Postado em 09/03/2005
A saga dos norte-americanos sulistas que vieram para o Brasil
MOACIR ASSUNÇÃO
Oh, dá-me um barco com vela e leme Quão doce é estar a noite toda balançando-se na rede, (Trecho de poema publicado em 18 de março de 1866 no jornal norte-americano "New Orleans Daily Picayune" como parte da propaganda para atrair imigrantes ao Brasil.) |
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O restante da família Norris viria quatro meses depois, com mais 35 imigrantes, no barco a vela Talismam, que partira do porto de New Orleans. Começava nesse encontro a saga da imigração norte-americana para o Brasil - um contingente de cerca de 2,7 mil pessoas, a maior corrente migratória da história dos EUA. O monarca brasileiro tinha muito interesse na vinda daqueles homens, tanto que havia instalado um escritório de imigração em Nova York, sob o comando de Quintino Bocaiúva.
Os campos de algodão dos estados confederados, em conseqüência da guerra, estavam arrasados, e Pedro II queria que os imigrantes repetissem no Brasil o sucesso obtido com essa cultura na pátria natal. Uma certa identificação ideológica entre o Império e o sul dos EUA - escravagista e agrário, em contraste com o norte, industrializado e abolicionista - ajuda a explicar a preferência pelo Brasil. Depois de derrotados, os sulistas viram, com horror, a invasão de suas terras pelos soldados vitoriosos, que destruíram as plantações e também suas aristocráticas fazendas.
De trem, boa parte dos recém-chegados seguiu para Santos e, posteriormente, para Jundiaí. Daí, eles foram para a cidade paulista de Santa Bárbara d’Oeste, onde fundaram a maior comunidade norte-americana do país, dando origem à vizinha Americana - na época Villa Americana -, a 124 quilômetros de São Paulo.
Homem rico, com o ouro que trouxe, o coronel Norris compraria a fazenda Machado e os escravos Manuel e Jorge, aos quais ensinaria inglês, com sotaque sulista. O restante da comunidade só poderia adquirir áreas menores e sobreviveria com mais dificuldade, derrubando a mata nativa para plantar. No início, os recém-chegados conviveriam somente entre si, estranhando a língua, os costumes e até mesmo o aspecto físico dos brasileiros, em geral morenos, corpulentos e baixos, de olhos escuros, em contraste com eles, loiros e de olhos claros, quase todos magros e altos.
Quase 50 anos depois, os norte-americanos se veriam diante de outros imigrantes, que mais tarde seria de supor que viriam a se tornar seus inimigos mortais. Eram russos refugiados da Revolução de 1917 em sua terra, que se instalariam em Nova Odessa, a apenas 5 quilômetros de Americana, onde já viviam compatriotas seus desde o começo do século. Mas, como os norte-americanos não eram ianques e os russos nem de longe simpatizavam com o comunismo, o contato entre as duas comunidades, ambas formadas por agricultores, sempre foi tranqüilo, mesmo nos tempos da Guerra Fria.
Com o passar do tempo, os norte-americanos começariam a se integrar à comunidade local, o que deu origem a algumas situações pitorescas. Uma delas surgiu por conta das sementes de melancia, conhecida como "cascavel da Geórgia", que haviam trazido na bagagem. Por volta de 1890, um surto de febre amarela coincidiu com uma das primeiras safras da fruta, e as autoridades sanitárias vetaram sua venda, por achar que ela transmitia a doença. Foi preciso que o cientista Oswaldo Cruz descobrisse a causa da moléstia para que o comércio da melancia, proibido por mais de uma década, fosse liberado.
Além do algodão de tipo superior ao existente no país, os norte-americanos introduziriam outras novidades na agricultura brasileira, como o arado puxado por animal, em substituição à limitada enxada, e um trole com rodas de metal, que suplantava os pesados carros de boi. Mas foi na educação que eles deram sua maior contribuição, por meio das escolas missionárias e seus schoolmasters (professores) e schoolmarms (professoras). Dos métodos empregados pelos pastores que acompanhavam os imigrantes de Santa Bárbara e Americana surgiu um novo modelo de ensino, que acabou sendo absorvido pelo governo brasileiro - foram abolidos o chamado "decoreba" e os castigos físicos, muito comuns na educação daquele período. A missionária presbiteriana Mary Chamberlain e seu marido, o reverendo George Chamberlain, fundaram em São Paulo a Escola Americana, que daria origem à atual Universidade Mackenzie. Saíram da comunidade também os criadores da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).
Em termos de religião, os norte-americanos introduziriam o protestantismo no Brasil. Foi erguida no Cemitério do Campo, centro espiritual da comunidade em Santa Bárbara, a primeira capela do país que atendia as três denominações - presbiteriana, batista e metodista -, datada de 1878. Na área assistencial, os imigrantes também deram sua contribuição: Pérola Byington (1879-1963) fundou a Cruzada Pró-Infância e o hospital que leva seu nome, em São Paulo.
Pode-se dizer, também, que os confederados ajudaram a criar o rock brasileiro. Rita Lee Jones, co-fundadora dos Mutantes, é filha do dentista Charles Jones, descendente do coronel Norris.
Memória preservada
Até hoje, os descendentes desses imigrantes fazem questão de manter suas tradições. Na propriedade onde está instalado o Cemitério do Campo, em terras que pertenceram ao coronel Anthony Oliver, todo segundo domingo de abril, a comunidade, representada pela organização não-governamental Fraternidade Descendência Americana, se diverte ao som de músicas antigas e danças típicas do rebelde sul, com os rapazes vestidos de soldados confederados e as moças como clones de Scarlett O’Hara em E o Vento Levou. Nessas ocasiões, os carros exibem a bandeira confederada.
Durante a celebração, todos saboreiam pratos típicos, como frango frito, broas de milho, biscuits, pernil, bolos, tortas e refrescos. De vez em quando, eles recebem a visita de "primos" dos estados do sul. Em 1972, um deles, o então governador da Geórgia, Jimmy Carter, visitou o Cemitério do Campo, quatro anos antes de se tornar presidente dos EUA. Sua mulher, Rosalyn, tem um tio-avô enterrado ali. De tão curiosa, a comunidade foi objeto de um estudo do jornalista e ex-cônsul dos EUA em São Paulo, Eugene C. Harter, que escreveu o livro A Colônia Perdida da Confederação, que obteve grande sucesso em seu país.
Allison Jones, relações-públicas da ONG que representa a comunidade, conta que sofreu discriminação em Nova York por causa de seu inglês carregado de sotaque caipira e foi vítima de racismo explícito por parte dos negros nova-iorquinos. No sul, ao viajar em um ônibus com 40 passageiros, todos negros, com exceção dele e do motorista, a sensação foi diversa. "Apesar de brasileiro, me senti em casa e fui bem tratado por todos."
Aluno de história da Unimep e descendente de Richard (Dick) Crisp, um norte-americano que desafiou o racismo da própria comunidade ao se casar com uma escrava negra, Frederico Padovese participou, há cinco anos, de uma experiência que o remeteu ao passado. Por meio de um convênio da Fraternidade com a ONG Sons of Confederate Veterans (Filhos dos Veteranos Confederados, ou SCV, na sigla em inglês), sediada na Virgínia, ele integrou um batalhão confederado na recriação da Batalha de Gettysburg, na Pensilvânia, ocorrida em julho de 1863. Em meio a canhões e armas da época, ele dormiu em barracas e comeu o insosso rancho de campanha.
O universitário diz que sente orgulho de sua origem, mas o sentimento não é dirigido aos Estados Unidos como um todo, e sim ao sul do país. "Quando ouço falar do imperialismo norte-americano, digo que a Guerra de Secessão foi a primeira investida imperialista dos EUA, no caso contra uma parte de seu próprio povo, que queria a separação por discordar do governo central", afirma. Até hoje, boa parte dos descendentes de imigrantes se referem a si próprios como confederados e aos norte-americanos do norte como ianques, o mesmo apelido dado aos habitantes daquela nação por seus adversários, entre os quais se encontram integrantes de correntes de esquerda e militantes antiglobalização.
Velhos tempos
Saudável e ativa aos 88 anos, Maria Weissinger da Cruz é uma das mais velhas descendentes de norte-americanos em Santa Bárbara. Seu avô, John Wesley Weissinger, ao chegar, em 1866, ganharia de cara o apelido de "João do Mato", pois os brasileiros tinham dificuldade de pronunciar seu nome.
Com forte sotaque caipira, dona Maria, como é conhecida, traz nos traços a marca da origem anglo-saxônica. As principais lembranças de sua juventude são os bailes, praticamente freqüentados apenas por gente da comunidade. "As festas, muito divertidas, eram realizadas sempre na fazenda de alguém da colônia. As moças faziam de tudo para ir", conta ela.
Numa visita à cidade, dona Maria, que na época vivia na fazenda Palmeiras, conheceu o português João da Cruz, que se tornaria, contra a vontade da família, seu marido. O pai, Albert, queria que os filhos se casassem dentro da comunidade. Na hora da cerimônia, o padre, que não queria oficiá-la porque a jovem era presbiteriana, foi surpreendido. "Pouco tempo antes, eu havia me convertido ao catolicismo, e mostrei o documento a ele, que ficou desconcertado", conta. O pai - que ainda teria de amargar o fato de os três outros filhos se casarem com uma brasileira, uma alemã e uma italiana - apareceu no dia seguinte e pediu desculpas.
Os brasileiros diziam, de acordo com ela, que a cadeia da cidade, inaugurada em 1896, seria usada para prender os norte-americanos. É que alguns, ricos e com fama de desordeiros, entravam nos bares a cavalo e pediam pinga, que bebiam sem desmontar. Outros, principalmente os texanos, saíam às ruas e descarregavam para o alto seus revólveres, como se estivessem no Velho Oeste. Hoje, o antigo prédio abriga o Museu da Imigração.
Discriminação
O racismo, embora se manifestasse sem a violência que o caracterizou no sul dos EUA do pós-guerra, era outra marca da comunidade. Há, no entanto, poucos registros de norte-americanos que maltratavam escravos. João do Mato tinha dois, Manuel e Anastácia, com os quais mantinha um ótimo relacionamento. Edwin Britt chegou a deixar suas terras para um escravo. Ainda assim, Dick Crisp, que teve dez filhos com a escrava Damiana, sofreu discriminação por parte de seus compatriotas.
Num episódio ocorrido em 1873, entretanto, retratado no livro Soldado Descansa!, de Judith Mac Knight Jones, três jovens da comunidade - Napoleon Mc Alpine, Robert Mac Fadden e Dick Crisp - enforcaram um escravo que havia assassinado, a golpes de enxada, o coronel Oliver, dono da área do Cemitério do Campo. O fazendeiro o flagrara furtando batatas e, com o mesmo instrumento que cavava, o homem o matou.
Revoltados, os jovens confederados, que traziam na memória crimes semelhantes ocorridos em sua terra natal, enforcaram o escravo e o deixaram pendurado em uma árvore da própria fazenda de Oliver. Os três fariam, então, um pacto segundo o qual jamais se denunciariam. Somente depois de todos já estarem mortos é que os nomes foram revelados. A história lembra as tenebrosas ações da Ku Klux Klan nos EUA do pós-guerra.
Se há, porém, algo que os descendentes dos imigrantes não aceitam é a interpretação de que seus antepassados, ao virem para cá, pretenderiam, de alguma forma, ajudar a perpetuar a escravatura no Brasil. "Quando os confederados chegaram, a escravidão já estava em declínio no país e seria abolida, pacificamente, em 1888", afirma Daniel Carr de Muzio, um dos mais ativos membros da comunidade.
Opinião semelhante tem a ilustre descendente de um capitão confederado que se instalou no Rio Grande do Sul, a juíza Ellen Gracie Northfleet, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), bisneta de Hamlin Lassiter Norfleet. Apoiada na visão de alguns historiadores contemporâneos, ela considera que a Guerra da Secessão foi, na verdade, motivada muito mais pelo embate entre duas idéias econômicas do que por questões raciais, que seriam apenas parte da explicação para a origem do conflito. "Meu bisavô jamais teve escravos ou fez qualquer manifestação de cunho racista", explica.
Em tempos mais modernos, o ano de 1998 reservaria à comunidade uma derrota, bem menos dura, é claro, do que a de 1865. Naquele ano, a cruz de Santo André (em forma de "x") foi retirada do brasão de Americana e substituída pela do padroeiro Santo Antônio. "Os italianos pediram a troca, por achar que o símbolo salientava muito os norte-americanos e sobrava pouco para eles", explica Eloísa Nascimbem Jones, mulher de Allison.
O Brasil no conflito
Embora tenha declarado neutralidade, o Brasil nunca conseguiu disfarçar sua simpatia pelo sul dos EUA. Segundo o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, em seu livro Presença dos Estados Unidos no Brasil, nosso embaixador nos EUA, Miguel Maria Lisboa, temia que o movimento abolicionista naquele país se alastrasse e chegasse até aqui. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Magalhães Taques, reconheceu o estado de beligerância, admitindo a existência naquele período de duas nações nos atuais EUA. Por conta da posição brasileira diante da guerra, os dois países chegaram a suspender por duas vezes suas relações diplomáticas.
O embaixador norte-americano no Brasil, general J. Watson Webb, acusou o país de quebra de neutralidade em favor do sul, porque os navios sulistas encontravam, ao contrário dos nortistas, uma boa acolhida em portos brasileiros.
Em outubro de 1864, um cruzador do norte dos EUA capturou na Bahia um navio confederado. O Brasil protestou contra a violação de suas águas territoriais, e o secretário de Estado norte-americano, William H. Seward, chegou a dizer que se o país continuasse a proteger os navios sulistas seria preferível declarar-lhe guerra. Pouco tempo depois, os norte-americanos pediriam desculpas pelo incidente, e o Brasil, então, passou a reconhecer somente o governo central dos EUA.
Os temores de nosso embaixador se confirmariam posteriormente. Com a abolição da escravatura nos Estados Unidos, o Brasil, que era o último país, além de Cuba, a manter escravos, começaria a sofrer grandes pressões internas e externas para libertá-los. Um jovem baiano estudante de direito, Castro Alves, publicaria vários poemas em jornais republicanos exigindo o fim da escravidão. Em 1871, o próprio imperador abordaria pela primeira vez o tema da libertação dos escravos na Fala do Trono - uma espécie de prestação de contas do governo ao Congresso. Até que, em 1888, sua filha, a princesa Isabel, assinaria a abolição da escravatura.
Uma guerra sangrenta
A Guerra da Secessão, deflagrada nos Estados Unidos no início de 1861, foi conseqüência de décadas de desentendimentos e disputas pelo poder que culminaram na decisão de 11 estados do sul do país (Alabama, Arkansas, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Louisiana, Mississípi, Tennessee, Texas e Virgínia) de se separar da União e formar outra nação, os Estados Confederados da América. Na raiz do problema estavam questões comerciais e tarifárias, mas principalmente a escravatura, da qual dependia a competitividade no mercado externo dos produtos agrícolas sulistas, em especial o algodão, vital para a indústria têxtil inglesa.
O conflito armado - no qual tomaram parte cerca de 4 milhões de soldados e que deixou mais de 600 mil mortos - começou em 12 de abril de 1861, na Carolina do Sul, quando tropas confederadas atacaram o Forte Sumter, e terminou em 1865, com a rendição dos generais sulistas Robert Lee, em Appomattox, a 9 de abril, e J. E. Johnston, em Greensboro, a 26 de abril.
Havia significativas diferenças entre os beligerantes. Os estados e territórios do norte, onde viviam 23 milhões de pessoas, além de fabricar os próprios armamentos, tinham uma poderosa esquadra e melhores condições de repor as perdas de batalha. O lado confederado, de economia rural, com população de 9 milhões de habitantes, dos quais cerca de 3,5 milhões eram escravos, dependia de armas compradas no exterior. Com a derrota dos sulistas, o poder central da União se fortaleceu, a escravidão foi abolida e importantes mudanças sociais e econômicas foram implantadas no país.