Postado em 01/12/2004
Contador de histórias
O escritor Marçal Aquino revela de onde vêm suas instigantes tramas e fala de sua ligação com o cinema e o jornalismo
Marçal Aquino nasceu em 1958, em Amparo, cidade do interior paulista. Mas reza a lenda que seu nome foi “achado” lá no interior do Maranhão. “Dizem que meu pai correu o dedo no calendário religioso e parou num tal São Marçal, por incrível que pareça, cultuado e festejado no Maranhão com uma festa enorme”, afirma um dos mais aclamados escritores da chamada Geração 90, parceiro de Beto Brant em filmes de sucesso, como O Invasor (2001), Ação entre Amigos (1998) e Os Matadores (1997). “Já que havia esgotado a lista de nomes possíveis – sou de família numerosa e todos os meus irmãos têm nomes duplos –, ficou sendo esse. Acho que foi mais pela sonoridade mesmo.” Não é possível esperar uma simples resposta vinda de Marçal, mesmo se a pergunta for das mais simples, como “qual a origem de seu nome?”. Para ele tudo vira história, e das boas. Algumas delas o autor contou com exclusividade à Revista E, como as curiosidades que costumam rondar os bastidores da vida de um escritor. A seguir os melhores trechos.
Inclinação policial
“Como leitor, sempre tive um apreço especial pelo gênero policial, mas acredito que o fato de ter atuado como repórter nessa área aguçou ainda mais meu interesse em contar esse tipo de história. Foi uma experiência definitiva. É um gênero que me interessa na mesma proporção que interessam outras miradas, que não a policial, e isso tem sido uma constante no que escrevo. Existem algumas características, aliás, que têm sido constantes na minha obra. A ironia é uma delas, está sempre presente nos títulos e também no próprio desenvolvimento dos personagens e tramas das minhas histórias.”
Nem referências nem influências
“Acho complicado falar em referências, da mesma forma que em influências. Penso que tudo que li – e de que gostei – me marcou e deixou sinais no que escrevo. Isso vale para os clássicos e também para os contemporâneos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Ler, para mim, é fundamental. É uma espécie de oxigenação, uma troca. Ler é o que me impele a escrever.”
Jornalismo, cinema e literatura
“São prazeres diferentes. Gosto de cada coisa que faço, cada uma de uma maneira. Obviamente, o que mais me interessa sempre é a literatura. Acredito que é a minha casa. Mas faço com prazer tanto o jornalismo quanto os roteiros para cinema. É uma questão apenas de adequação de linguagens. Mas minha grande paixão sempre foi e continua sendo a literatura. Já o cinema entrou na minha vida quando, em 1991, o Beto Brant, que não me conhecia, me procurou para falar de um conto que queria transformar em um curta [o conto era Onze Jantares, publicado originalmente no livro As Fomes de Setembro, Estação Liberdade, 1991]. O curta acabou não se concretizando, mas nesse contato descobrimos afinidades literárias, cinematográficas e de amizade, e estabelecemos um diálogo que perdura até hoje, quando estamos chegando ao quarto longa juntos, Crime Delicado, baseado num livro de Sérgio Sant’Anna, e que o Beto acaba de rodar aqui em São Paulo.”
Universo da criação
“É insondável. Pode nascer de um diálogo que ouço e que me deixa intrigado. Pode surgir de um personagem visto na rua, para o qual começo a bolar uma ‘biografia fictícia’. Posso pensar por acaso num título que acho bacana, anotá-lo e depois esperar por uma história que se encaixe. E isso já aconteceu. Foi o caso de Renda-se, Bob Mendes, Você Está Cercado, conto publicado no livro O Amor e Outros Objetos Pontiagudos, de 1999. Eu tive a idéia desse nome dois anos antes de escrever o conto. Também posso ler algo que me leve a escrever. Pode ser que veja um filme que me provoque alguma história. Enfim, são processos muito variados, incontroláveis. E olha que não acredito em inspiração como ela é vista de modo clássico. Acredito em trabalho, em sentar e escrever. Idiossincrasias: escrevo à mão, em cadernos. Quando se trata de literatura, é sempre assim. Tenho então uma versão manuscrita dos textos, que depois vou digitando no computador (aí, já é praticamente o texto definitivo, que foi riscado e rabiscado à vontade no caderno). É meio arcaico, eu sei, mas é assim que me dá prazer.
Em geral, sei pouco da história e dos personagens. Muitas vezes, sei o começo da história e vou descobrindo o resto à medida que escrevo. Prefiro assim. Conheço escritores que fazem anotações sobre cada capítulo que vão desenvolver, uma espécie de escaleta. Se eu souber a história toda, o começo, o meio e o fim, existe um grande risco de não escrevê-la. O que me interessa é me perder naquele universo que ainda não conheço e contar dele o que eu puder captar. É a hora do prazer maior.”
Pequenas e grandes editoras
“Publiquei onde pude, essa é que é a verdade. Lembro que, no final dos anos 80, quando tentava publicar meu primeiro livro, o gênero conto andava meio maldito entre os editores (depois de uma época de ouro na década anterior). Batalhei editoras, mas o livro só saiu em 91, depois de ter recebido o Prêmio Nestlé. A Estação Liberdade, que publicou o livro, não se interessou pelo livro seguinte, Miss Danúbio, também de contos. Então fui parar na Editora Scritta, levado por meu amigo Fernando Bonassi. Na seqüência, eu, Bonassi e Roniwalter Jatobá, outro escritor amigo, criamos uma coleção para a Geração Editorial, que abrigou dois livros meus: O Amor e Outros Objetos Pontiagudos e O Invasor. Entre os dois, escrevi Faroestes, já pensando em fazer um livro diferente, fora do mercado, por puro prazer. É que eu queria trabalhar com o editor Joca Terron, porque adorava os trabalhos dele como designer na [editora] Ciência do Acidente.”
Geração 90
“Acho que este é um momento de vitalidade particular da literatura brasileira. Tem muita gente boa publicando e chegando. Penso que é meio ocioso ficar rotulando, classificando os escritores – até porque alguns são inclassificáveis, quando não desclassificados. São vozes muito diversas entre si, falando, cada uma, à sua maneira deste momento. Alguns me interessam mais que outros, como é normal.”
Poesia
“Cometi um livro de poesia na estréia. E quando estava trabalhando no segundo livro, aconteceu minha transição para a prosa. Comecei a achar que não era poesia aquilo que eu fazia. Imagine: tinha poemas com personagens e até tramas. Saquei que minha rota era outra. E parei. Por higiene e por respeito aos poetas de verdade, os que eu admiro. A partir daí, todo o meu esforço é na direção da prosa. Continuo um grande leitor de poesia, o que julgo indispensável aos prosadores, mas nunca mais arrisquei um verso.”
Como fazer histórias para adolescentes e adultos
“Não deveria, mas há diferenças entre escrever para adolescentes e adultos. Porque, no caso da literatura juvenil, você já escreve tendo em vista seu público, o universo de interesses e inquietações dele, sua linguagem. Se bobear, fica meio dirigido – e aí é má literatura. Fiz uma incursão por esse território, mas considero encerrada minha experiência na literatura juvenil. Prefiro escrever sem saber a quem meu livro se dirige, além de mim. Porque eu, como acontece com todo escritor, sou meu primeiro leitor. É a mim que o texto tem de convencer em primeiro lugar. Talvez haja escritores que pensem num leitor imaginário, num ‘leitor ideal’ ou coisa assim. Escrevo no escuro, no risco, porque posso chegar ao fim de um livro e ficar insatisfeito a ponto de guardá-lo ou, o que é mais comum, simplesmente descartá-lo.”
Para quem começa a escrever...
“Ler, ler, ler. E reler também – porque é uma delícia retornar a escritores e textos que nos encantaram e que nunca se esgotam. Não acredito em escritores que não lêem. Ou mentem sobre isso ou não são escritores. Escritor lê para poder escrever, eu não tenho dúvida disso.”