredas é o que tem o vocabulário mais rico. Lá está a mais variada mostra do que Guimarães Rosa costumava fazer, que era usar a língua comum a todos e acrescentar as alterações próprias da linguagem popular, sobretudo, do sertanejo", diz. Ela cita alguns exemplos. "Em vez de orvalho, ele escreve aroalho. Em vez de responder, arresponder. Mas há também situações em que palavras cultas estão na boca do sertanejo. É o caso de "escurril", que significa ridículo, bobo. "Essa expressão foi usada pelo Riobaldo em um diálogo com Zé Bebelo no Grande Sertão", conta a professora. A linguagem de Guimarães Rosa é o que mais afugenta leitores desprevenidos ou, ao contrário, prevenidos demais. "Não há o que temer", garante a professora. "Há um certo exagero no que diz respeito à dificuldade do texto rosiano", acredita ela. Pelo bem ou pelo mal, o glossário de O Léxico de Guimarães Rosa funciona como um apoio e tanto aos novatos. Afinal, o escritor e a língua eram como "um casal de amantes, que juntos procriavam apaixonadamente, mas a quem tinha sido negada a bênção eclesiástica e científica", afirmava o próprio Rosa.



A seguir alguns exemplos da invenção do autor:
AEIOUAR - "O mato - vozinha mansa - aeiouava." Significado: emitir sons variados. Palavra inventada, que não consta em dicionários.
GOÉCIA - "Por certo, ele praticaria a goécia, comunicava-se com o antro dos que não puderam ser homens." Significado: encantamento, enfeitiçamento. Do grego, goeteía.
FRATERNURA - "Amálgama de irmãos é ternura." Significado: ternura de irmãos. Palavra inventada, que não consta em dicionários.
SORRIUZINHO - "Ela sorriu, sorriuzinho." Significado: o sufixo aqui foi acrescentado para sugerir que quem sorriu, o fez de forma meiga.
TUTAMÉIA - "Por conta de tropeiros de Urucuia-a-fora não terem auxiliado de abrir a tutaméia de um saquinho de sal, nem de vender para os dali..." Significado: pequena porção, bagatela.

 

 

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