Postado em 15/07/2005
Segundo estudo divulgado em junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), embora o Brasil tenha conseguido melhorar alguns de seus principais indicadores sociais, a distribuição de renda ainda é um de seus piores problemas. Se, por um lado, o empresariado brasileiro tem se organizado mais e impulsionado a atuação do terceiro setor, por outro, a chamada elite do País parece ainda não ter se livrado da imagem de pouco interessada em diminuir esse abismo. Afinal, como é o Brasil de 2005? Em artigos exclusivos, o escritor Silviano Santiago e o jornalista Marcelo Coelho respondem à pergunta.
Por Silviano Santiago
À diferença do que pensava Oswald de Andrade, o Brasil não é só um País antropófago, ele é também auto-antropófago. Alimenta-se de si mesmo para sobreviver. À mesa da vida política, seus dirigentes costumam aprontar um processo histórico para servi-lo com grande rebuliço à imprensa e aos cidadãos. Logo se revelam como impacientes glutões, interessados que estão em deglutir às pressas o processo histórico.
Houve o processo de querer lavar a roupa suja da ditadura militar, logo interiorizado e expelido aos borbotões. Afobado, entrou em cena o processo da redemocratização da nação, que por sua vez foi engolido e regurgitado. Abriu-se espaço para o processo da neoliberalização da economia, recebido a foguetes pelo fim da era Collor. Ao fechar do século e do milênio, parecia que a maioria tinha lambiscado e rejeitado nas urnas o processo neoliberal. Será que a nação daria o chute inicial para um novo processo histórico – o da classe operária no poder nacional?
Ficou chique deixar a responsabilidade da divulgação dos processos históricos para os grandes publicitários. Cada um deles ganha um rótulo elegante, que logo depois é estraçalhado diante dos olhos estatelados da comunidade e da imprensa internacionais. Constatam que no Brasil os processos históricos aparecem e desaparecem num passe de mágica. Mas atestam que a nação periférica e tropical progride. À maneira dela. Na qualidade de aide-mémoire, como dizem os franceses, eis alguns dos rótulos que pareciam fazer história para, em seguida, desfazê-la pela pressa: abertura, diretas-já, modernização do parque industrial, economia neoliberal, e, finalmente, políticas públicas sociais, cujo slogan de maior rentabilidade universal foi o “Fome zero”.
No balcão da paciência infinita do cidadão brasileiro, está o último dos processos. Na triplicação da letra P, reproduz as graças da sucessão antropófaga de processos: PPP (participação público-privada), Será que continuaremos a nos valer de paródia das palavras que tornaram Shakespeare célebre? Processos, processos, processos...
Depois de quatro décadas, a nação brasileira se assemelha a grãos de amendoim torradinho, corporificados por uma camada açucarada da boa rapadura latifundiária.
O fundamental nos processos históricos brasileiros é que, apesar de gerados pelas boas intenções, nenhum é levado a cabo. Nem mesmo no primeiro em data deles – o do balanço legal da ditadura militar, da repressão e da tortura –, tivemos a coragem dos argentinos e dos chilenos. Como tinha uma pedra no meio do caminho chamada Forças Armadas, o processo foi engolido e logo devolvido pelos cidadãos de boa vontade. Virou um charco à beira da estrada Transamazônica, a esperar que a poeira do Araguaia fosse varrida pela vassoura da cordialidade brasileira para debaixo do tapete da história. Somos auto-antropófagos de estômago delicado. Como somos.
Nesse ponto, há debate. A comunidade internacional acrescenta que os processos históricos não são levados a cabo porque geram uns filhinhos e uns netinhos que são da pá virada. De que adianta dar exemplo de boa e séria conduta política aos subprodutos da nacionalidade pé-de-moleque? São resistentes e renitentes os filhinhos e netinhos. Eles levam o mesmo nome do pai (processo), mas se definem pelo novo adjetivo que os caracteriza (jurídico). Processos jurídicos. Abandonados no meio do caminho, os multifacetados processos históricos são pais de processos jurídicos infindáveis, muitos deles abortados, já que as respectivas mães são o compadrio nacional.
Ao saborear o pé-de-moleque dos processos históricos servidos à moda de Brasília, dei-me conta de que estava relendo as poesias completas de Mário de Andrade. Folheava o livro à caça do poema O Poeta Come Amendoim. Fui direto a dois versos que a memória retinha: “Progredir, progredimos um tiquinho,/Que o progresso também é uma fatalidade...”.
O dicionário nos informa que o vocábulo fatalidade deve ser referido ao adjetivo fatal. Este, por sua vez, qualifica o que é determinado pelo fado, destino ou sorte. O progresso do Brasil – sugere o poema de Mário – não é produto ou conseqüência do trabalho, da inteligência e da imaginação de seus cidadãos, elites empresariais e governamentais. É antes algo que nos chega por fatalidade, como a sorte grande na roleta do cassino, nas várias loterias ou no mais que popular jogo do bicho.
Mário abre uma gargalhada, mostra os alvos dentes de mulato que mastigam amendoim e afirma: o Brasil sempre progride “um tiquinho”.
Nas letras contemporâneas brasileiras, os versos bem-humorados de Mário de Andrade, irônicos quanto ao futuro da nação, não são dissidentes nem originais. Saídos da boca de poeta que come amendoim, eles reproduzem a voz corrente dos intelectuais e artistas brasileiros neste início de milênio. Todos eles não conseguem levar a sério a carência nacional de progresso-a-qualquer-preço, que enxerga um presente dos céus em qualquer anúncio de investimento estrangeiro.
Por que é que artistas que se autodenominam “modernistas”, isto é, a favor da modernização do mundo e do progresso como fator de bem-estar geral, são piadistas e traquinas quando falam dos vários e sucessivos processos históricos de modernização por que vem passando a nação brasileira? Será que há contradição entre a defesa artística da utopia no plano universal e a ironia no plano nacional?
A resposta é simples. Todos eram e somos a favor da modernização do Brasil. Eram e somos todos também contra as formas espúrias como essa modernização foi e vai sendo implantada. No humor está o modo mais eficiente de preservar o próprio raciocínio duma lógica modernizadora sem princípios e, por isso, capenga e obsessiva – fatal, numa só palavra. Esse humor não é só elemento corrosivo e pessimista. É antes um ato público. Com o intuito de iluminar as inconsistências e inconsciências do poder modernizador, o humor acende para os cidadãos os holofotes da nacionalidade.
Mário de Andrade acreditava e o mundo acredita na pujança do País novo e admirava e todos admiram o homem comum brasileiro pela sua capacidade invejável de trabalho. Este nunca descansa, nunca desanima, sempre luta contra ventos e marés que não o incentivam ao trabalho e à vida feliz.
Pujança do País e trabalho da maioria contam pouco em termos da modernização do Brasil, pois os sucessivos e recentes governos modernizadores estavam e estão mais sintonizados com a cópia medíocre de modelos socioeconômicos hegemônicos do que com a reflexão adulta não só sobre as possíveis qualidades dos modelos, como também sobre as nefastas conseqüências humanas do implante acrítico. A sociedade brasileira não é simples. A sua complexidade está na ordem direta da solução que for encontrada para minimizar os desequilíbrios socioeconômicos nela criados e desenvolvidos.
Acreditar que se pode discutir a modernização do País sem tocar no ponto clave da cegueira, incompetência e egoísmo dos gestores da coisa pública sempre pareceu aos produtores da verdadeira cultura nacional uma piada. Carlos Drummond de Andrade também escreveu o seu Hino Nacional. Começa a escrevê-lo com a letra disciplinada de bom aluno do Senhor Nacionalismo para logo depois deixar intervir os garranchos de aluno irreverente: “Precisamos educar o Brasil./Compraremos professores e livros,/Assimilaremos finas culturas,/Abriremos dancings e subvencionaremos as elites”.
Silviano Santiago é escritor e professor de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)
por Marcelo Coelho
Belas mulheres, samba, Carnaval e futebol: se algum estrangeiro achar que o Brasil é “só isso”, não nos conformamos. Claro, é ruim ser folclorizado. Gostaríamos de ter uma imagem mais complexa, mais sutil, menos caricata, no exterior.
Mas esse desejo não é fácil de ser atendido. Também depende, em certa medida, da imagem que temos de nós mesmos. Será que não construímos, de nossa parte, uma espécie de caricatura para consumo interno?
Digo até que, provavelmente, a imagem forjada por nós mesmos tende a ser até pior do que a que projetamos lá fora. Freqüentemente nos consideramos desorganizados, aproveitadores, inconseqüentes, preguiçosos, corruptos e violentos. A idéia de um “povo pacífico”, clássica há questão de uns 20 anos, sem dúvida já está sepultada, junto com os mortos do Carandiru ou de qualquer chacina semanal na periferia de São Paulo. Se quiséssemos desmontar a imagem turística de tocadores de pandeiro e baianas do acarajé, apontaríamos, talvez, para os traficantes cariocas, as freqüentadoras das butiques de luxo nos Jardins, os madeireiros da Amazônia, os banqueiros e suas megaexposições de arte, as crianças de rua e, com sorte, um ou outro presidente: intelectual famoso ou operário histórico. Não sei se seria uma imagem muito interessante.
Nos tempos em que eu estudava na Aliança Francesa, vinham professores de Paris para aplicar os exames do fim de ano. Um desses mestres, senhor já bastante idoso, de modos bruscos, com os dentes negros e os cabelos amarelos de tabaco (seria um francês típico?), expressava, entre bufos e ulalás, o seu espanto diante do gigantismo de São Paulo. Não que imaginasse cobras passeando pelas ruas, mas era quase isso. Depois, considerou: tinha de ser assim, é claro; as coisas mudam... Paris, ce n’est plus le “french Cancan”, le Maxim’s, les Champs Elysées.
Não, certamente a Paris de hoje não era a de Toulouse-Lautrec e do Moulin Rouge; não mais a de Maurice Chevalier, nem mesmo a de Sartre e das boates existencialistas... Mas o que o velho professor teria a nos oferecer em troca? As torres modernas de um bairro afastado, La Défense, chatíssimas com seus vidros espelhados, um sonho insípido de tecnocratas... Com direito a visitar um projeto de que eles se orgulhavam muito naquele tempo – os anos 70 –, o complexo petroquímico de Fos, ou Foz, não me lembro como se escrevia, em algum lugar do sul da França. Oui, nós temos petroquímicas! Mas, por mais irreal que fosse, a Paris do cancã era, ainda assim, e será para sempre a verdadeira Paris...
Justamente uma revista semanal francesa, das mais populares, coberta de fotografias esplêndidas, dedicou um número inteiro ao Brasil.
Na capa, andando de bicicleta, Marisa Monte ondula sua beleza radiosa e morena entre crianças pobres de alguma favela feliz. Havia uma entrevista com Chico Buarque. Gisele Bündchen desfilava algumas páginas depois. Fotos de Ronaldo, ou Ronaldinho, como não poderia deixar de ser, marcavam na revista a presença do nosso futebol.
Só isso? Não, certamente. Ayrton Senna e Lula, Sebastião Salgado e Niemeyer, as florestas da Amazônia e Cidade de Deus eram lembrados em longas reportagens e páginas de fotos. Ainda assim, a música, as mulheres e o futebol respondiam por uns 60% da revista.
Talvez não seja tão mau – nem tão inexato assim. Nossas misérias, numa comparação global, não têm os níveis desesperadores de certos países africanos; nossas riquezas, nossa produção científica e industrial tampouco se destacam; nossos problemas, que, bem sabemos, são imensos, raramente chegam a ponto de distrair as outras nações dos seus. Não inspiramos medo nem inveja, desprezo ou compaixão: provavelmente, simpatia. O Brasil é grande demais para ser visto como uma espécie de parque temático e turístico, como o Havaí ou Cuba antes de Castro; mas imagino que o associem, apesar de tudo, à idéia da festa, da celebração.
Não é só o Carnaval: nada mais deslocado, a meu ver, que Gisele Bündchen numa escola de samba. Mas que esse ou aquele estilista de moda adquira certa celebridade nos desfiles internacionais, que as vitórias de Ayrton Senna ainda sejam lembradas na imprensa de outros países, que a estrela de Guga tenha brilhado nas quadras de tênis por mais de uma estação, que Gilberto Gil, enquanto ministro da Cultura, tenha tocado atabaque com o secretário-geral das Nações Unidas, que projetos de Niemeyer tenham pousado numa ou outra capital do mundo, tudo isso contribui para que o Brasil – mesmo sem ser folclorizado – sugira a outros povos a possibilidade de uma vida menos tensa, mais aberta ao lazer, simultaneamente disposta ao luxo e à simplicidade.
Simplicidade e luxo acabam correspondendo, numa luz positiva, a outra dupla de conceitos que conhecemos bem, a da miséria e da opulência. Não deixa de ser resultado de uma péssima distribuição de renda a nossa especialização no decorativo, no suplementar, no inconseqüente – aspecto em que os brasileiros, tanto pobres quanto ricos, afinal, convergem.
Em todo caso, a questão de uma identidade nacional, de um caráter geral do povo, sempre foi das mais problemáticas, e não gostaria de entrar por esse caminho. Também a “cara do Brasil”, a imagem de qualquer país, sempre será menos fixa do que pretendam os cronistas ou ideólogos.
E tudo muda muito velozmente graças à globalização. De Ronaldo a Paulo Coelho, de Romero Britto a Sebastião Salgado, criamos um número de celebridades internacionais bem maior, na última década, do que em 50 anos, imagino, de história anterior. Não só porque a mídia tem uma sede bem maior de gente famosa, mas porque a intensidade dos intercâmbios internacionais promove, digamos assim, mais condições de destaque para os talentos individuais; não se confinam, como antes, aos limites de um país. A conseqüência disto é que, cada vez menos, poderá ser reconhecida a imagem de um “brasileiro típico”, assim como a de um “francês típico” ou de um “americano típico”: o perfil inconfundível de um “representante do povo”, se isto alguma vez existiu de fato (acho até que sim) se dissolve em celebridades individuais; e os não famosos, os cidadãos comuns, estão eles próprios sujeitos a um bombardeio de influências culturais – lingüísticas, musicais, culinárias – inegavelmente maior do que há 20 ou 30 anos. Uma rápida e tumultuada miscigenação cultural se processa no mundo inteiro, por mais que conformada à óbvia hegemonia dos Estados Unidos e aos padrões de linguagem da internet, da TV a cabo, da publicidade e dos shopping centers.
Cansamos de dizer que o Brasil é um país miscigenado, o que é bom, e confuso, o que nem sempre é de nosso agrado; tolerante, disposto a todo tipo de sincretismo, o que é ótimo, e descuidado quanto a princípios, regras, disciplinas, o que às vezes nos atrapalha bastante. Enquanto isso, lá fora, diferentes nações vêem sua identidade esvair-se na onda do consumismo global, ou esfacelar-se na reação dos particularismos regionais, do fanatismo religioso e da guerra civil. Quanto a nós, já não nos incomoda tanto uma certa “falta de identidade”, uma notória vocação para o imprevisível, uma espécie de estado de vacância, de situação suspensa, como se fôssemos, talvez, a folga do mundo.
Não é a pior das imagens – desde que saibamos, também, olhar de frente para tudo o que nos envergonha, oprime e diminui.
Marcelo Coelho é mestre em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFCLH) da Universidade de São Paulo (USP) e colaborador da Folha de S.Paulo