Postado em 01/01/1999
O urbanismo nos remeteu, finalmente, à democracia completa. Ironia? Nem tanto. É só pensar nas ruas de São Paulo e nos veículos que as entopem. Do ônibus ao carro de luxo todos estão parados. A partir dessa triste alegoria, a urbanista Raquel Rolnik critica o modelo urbanístico de São Paulo e atesta a impossibilidade dos habitantes desfrutarem de lazer. A situação presente deve-se a políticas urbanas inadequadas que nos perseguem há 70 anos, concentrando oportunidades no eixo sudoeste da cidade e exportando a pobreza. Sinônimo de qualidade de vida, os condomínios fechados, acessados apenas por automóveis, ensejam o individualismo exacerbado à medida que não tencionam colocar a população em contato direto. Para a urbanista, o lazer e a qualidade de vida dependem intimamente da democracia espacial e do contato imediato dos paulistanos
Qual a relação entre lazer e urbanismo?
É total. A primeira questão é definir o lazer como uma dimensão prazerosa do cotidiano. Se formos entender lazer como parte da vida, assim como o trabalho, a qualidade e o desenho da cidade ou, em termos técnicos mais precisos, o ambiente construído é fundamental para a sensação de prazer ou de desprazer. Os habitantes de São Paulo têm uma noção muito clara do enorme desprazer que sentimos na cidade. Ela é uma expressão de como um ambiente construído pode ser extremamente desprazeroso e provocar nas pessoas uma sensação desagradável. Ou seja, o estresse e o nervosismo dependem da qualidade do ambiente construído. Se compararmos São Paulo com o Rio de Janeiro, além da presença da praia e da orla, elementos fundamentais para definir qualidade de vida, o urbanismo carioca durante 100 anos investiu na qualidade dos espaços construídos, extremamente prazeroso para os habitantes da cidade.
O lazer vinculado ao desenho urbanístico da cidade?
Exatamente. Porque mesmo se definirmos o lazer como o tempo no qual não se trabalha, o tempo despendido em ir e voltar do trabalho, por exemplo, pode ser fruído e entendido como parte do lazer ou como um tempo perdido, de desgaste e desprazer enormes. A cidade é o abrigo do tempo livre. É o espaço onde ele vai acontecer. E, dependendo de como for esse espaço, o tempo livre será voltado para o prazer ou para o estresse e para o desgaste.
A senhora deu como exemplo a cidade de São Paulo, o que faz surgir uma pergunta inevitável: há condições de melhorá-la?
Sem dúvida nenhuma. A péssima condição atual da cidade, do ponto de vista urbanístico, não é fruto do acaso, porém de más políticas urbanas. Também não é fruto da falta de planejamento: São Paulo teve planos, e projetos e políticas urbanas importantes que definiram a estrutura que temos hoje. O estado atual da cidade foi decorrência de decisões, de políticas e de projetos. Com isso eu quero dizer que outras decisões, outras políticas e outros projetos poderiam e podem, de fato, reverter o quadro de deterioração em que a cidade se encontra, sem dúvida nenhuma.
O modelo atual, que privilegia o tráfego individual em detrimento do transporte coletivo é apontado por muitos como o grande vilão da péssima qualidade de vida de São Paulo. A senhora concorda?
Claro! São Paulo, no começo do século, era a São Paulo dos trilhos: trens, para as ligações intermunicipais e bondes, para as ligações locais. Essa cidade era densa, compacta, inteirinha circulada por transportes coletivos. Até 1914, por exemplo, o transporte coletivo dos bondes chegava em todos os pontos ocupados da cidade. Com isso, mesmo os bairros operários, as vilas operárias, os cortiços e habitações populares eram super densas... Nos anos 20 se opta por avenidas radiais, saindo do centro em direção às periferias, entre elas a 9 de Julho, a 23 de Maio, Radial Leste etc. O modelo de cidade que está contido nesse processo se expande em periferias, ensaia-se uma cidade rarefeita, realizada para o uso do automóvel. Nos anos 30, a cidade se expandiu numa periferia super-rarefeita com a queda da densidade habitacional da cidade. Com isso, as atividades econômicas, culturais etc. se concentraram no centro e no setor sudoeste, habitado pelas elites. Esse modelo obriga as pessoas a se deslocarem diariamente em direção a esses centros para voltar no fim do dia, causando o colapso de circulação. O movimento concentrador foi responsável por detonar esse centro sudoeste e inviabilizou a circulação da cidade como um todo. Entretanto, outras políticas poderiam descentralizar esses centros e investir em transportes coletivos de massa, retomando o trilho, o que é totalmente factível na cidade de São Paulo.
É o projeto urbano que determina que as pessoas se espalhem ou o contrário?
Uma política urbana não é apenas realizada a partir de um projeto de investimento, no caso, um projeto de investimento no sistema viário. Mas é feita a partir de um conjunto de políticas. Em São Paulo a regulamentação urbano concentrou quase todas as oportunidades num espaço super-restrito que já possuía boa infra-estrutura, valorizando a região. Com isso, exclui-se a possibilidade de acesso da população de menor renda e exporta-se a pobreza para uma escala macrometropolitana. Portanto, a concentração de riqueza e consequente exclusão dependem intimamente da política de regulação, da legislação urbana, da definição dos equipamentos de poder e de localização desses equipamentos. Instalar a sede da Prefeitura no Ibirapuera informa que ali é o centro da cidade. Por outro lado, deslocá-la para o Parque Dom Pedro, desloca-se o eixo da centralidade. A política do Sesc, por exemplo, que instala os equipamentos culturais longe dos centros de poder é muito determinante nesse fluxo. O Sesc poderia seguir a tendência da maior parte dos equipamentos públicos e da maior parte das decisões empresariais e concentrar os equipamentos no centro sudoeste, mas, ao preferir Itaquera, Belenzinho, Santo Amaro, Interlagos, descentralizam-se as oportunidades, a entidade interfere na política urbana. Não são apenas as políticas governamentais, mas as decisões dos investimentos privados interferem no processo.
Do modo como a senhora fala, esse modelo é equivocado. Mas ele é equivocado há 70 anos, por que nunca existiu movimento em sentido oposto?
As elites dominaram os rumos da política urbana até hoje. A administração Maluf é uma expressão muito clara disso. As outras partes da cidade têm uma representação pífia. É uma questão de poder. No começo dos anos 80 houve uma tímida reversão do panorama dominante, com o surgimento da Associação Viva o Centro e da influência maior das associações de bairro, além da atuação mais incisiva de alguns vereadores. Mas estamos convivendo com um fato novo: chegamos em um momento que todos perdem. Até os anos 70, havia um pedaço da cidade dotada de alta qualidade. Nos anos 90, conseguiram deteriorar tudo. Finalmente, o congestionamento é a única instituição democrática, ficamos todos presos nele. Uns nos seus Mercedes com ar condicionado e outros enlatados dentro das lotações. Todo mundo parado. Chegamos num momento em que a idéia de você sustentar a qualidade de vida para poucos e defendê-la do resto mostrou-se inviável na cidade, isso leva a um momento em que as pessoas estão dispostas a aceitar discussões de mudança de paradigmas.
Como as políticas públicas interferem no processo urbanístico?
Quem define o rumo dos investimentos privados é a ação do poder público. Ainda que hoje ele possua menos recursos para investimentos diretos, sua ação abre oportunidades para investimentos privados. O orçamento da cidade de São Paulo fica em 3,5 bilhões de dólares por ano, a aplicação dessa quantia informa os investimentos privados.
Qual a responsabilidade da Administração Pública no modelo atual, que garante infra-estrutura urbana para poucos e a segrega da maioria?
Esse é o modelo em São Paulo. E foi exacerbado e radicalizado. Seu reflexo final são os condomínios fechados, realmente fechados. Com a deterioração geral do Estado e, sobretudo, dos espaços públicos da cidade, os condomínios fechados tornaram-se sinônimo de qualidade de vida, além de terem sido estabelecidos como uma nova mercadoria no mercado imobiliário. Mas a verdadeira noção de qualidade de vida está no panorama oposto, ou seja, em espaços onde há mistura. Mistura de gente e de grupos sociais. A heterogeneidade dá vida para a cidade. Se uma pessoa caminhar do centro para a Paulista, da Paulista para a Faria Lima, da Faria Lima para a Berrini e Marginal Pinheiros verá que os novos projetos são a negação do espaço público. Eles são totalmente privados e fechados. A única condição necessária é serem acessíveis por automóveis. São absolutamente homogêneos. Não há mistura, porque a mistura está no espaço público: na dimensão pública da cidade. A heterogeneidade é a natureza da cidade.
E quem tem consciência disso?
Quais são os lugares mais vivos da cidade de São Paulo? Onde acontecem coisas? Onde é gostoso estar? Nos espaços públicos. O Parque do Ibirapuera, por exemplo, sede de todas as tribos. A Avenida Paulista ferve, é um lugar vivo, intenso. Os lugares abertos em que acontece essa mistura são os lugares vitais da cidade. As pessoas se expressam apropriando-se desses espaços. Eu quero mais Ibirapueras, eu quero mais Sescs, eu quero mais Avenida Paulistas. É raro se ouvir falar em violência no Ibirapuera. E lá é aberto, entra qualquer um. Por outro lado, a obsessão por segurança está em Alphaville.
Esse movimento de reaproximação das pessoas desencadearia, por si só, melhores condições de qualidade de vida?
Resolver o problema de oportunidades econômicas é fundamental para as pessoas encontrarem um meio de vida para si e para suas famílias. Do mesmo modo que é preciso melhorar a qualidade do espaço urbano. Para que isso ocorra precisamos derrubar esses "muros de Berlim" que circundam a cidade. Pois somente procedendo de maneira democrática é que vamos salvar a qualidade que ainda restou. Creio que seja uma questão de políticas simultâneas, por isso que uma política urbana não pode ser só uma política de obras e investimentos em urbanismo, ela tem de ser também uma política social, educacional. de geração de empregos e que garanta segurança, enfim, deve ser uma política cultural. São Paulo está no fio da navalha entre virar a grande metrópole, uma das megacidades do hemisfério sul, dotada de potencial de crescimento econômico muito grande ou entrar num buraco sem fundo do caos econômico, perdendo e perdendo, esvaziando e esvaziando.
Mas uma política cultural setorizada, que realmente deixe algum tipo de resíduo, não seria mais eficaz?
Existem os dois lados: os eventos e uma política cotidiana, enraizada nos lugares, que permite que as pessoas se transformem em produtores culturais e não somente em espectadores. Mas o que estou tentando mostrar é que há um sinal de vitalidade, de dinamismo econômico e de mercado cultural fortíssimo, mesmo com a deterioração recorde da cidade. Ou seja, as duas tendências estão colocadas muito claramente no espaço. É preciso pensar para aonde nós vamos. Apostar na exclusão total ou investir na retomada da urbanidade, da qualidade, perfeitamente possível.
A senhora possui um projeto nesse sentido?
Sim, eu penso a cidade, penso o que precisava ser feito. A cidade tem muito dinheiro. Na verdade, existe patrimônio para financiar uma nova operação de transformação urbana. Contudo, não há nenhuma iniciativa pública para criar sinergia com o setor privado para se reordenar o investimento em função de se criar um espaço público democrático que apraze as pessoas. Porque, em São Paulo, para você chegar em um lugar onde se possa descansar, você já se acabou para ir e já se acabou para voltar.