Música no ar
Presentes tanto no universo erudito quanto no popular, os instrumentos de sopro ajudam a compor a identidade sonora da produção brasileira
Na mitologia grega, os instrumentos de sopro aparecem como coadjuvantes de mirabolantes histórias envolvendo deuses da Grécia antiga. Um desses mitos conta que um dos primeiros tipos de flauta - conhecida dos brasileiros como pífano - foi invenção de Pan, divindade metade homem metade bode. O deus era apaixonado por uma ninfa e, por isso, vivia perseguindo a jovem, até que ela, assustada pela aparência grotesca da criatura, pediu aos céus para ser transformada em planta. Mesmo triste por ter perdido sua amada, Pan percebeu que o grupo de caniços nos quais a ninfa tinha se tornado produzia um som suave e de extrema beleza quando tocado pelo vento. Com astúcia, Pan cortou os canudos em vários tamanhos e os uniu com cera. A história, de tempos imemoriais, atesta os muitos séculos em que flautas e companhia têm sensibilizado ouvidos humanos.

Nesse tipo de instrumento, o som é produzido pela emissão de ar dentro de um tubo. A altura do som depende do tamanho e da temperatura desse objeto cilíndrico, e pode ser regulada pela abertura ou pelo fechamento dos orifícios existentes ao longo dele. Podem ser feitos de madeira ou de metal. Entre os primeiros, temos a flauta e o flautim, que nas orquestras são tradicionalmente incluídos no grupo das madeiras, embora atualmente sejam fabricados também de metal. Há ainda o oboé, o clarinete, o clarinete-baixo, o fagote e o contrafagote. Entre os metais, estão o trompete, o saxofone, a trompa, o trombone e a tuba. Segundo o músico e produtor Benjamin Taubkin, uma das principais características dos instrumentos de sopro é sua versatilidade, a capacidade de garantir presença harmoniosa nos mais diversos estilos musicais. "Do pife do Nordeste à flauta do choro, passando pelos metais das orquestras e bandas sinfônicas", explica. E segue listando: "da bossa nova aos grupos instrumentais de hoje; das orquestras de frevo, que desenvolveram uma linguagem muito própria para esses instrumentos, às big bands brasileiras, que vêm construindo um vocabulário para essa formação".

Um Sopro de Brasil Essa versatilidade aliada à criatividade do artista brasileiro só podiam resultar em muita diversidade musical. "Grande parte de nossos músicos de sopro sofreu bastante influência das bandas do interior", explica Myriam Taubkin, idealizadora da série de shows Um Sopro de Brasil, sétima etapa do Projeto Memória Brasileira, realizada em 2004 no Sesc Pinheiros, com a participação de músicos consagrados como o saxofonista e clarinetista Paulo Moura e o flautista Altamiro Carrilho. "Uma escola maravilhosa que trouxe a experiência de ouvir, de tocar junto, de diferenciar sonoridades, de escolher qual o melhor instrumento para cada um, de treinar repertórios diversos, de aprender a acompanhar partituras." As apresentações de 2004 originaram livro, CD e DVD homônimos, com lançamento marcado por shows ocorridos no final de maio também no Sesc Pinheiros. Um registro definitivo do jeito brasileiro de tocar a flauta, o trompete, o sax, o clarinete e tantos outros exemplos da categoria. "O artista do sopro é o soldado da música, o que está sempre apto a entrar em cena e executar. Um Sopro de Brasil deixa muito clara a disciplina do instrumentista de sopro, o aprendizado sobre o momento do solo e a execução conjunta. Sem perder a musicalidade, a inspiração e a brasilidade", afirma Myriam.
Que jeito é esse? Quem foi aos shows no Sesc Pinheiros ou teve acesso ao CD ou DVD pôde acompanhar o jeito brasileiro de lidar com esses instrumentos. Mas será que dá para explicar? Algumas feras do sopro, participantes do projeto ou não, podem ajudar na empreitada de saber o que o Brasil oferece de singular a esse universo.
O flautista Toninho Carrasqueira, que já tocou de Pixinguinha a Mozart e fez parte do Quinteto Villa-Lobos, afirma que para entender essa particularidade vale recorrer ao modo brasileiro de fazer música - esse, sim, inconfundível. "Tem a ver com a dicção na hora de cantar, com a pronúncia, um jeito de falar. E para o instrumentista é também um gesto rítmico, coreográfico. É aquele jeito próprio de dançar, de andar, de gingar... De jogar bola", compara.
Já para o saxofonista e também flautista Teco Cardoso - presente no CD Um Sopro de Brasil - é fácil traduzir essa qualidade: "Com a diversidade estética que tem o Brasil, a gente pode localizar muitas maneiras e linguagens específicas para os instrumentos de sopro", analisa. "Das flautas de caboclinhos aos pifes do Nordeste, do sax melodioso e chorão do choro ao sax mais agressivo do samba-jazz, passando pelo superarticulado do frevo, cada manifestação demanda certas peculiaridades na execução e interpretação. Isso associado a uma forte tradição auditiva que leva a um autodidatismo superior a qualquer aprendizado acadêmico. Tudo isso acaba proporcionando a cada executante uma maneira bastante peculiar de tocar."
Também saxofonista, Mané Silveira ilustra a particularidade do "sopro brasileiro" citando o amigo baterista, percussionista, clarinetista e saxofonista José Alves Sobrinho, o Zezinho Pitoco. "Ele toca sax e clarinete de um jeito bem brasileiro", conta Mané. "Ele é natural de Cupira, em Pernambuco, e teve uma formação musical totalmente brasileira, ou seja, frevo, choro, samba, baião, e por aí vai. E qualquer músico brasileiro que se interesse pelo universo da cultura musical brasileira e se deixe influenciar por ela vai tocar de um jeito brasileiro."
Segundo o multiinstrumentista Renato Farias, que já tocou com a banda de rock Titãs, com a sambista Elza Soares, e participou da versão brasileira do musical Chicago, esse jeito brasileiro é considerado até mesmo místico por muitos músicos estrangeiros. "Fui tocar na Rússia, Estônia, Bélgica, Itália, Espanha e mais outros países da Europa e eles dizem: 'Para nós é difícil desvendar que jeito é esse de vocês brasileiros tocarem'. O que mais ressaltaram foi a nossa liberdade com um instrumento na mão."

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