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Música

Postado em 01/12/2004

 

Em plena forma

 

Depois de um período de pouca visibilidade, a música instrumental brasileira ganha espaço e conquista um público cada vez mais jovem

 

Nem aquele estranho friozinho que abraçou a Paulicéia em pleno novembro fez com que o público ficasse em casa. Ao contrário. Desde aquela manhã de sábado, os ingressos para a apresentação de Paulo Moura e Yamandú Costa, no Sesc Pinheiros, estavam esgotados. No auditório lotado, grande parte dos presentes era jovem.

Alguns dias depois, no Sesc Vila Mariana, a cena se repetiria: Egberto Gismonti, ao lado do filho violonista, Alexandre Gismonti, de 23 anos, apresentou-se para um teatro recheado de um público jovem, ávido por conhecer uma das obras mais respeitadas em todo o mundo.

A mesma ovação ocorreu no ano passado, no mesmo palco, quando Gismonti comemorou, ao lado do percussionista Naná Vasconcelos, os vinte anos de lançamento do célebre álbum Academia de Danças: a música do compositor carioca mostrou que possui força para atrair um público quase adolescente, que aprecia suas peças com respeito emprestado só aos grandes clássicos.

Longe da grande mídia – alguém se lembra de ter visto Gismonti no Domingão do Faustão ou em programas de grande apelo popular? –, a música instrumental brasileira experimenta recentemente um fenômeno de platéias lotadas – e, quase sempre, formadas por jovens.

E a coisa anda em dupla mão. Assim são prestigiados grandes nomes – como Hermeto Pascoal, César Camargo Mariano, Wagner Tiso, além dos já citados –, mas o cenário tem sido dividido com novos talentos, além de despertar entre os mais jovens o interesse em aprender um instrumento e usá-lo, agora, não somente para tocar rock, mas também na execução de um chorinho ou na recriação só instrumental de um baião.

Radamés Gnatalli ficaria orgulhoso dessa garotada.

 

Reação do público

 

O crescente interesse por parte dos mais jovens em ouvir e produzir música instrumental, conforme acreditam os músicos, está atrelado a uma reação do público em geral. Seja pelo esgotamento dos produtos oferecidos pela indústria do entretenimento, seja pela força do gênero, o fato é que se tornou consenso dizer que o público voltou. “De uns quatro anos para cá a coisa melhorou bastante nesse sentido”, afirma o flautista Altamiro Carrilho, um dos artistas que se apresentaram no projeto Um Sopro de Brasil, realizado no Sesc Pinheiros (veja boxe O vôo da música instrumental). “E é o próprio povo brasileiro que está se conscientizando de que a música instrumental é de primeiríssima categoria. Quando nós nos apresentamos nos teatros, olhamos para a platéia e vemos nitidamente o aumento da quantidade de jovens, cada vez mais presentes. E é isso que nós queremos, plantar agora para colher mais tarde.”

O músico Benjamin Taubkin também verifica que, de fato, ainda que recente, o interesse dos mais jovens pela música instrumental é fenômeno flagrante, na platéia e nos palcos. “Nós temos uma geração que de alguns anos para cá vem ouvindo e fazendo música instrumental”, explica. “Um pessoal cujo trabalho apresenta, inclusive, referências brasileiras, músicos jovens que tocam choro, maracatu, MPB, enfim, misturam os ritmos, tocam um pouco de cada coisa, mas tendo sua base nos músicos e compositores brasileiros, sejam os mestres de tradição, sejam músicos contemporâneos”, afirma ele, lembrando ainda que quando iniciou sua carreira a referência vinha de fora, mais especificamente do jazz norte-americano. “Na medida em que os músicos brasileiros de qualidade permaneceram fazendo música, mesmo que não ocupando a grande mídia – gente como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Paulo Moura e outros –, foi-se criando um alicerce para a geração que vem agora e que, eu acho, vem com muita qualidade. Às vezes eu sinto que, em certos aspectos, eles, os novos nomes, são uma evolução para a trajetória da música brasileira.” Mas quem são esses talentos da nova geração? Quando se fala na presença dos jovens na música instrumental, logo vêm à mente nomes como o do violonista virtuose Yamandú Costa, um gaúcho de Passo Fundo com apenas 22 anos que vem provando que, hoje, Hermeto Pascoal e Pixinguinha são de domínio da moçada. “Esta geração da qual eu faço parte está chegando com uma força fora de série”, afirmou Yamandú em texto publicado em seu site oficial. “A gente sente a energia que a música nos traz, e podemos passar isso ao público.”

Outro nome que está despontando e ruma para um futuro de muito sucesso é ainda mais jovem que o instrumentista do Rio Grande do Sul. É Danilo Brito, bandolinista paulista de 19 anos que venceu o 7.º Prêmio Visa de Música Brasileira – Edição Instrumental. Danilo começou a se interessar por música desde muito pequeno. Aos 5 anos de idade já tocava notas dos chorinhos Brasileirinho e Pedacinho do Céu no bandolim do pai. Aos 12, freqüentava as rodas de choro pela cidade ao lado de Denilson Brito, o irmão mais velho. Um ano mais tarde já gravava seu primeiro CD, Moleque Atrevido, trabalho que levou o nome de uma das músicas que ele mesmo compôs. Apesar da pouca idade, Danilo considera-se um tradicionalista, fiel ao estilo dos mestres que admira. “Não sou contra quem faz misturas americanizadas, mas prefiro o estilo à moda antiga, como faziam os mestres Pixinguinha e Jacob do Bandolim”, disse o músico em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, na ocasião em que venceu o Prêmio Visa.  “Esse estilo de choro está um pouco estagnado, mas, no meio de toda essa renovação, consegui vencer sendo tradicional. Acredito que, assim, contribuo para a música brasileira.”

 

Época de esquecimento

O destaque de grandes nomes da música instrumental brasileira aliado ao surgimento de uma nova geração de talentos prova a força e a perenidade do gênero que, mesmo assim, amargou um período de esquecimento. “Nos anos 40 tínhamos Benedito Lacerda, Dante Santoro, Jacob do Bandolim, Luperce Miranda, enfim, uma quantidade enorme de garotos, e eu fui chegando nessa época também”, conta Altamiro Carrilho. “Havia uma procura por música instrumental muito maior, porque as emissoras de rádio abriam mais espaço para os solistas. Todo mundo gravava e todo mundo vendia disco. Era um movimento bom e equilibrado.” Ainda, segundo o flautista, houve uma época em que esses artistas e a música feita por eles ficaram um tanto fora de moda. “Mais precisamente dos anos 60 para cá a coisa degenerou de tal forma que só se ouvia rock’n’roll”, afirma Altamiro. “O rock foi o pior de todos, nos atrapalhou durante todos esses anos. Depois dele, os americanos começaram a nos mandar músicas com outros nomes, mas com o mesmo ritmo. Vieram o rap, hip, hop, 'rup', enfim, uma porção de coisas que não são música, são danças”, dispara com bom humor. No entanto, vale lembrar que mesmo em meio a esse “cenário de invasão” pintado por Altamiro, os músicos do gênero jamais saíram totalmente de cena. “A música instrumental nunca cessou sua produção e nunca vai cessar”, analisa o músico Benjamin Taubkin. “A questão é que precisamos separar a idéia de entretenimento da idéia de cultura. E cultura é algo que se faz de forma independente da grande indústria do entretenimento. É parte da vocação de um povo, da sua história. E o artista que faz cultura é aquele vai entrar para a história do país.” Dessa forma, seria a mídia atual – rádio, TV, internet e indústria fonográfica – o vilão que insiste em privilegiar produções de menor qualidade em detrimento de artistas que representam a genuína cultura popular? Para Taubkin, não exatamente. “Não vejo com bons olhos essa história de artista coitado”, observa. Segundo ele, em qualquer sociedade, quando um artista produz uma obra que não ocupa o espaço que lhe caberia, certamente outras atividades importantes para a cidadania também não têm chance. “É só pegar o caso do professor, por exemplo, uma pessoa que forma os futuros cidadãos de um país: que tipo de apoio esse profissional tem hoje no Brasil? Ou seja, essa falta de reconhecimento é algo que parte da estrutura da nossa sociedade, que às vezes privilegia pessoas menos capacitadas e cria fantasias a respeito do que é o sucesso, ignorando diversas outras coisas. No fundo, coitada da nossa sociedade.”

 

O vôo instrumental - Projetos como Um Sopro de Brasil, realizado no Sesc Pinheiros,

e o Instrumental Sesc Brasil, do Sesc Av. Paulista, flagram o interesse do público pela música de qualidade

A música brasileira mostrou suas diversas caras de 6 a 28 de novembro na nova unidade do Sesc Pinheiros, em projeto que mapeou boa parte da produção instrumental nacional. Um Sopro de Brasil, selecionado em 2004 pelo Programa Petrobras Cultural, na categoria Música, teve a diversidade como principal marca, seja no palco – com shows de nomes consagrados como Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Hermeto Pascoal, Quinteto Villa-Lobos e Banda Mantiqueira, entre outros –, na proposta do evento, que também organizou oficinas – práticas, teóricas e interativas – que proporcionaram aos interessados momentos de intimidade com o universo da música.

Um Sopro de Brasil é a sétima etapa do Projeto Memória Brasileira, realizado pela produtora Myriam Taubkin desde de 1987, que há sete anos conta com a parceria do Sesc São Paulo. Um dos pontos fortes da série é sua capacidade de aglutinar artistas. “Talvez se a iniciativa apresentasse apenas um músico as coisas não fossem assim – claro, só se fosse um show com Yamandú Costa. Mas se eu fosse fazer um show com o Proveta, por exemplo, que é um dos maiores músicos de sopro do País, mas não tão conhecido, talvez não houvesse visibilidade. Visibilidade essa que o próprio Proveta consegue dentro do projeto.” Ao juntar instrumentistas com trajetórias distintas, a iniciativa fornece uma vitrine da produção nacional no gênero. “Como não se apega a apenas um artista, o projeto acaba traçando um panorama aberto e democrático dentro do qual só o talento importa”, explica Myriam. “E isso faz com que ele acabe contribuindo para a divulgação da música instrumental em geral, porque atrai muito o público.”

O Memória Brasileira começou com Memórias do Piano Brasileiro e já realizou também Violões, em 1990, Arranjadores, em 1992, Violeiros do Brasil, cinco anos depois e já em parceria com o Sesc, Percussões do Brasil, em 1999 e O Brasil da Sanfona, há dois anos.

Além do projeto do Sesc Pinheiros, outras iniciativas da instituição contribuem para a divulgação da música instrumental brasileira. Um dos destaques é o projeto permanente Instrumental Sesc Brasil, realizado todas as segundas-feiras, às 18h30, pelo Sesc Av. Paulista. Criado em 1990, mobilizou, em seu momento inicial, uma equipe de técnicos que passou a sondar as poucas casas e bares que se dedicavam ao estilo. De sua elaboração participaram músicos como Laércio de Freitas, Ulisses Rocha e os integrantes do Zimbo Trio. A grande proeza do Instrumental Sesc Brasil está na sua bivalência: por um lado, o objetivo é dar aos músicos o espaço que eles precisam para mostrar seu trabalho e, por outro, há a intenção de continuar investindo na formação de público. A adesão dos músicos e da platéia ao longo dos anos prova que o projeto veio para ficar. O auditório que abriga as apresentações, e que inicialmente tinha espaço para 170 pessoas, em 1995 ampliou-se para 230 e a lotação continuou garantida.

 

Encontro de gerações - A qualidade e a gama de possibilidades que a música instrumental oferece atraem os jovens também para o aprendizado do gênero

 

O projeto Um Sopro de Brasil (veja boxe O vôo da música instrumental), além de um panorama da produção atual da música instrumental nacional, mostrou também preocupação especial com a formação de novos músicos do gênero. Paralelamente à programação de shows, oficinas teóricas e práticas atraíram um público interessado nos bastidores dessa produção musical, e ainda em suas técnicas, história e riqueza de harmonia, ritmo e melodia. “Para todo músico, salvo raras exceções, o referencial é a música criada por outros instrumentistas”, explica o músico Benjamin Taubkin. “É raro o caso de alguém que começa a tocar um instrumento e que não tenha a música instrumental muito próxima de si, mesmo que ele termine tocando outra coisa”, completa. Ângelo Matorin Ursini, de 17 anos, é um dos interessados em aprender com os mais experientes. O jovem toca saxofone há seis anos e viu no jazz e na MPB os estilos com os quais mais se identifica. “Eu já apreciava música instrumental desde cedo, descobri ouvindo os CDs do meu pai. Daí fui atrás.” Ângelo participou das oficinas de Carlos Malta, sobre sons e timbres; de Paulo Moura, que passou noções de rítmica e improvisação; e do Sexteto Brassil, que abordou os ritmos nordestinos nos metais, como a trompa, a tuba e o trombone. “Minha intenção ao procurar as oficinas era entrar em contato com pessoas que conhecem os instrumentos e ver o que elas têm a dizer para quem está se desenvolvendo.” Ângelo, que também faz parte de uma big band, saiu satisfeito, e com a cabeça cheia de idéias. “Por meio do meu interesse pela música pude conhecer gente que eu nunca conheceria de outra maneira”, conta. “Além disso, é possível acompanhar a evolução do aprendizado. E conhecer outros músicos é muito importante para mim, que toco um instrumento melódico.”

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