Postado em 09/12/2004
Quase Gente
O milenar teatro de bonecos é capaz ainda hoje de fascinar públicos de todas as idades com técnicas múltiplas e muita imaginação
Não existe nada muito novo nessa história. Há muito tempo se faz isso”, diz Paulinho de Jesus, marionetista e curador da mostra de teatro de bonecos Vaca Amarela... Quem não vier... – que esteve em cartaz durante os meses de outubro e novembro no Sesc Pompéia –, referindo-se à incrível façanha de fazer bonecos ganharem vida no palco. O sucesso das apresentações foi tão grande que o evento ganhou uma extensão, a Mostra de Teatro de Fantoche, em novembro, e ocupou também o Sesc Pinheiros. Ao todo, foram 27 grupos e mais de 90 exibições, todas lotadas, sem contar as oficinas.
Localizar precisamente no tempo o início do teatro de animação, gênero em que se insere o teatro de bonecos, é difícil. O que se pode afirmar com certeza é que a prática é antiga e está presente em várias culturas. Acredita-se, inclusive, que tenha origem ainda na pré-história, quando os homens, encantados com suas sombras nas paredes das cavernas, passaram a desenvolver técnicas até chegar ao teatro de sombras – primeira manifestação do teatro de animação. Alguns estudiosos afirmam, ainda, que essa forma de expressão originou-se na Índia, enquanto outros asseguram que nasceu no Egito, onde foram encontrados bonecos de ouro, marfim e barro. O certo é que os fantoches freqüentavam as feiras antigas da Grécia e de lá passaram para Roma. Da Itália, na Idade Média, os títeres, um dos muitos nomes que recebem os bonecos, espalharam-se por vários países da Europa, sendo levados por artistas anônimos. “É uma tradição que vem lá de trás mesmo, que remonta à Idade Média, quando não existiam cidades grandes e os artistas tinham de correr atrás de um número maior de pessoas do que o público local”, explica Paulinho. “Esses eram os saltimbancos, que iam aos lugarejos levar seus espetáculos, por isso a estrutura do palco tinha de ser enxuta. Aliás, esse é um dos mais fantásticos aspectos desse tipo de teatro, a facilidade em locomover-se.” Para o marionetista Leonardo Vinícius, do grupo Trio dos Três – que participou da mostra do Sesc –, há outro elemento que o encanta no teatro de bonecos: o público. “Todos são mais relaxados, menos solenes, não vêm todos arrumados. [O espetáculo] É também mais acessível, qualquer um pode entender o texto, desde uma criança até um adulto. E, além disso, é muito lúdico, isso é encantador”, diz ele. Já o pernambucano Sandro Roberto, do Grupo Imaginário, também presente na mostra, resume o fascínio em uma só frase: “O boneco é mágico”.
Em todo canto do mundo
Mágicos e ágeis. Marionetes, fantoches, mamulengos e outros tipos de boneco chegaram a todas as regiões do mundo. Em cada lugar, eles têm um nome e uma cara. Aliás, as diferenças de nomenclatura vão se desdobrando em cada região, mesmo dentro de um mesmo país. “Nota-se que a estrutura dos espetáculos é muito parecida com a da commedia dell’arte italiana”, diz Paulinho de Jesus. “É comum que em cena haja personagens correspondentes a Pulcinella, Colombina, Arlequim e Pantaleone.” Só que com o tempo, esses tipos foram ganhando características regionais e os personagens principais, nos diversos tipos de técnicas, ganharam nomes locais. Por exemplo, na Inglaterra, há o Punch; na Rússia, a Petrouchka; enquanto no Brasil, os “astros” atendem pelo nome de João-Redondo, no Rio Grande do Norte; Babau, na Paraíba; João-Minhoca, na Bahia, em Minas Gerais e Rio de Janeiro; Casimiro-Coco, no Piauí; Briguela, em São Paulo. Na Região Sul, costuma chamar-se singelamente Mateus e em alguns estados do Nordeste pode ser também Benedito ou Simão.
Duas regiões brasileiras concentram boa parte da arte bonequeira nacional. O Nordeste, mais especificamente o estado de Pernambuco – onde o teatro de bonecos é famoso pelos mamulengos – e a Região Sul, que concentra dois dos principais festivais do gênero. “O fabulário mundial acaba sendo regionalizado”, volta a explicar o curador. O que equivale a dizer que nesses espetáculos há sempre o correspondente ao Arlequim e aos empregados, que servem para desmascarar o maldoso patrão e ajudar os mocinhos da história. Normalmente, estes são um casal com dificuldades para ficar juntos. Os empregados buscam desmoralizar quem cria os empecilhos – normalmente um malvado pai ou um rei tirano. O curioso é que quando esse enredo de base chega em solo pernambucano, passa a apresentar elementos da cultura local. Dessa forma, há sempre um Benedito, que normalmente é um rapaz negro explorado pelo maldoso coronel branco. É quase certo também que a mocinha responda pelo nome de Rosinha ou Maricota, seja filha do coronel e se apaixone pelo Benedito.
Inocente ou picante?
Apesar de parecer inocente e exclusivamente voltado para as crianças, o teatro de bonecos não necessariamente é teatro infantil. O mamulengo, por exemplo, faz muita crítica aos costumes e analisa a vida da comunidade em que está inserido. “O mamulengueiro é praticamente um cronista”, conta Paulinho. E como tradicionalmente esses espetáculos acontecem em cidades pequenas, daquelas em que todo mundo se conhece, ninguém escapa às críticas. “É muito comum os políticos da região tornarem-se alvos”, completa. O Brasil conta hoje com pelo menos três festivais importantes de teatro de bonecos. Um em Canela, no Rio Grande do Sul; outro em Curitiba, no Paraná; e um terceiro em Belo Horizonte, Minas Gerais. As mostras do Sesc Pinheiros e Pompéia só confirmaram mais uma vez que público não falta para prestigiar essa arte milenar. Não se sabe exatamente de onde ela veio, se é um gênero infantil, inocente ou picante. O certo é que todos se encantam.
Do Pinóquio à Emília - Não é só no palco que bonecos arrematam uma porção de fãs. Na literatura e no cinema, eles também são eternos
Quem não conhece Pinóquio, o boneco de madeira que vê seu nariz crescer a cada mentira que conta? O personagem criado pelo italiano Carlo Collodi faz sucesso há quase 125 anos. Da infância de muitos brasileiros também fazem parte dois bonecos que ganharam vida e quase viraram gente. Emília, a boneca de pano que não pára de falar, e Visconde de Sabugosa, o boneco de sabugo de milho que lia todos os livros da biblioteca onde ficava guardado e assim cultivou uma admirável inteligência, ambos criados pelo escritor Monteiro Lobato na década de 20.
Os bonecos também foram personagens fundamentais na trajetória de outra grande escritora de literatura infantil brasileira, Maria Clara Machado. A autora de clássicos como Pluft, o Fantasminha (Companhia das Letrinhas) encantou-se com a atuação dos personagens que ganham vida nos palcos. Um amigo do pai da escritora, o também escritor Aníbal Machado, era o argentino Javier Villafañe, um dos maiores ícones do teatro de fantoches na América Latina. Quando passava pelo Rio de Janeiro, Villafañe costumava hospedar-se na casa de Aníbal e, em agradecimento aos anfitriões, presenteava a família com seus espetáculos. Deu-se aí o primeiro contato da futura escritora com o mundo do teatro. A paixão em comum pelos bonecos fez com que ela e a amiga Maria Antonieta Portocarrero representassem em público, pela primeira vez, num teatrinho de bonecos armado em casa por Maria Clara. Uma consagrou-se como a maior escritora infantil do Brasil. Maria Antonieta virou Tônia Carrero e hoje é uma das mais consagradas atrizes brasileiras.
Dicionário de bonecos
Conheças as diferentes técnicas de teatro de animação
Fantoche ou boneco de luva – Boneco que o manipulador “calça” ou “veste”.
Marionete – Boneco movido a fio.
Boneco de Vara – Manipulado por varas ou varetas.
Boneco de Sombra – Refere-se a uma figura chapada, articulável ou não, visível com projeção de luz.
Marote – É também um boneco de luva que o manipulador “veste” e com sua mão articula a boca do boneco.
Boneco gigante – Geralmente com mais de 2 metros de altura, utilizado em manifestações folclóricas e espetáculos de rua.
Bunraku – É o tradicional
teatro de bonecos do Japão. Consiste na manipulação conjunta de bonecos por três ou mais pessoas que, vestidas de preto, se confundem com o fundo do cenário da mesma cor.
Formas Animadas – Fusão do teatro de bonecos, máscara e objetos.
Mãos Animadas – Técnica criativa de representar figuras utilizando as mãos com pinturas e adereços.
Fontes: Teatro de Formas Animadas, de Ana Maria Amaral (1991), Edusp, São Paulo; Consulado Geral do Japão.
O milenar teatro de bonecos é capaz ainda hoje de fascinar públicos de todas as idades com técnicas múltiplas e muita imaginação