Postado em 01/01/1999
Um obsessivo interesse pelo detalhe era a principal característica de Ken O Casey. Em contrapartida, o conjunto se esbatia frouxamente em seu cérebro, onde uma percepção fragmentada do mundo era responsável por um acervo de imagens, formas e conteúdos sem nexo, que a mente de Ken classificava e arquivava sem muita diligência, ou tolerância.
Assim é que naquela tarde, em que encontraria White para um assunto delicado, dizendo respeito a impostos atrasados (seus, evidentemente, jamais de White), na Lombard Street, lado oeste, decidiu, para revigorar suas energias abaladas pela injeção de desânimo que lhe aplicara White, visitar a filha Dorothy que, de acordo com seus duvidosos cálculos, estava no oitavo mês de gravidez. Dorothy morava não muito longe dali, na Summer Street, lado sul, e a idéia de lhe fazer uma surpresa entusiasmou-o.
De fato, entre o fisco com suas impertinentes exigências e a visão cheia de ternura de um netinho que teria o mesmo queixo arredondado, as mesmas bochechas estufadas como nádegas e os mesmos dentinhos de rato, plantados espaçadamente na boquinha gulosa; entre essas visões, uma atropelando a outra na disputa por um espaço exclusivo nas projeções mentais de Ken, ele titubeava, ziguezagueando pela rua sem saber se ia ter com White para enfrentar o fisco, ou visitava Dorothy, para imaginar com mais conforto e muito menos esforço os traços faciais do neto. Decidiu pela última.
Caminhando como um aloprado pelas ruas de bairro, tomou primeiro a Arnott, depois a Martz Vernon à esquerda, descendo na direção da Daniel (quando deveria ir em frente, sempre subindo); cruzou por esta última a Clanbrassil Lower, tomou a Malpas, subiu, enfim, a Blackpitts, atravessou o vitoriano mercado de Dublin como um pássaro em fuga, sem nem mesmo, como seria o caso, parar para comprar uma lembrança para a filha, ou simplesmente contemplar a estrutura de ferro do edifício, adornando a alvenaria com toda aquela arrogância que estilo vitoriano tem.
No solo, como numa feira, barracas se distribuíram, oferecendo, em seus velhos cabides, tecidos bordados à mão, chapéus de casamento, guarda-chuvas e bengalas; colares e bolsas de miçangas. Nas prateleiras, peças de latão, velhos acessórios de cozinha e de lareira e mais cabides com roupas de segunda mão, vestido de noiva, lenços e colchas, coletes com madrepérolas, estolas, revistas velhas, do tempo em que Ken era apenas um gordo e relapso estudante.
Embora seus olhinhos saltassem afoitos pelas cores e cintilações da feira, numa espécie de visão embriagada e narcotizada; e embora os feirantes lançassem da direção de Ken apelos formidáveis para que interrompesse sua caminhada e despendesse alguns segundos apalpando os artefatos, esse mundo indefeso das futilidades, Ken não deu ouvidos a ninguém. Fustigando pela pressa, avançou inabalavelmente mercado adentro.
Repentinamente, Ken viu-se fora do mercado, já na Castle Market Street, em frente a um moderníssimo café com mesas capengas do lado de fora e cardápio escrito com batom verde na janela em arco.
Uns tipos obviamente irlandeses, imitando os tipos ingleses da Picadilly, encararam Ken do mesmo modo que Dorothy o fazia quando Ken incursionava ao quarto da filha, ainda solteira, na tentativa de convencê-la a acompanhá-lo ao jantar mensal da associação dos geólogos, em Sandycove.
A despeito de recordarem a presença arrogante de sua filha, ou justamente por causa disso, Ken reduziu a marcha, olhou para o fundo da Castle Market e, subitamente, o apartamento de Dorothy ficou distante demais, inacessível demais. Sem saber exatamente que atitude tomar, Ken decidiu ocupar uma mesa vaga, junto à parede do café, pedindo uma garrafa de Cuvée Borie, vinho ordinário, engarrafado por algum inescrupuloso comerciante francês e consumido em pequenas garrafas por toda a cidade.
Com sua natural obsessão, agora mais ainda estimulada pela necessidade de desviar os olhos daquele grupo tão pouco receptivo, Ken passou a fisgar, com seus olhinhos de lebre, os inúmeros cartazes, avisos e anúncios que congestionavam a rua. Bistrôt, Mixed Salads, Roberts Coffee Bar, Part Two, La Moselle, Zoe e, finalmente, o ano de 1899, inscrito sobre um pórtico, em estilo gótico.
Os glóbulos de Ken OCasey saltavam de uma inscrição a outra, enquanto na sua mente ainda emulavam a prazerosa promessa de ser avô (não tão virtualmente vencedora como antes) e a sempre derrotada e diabólica realidade de suas distraídas declarações de renda.
Seus dedos, enquanto isso, experimentados por anos de guloso exercício gastronômico, faziam girar lentamente a taça de vinho de modo que minasse água nos cantos da boca de Ken, mecanismo que deflagrava de uma vez suas aspirações etílicas, concentrando-as, também obsessivamente, no copo de vinho que tinha sob as vistas.
Ken esmagou a taça com os dedinhos glutões e levou-a até a boca. Um fio arroxeado se desenhou no canto esquerdo dos lábios, causando-lhe suave cócega na comissura.
Atento ao prazer que mais o reconfortava, Ken não se deu conta de que a maioria das pessoas que atravessavam a Castle Market naquele momento estavam vestidas de preto - seus rostos acinzentados por uma maquiagem propositalmente excessiva e fúnebre. No entanto, essas pessoas traziam os lábios pintados de vermelho, o que sugeria que aqueles homens, mulheres e crianças se dirigiam a alguma festa ou mesmo a alguma representação teatral.
Se Ken se detivesse a examinar seu redor, por certo se espantaria com a presteza com que o agrupamento se movimentava através da pequena rua, e como o caudal humano, demonstrando um extraordinário poder de organização, rapidamente se expandia. O denso formigueiro agora ocupava inteiramente a pequena Castle Market, enquanto mais gente convergia para o negro desfile, vindade todas as direções e tornando ainda mais caótico e compacto o agrupamento mágico.
Ken trajava calças azuis, camisa branca com punhos cor-de-rosa; ostentava uma gravata borboleta de motivo clássico com fundo vermelho e tinha sobre o colo um simpático chapéu de caça verde-garrafa, com uma pena de perdiz plantada no lado direito.
Ricardo Daunt é escritor e crítico literário, autor de Blake versus Claude, entre outros livros