Postado em 01/07/2005
Vida e obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre são lembradas no ano em que ele completaria um século de vida
Algumas épocas são férteis na produção de pensadores capazes de interpretar o momento histórico em que vivem. Unânimes ou não, o fato é que alguns desses nomes conseguem ter suas idéias ecoando por gerações, independentemente da passagem do tempo. Um dos mais profícuos que o século 20 produziu é Jean-Paul Sartre, nascido em 21 de junho de 1905. Embora sua morte tenha ocorrido há 25 anos, o intelectual francês se faz ouvir até hoje, e não só no campo da filosofia. Suas concepções abalaram também os padrões de comportamento e a política. A liberdade, principal bandeira da corrente de pensamento da qual era considerado pai, o existencialismo, orientou toda a sua vida e obra. Das peças de teatro que escreveu à vida conjugal não convencional que manteve com a escritora Simone de Beauvoir, passando, claro, pelo engajamento político que o levou a se envolver em questões como o conflito da Argélia com a França (1954 a 1962), e a guerra do Vietnã com os Estados Unidos (1964 a 1975). “Ele foi um filósofo como não se vê mais hoje”, afirma a professora do departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), Maria Aparecida Aquino, que em junho participou do projeto Sartreanas – Sartre 100 Anos, no Sesc Consolação (veja boxe O mundo de Sartre). “Nunca se ausentou de nenhum conflito. Fosse ele relacionado com a França ou não. Ele sempre se fez presente.”
O mestre em semiótica Franklin Leopoldo e Silva, também da FFLCH-USP, complementa explicando que “em todas as questões mundiais” a partir de 1946 o engajamento político dele foi muito forte. “Principalmente as relacionadas aos problemas do Terceiro Mundo”, ressalta o professor, que também esteve no Sartreanas. A vida privada também abalava as estruturas estabelecidas. Sartre foi casado por quase 60 anos e costumava dizer que a relação com Simone de Beauvoir era uma necessidade em sua vida, enquanto as outras mulheres – pelas quais sempre manteve vigoroso interesse – eram uma questão de contingência. “O que chama a atenção na relação dos dois é o respeito e a igualdade”, diz a diretora de teatro Eugênia Thereza de Andrade, curadora do projeto Sartreanas – Sartre 100 Anos. “Nos momentos que antecederam sua morte, quando já estava cego, ele fez uma declaração linda de amor para Simone, que sobre a morte do marido escreveu: ‘Sua morte nos separa. Assim é. Já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo’.”
Em 1961, depois de visitar China e Cuba, Sartre veio ao Brasil com a companheira e realizou a famosa conferência na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Na platéia, expoentes da intelectualidade nacional, seja de uma geração então já respeitada, como o crítico literário Antonio Candido, seja de um grupo mais jovem decorrentes de pensamento distintas, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa – todos ávidos por Sartre.
No mês passado o mundo inteiro lembrou o centenário de um dos mais falados e polêmicos filósofos do século 20. E no Sesc não foi diferente. O projeto Sartreanas – Sartre 100 Anos, idealizado pela diretora de teatro Eugênia Thereza de Andrade, reuniu atores, cantores, filósofos e escritores para festejar o legado do homem que durante toda a sua vida celebrou a liberdade. “A idéia foi comemorar o centenário de nascimento de Sartre em um lugar onde se podia ouvir boa música e conversar com algumas pessoas que fazem parte da reserva moral do País”, disse Eugênia Andrade.
O escritor João Ubaldo Ribeiro, o artista plástico Emanoel Araújo, a historiadora da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida Aquino, o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, o jornalista Marcelo Coelho e o diretor de teatro Luiz Carlos Maciel participaram do evento em bate-papos com o público sobre a importância e a ligação de cada um deles com Sartre. O mundo sartriano também foi homenageado com muita música e teatro. Os shows de jazz e MPB ficaram por conta de Mônica Salmaso, Carlos Fernando e Luzia Dvoréc. Já a programação de teatro contou com nomes como os atores Mika Lins e Chico Diaz, que representou Simone de Beauvoir, a companheira de Sartre por toda a vida, na peça Conversa no Café de Flore. Também esteve em cartaz, durante o evento, O Diabo e o Bom Deus (foto), escrita por Sartre em 1951, com direção de Eugênia Andrade. A peça já havia tido temporadas no Sesc Consolação e em outras cidades do Brasil no ano passado.
Conversa no Café de Flore, dirigido por Luiz Carlos Maciel, foi construído a partir das cartas trocadas entre Sartre e a escritora Simone de Beauvoir, organizadas na forma de diálogo. Para Maciel, os textos expõem a vida privada do casal como uma extensão da filosofia de Sartre. “Como o existencialismo postula a liberdade humana em todos os planos, era inevitável que essa doutrina também tivesse o amor livre como um de seus pressupostos”, diz o diretor, explicando que a fidelidade entre Sartre e Simone acontecia de maneira ainda hoje não convencional. “Eles foram fiéis um ao outro por mais de 50 anos, num nível profundo de sua relação. Mesmo assim, ambos tiveram uma vida amorosa bastante rica e diversificada, tanto na juventude quanto na maturidade”, conta.
Sucesso de um filósofo - A diretora Eugênia Thereza de Andrade descobriu Sartre nos anos 60, durante a ditadura militar. A admiração pelo filósofo francês resultou na montagem de O Diabo e o Bom Deus, em 2004. O êxito a levou a criar o evento Sartreanas – Sartre 100 Anos, para comemorar o centenário de nascimento do pensador. A seguir, os principais trechos da entrevista:
A senhora disse que ficou surpresa com a grande presença do público no espetáculo O Diabo e o Bom Deus, também de Sartre. Qual era sua expectativa?
Minha expectativa era de dois dias cheios de convidados e amigos e umas 60 a 70 pessoas. A grande quantidade, e ainda voltar gente, foi uma surpresa. Mas o sucesso de O Diabo e o Bom Deus foi em todo o Estado de São Paulo. No teatro do Sesc Santos, que nem atores da Globo lota, foram 782 pessoas e 211 voltaram. No elenco não tinha nenhum ator da televisão, não tinha menina bonita ou nua, nem candidata a mostrar a genitália na Playboy ou ator sarado. Eu não sou uma diretora de teatro famosa nem colunável, e diria até que vivo fora da moda. Eu penso que é mais uma canalhice a que se diz de nosso povo, que ele só gosta de Big Brother. Como artista, resisto ao cultivo dessa baixa auto-estima. O sucesso da peça me deu a idéia de comemorar o centenário de nascimento de Sartre com um café [uma das atividades do projeto Sartreanas – Sartre 100 Anos, veja boxe O mundo de Sartre] onde se pode ouvir jazz e canções brasileiras e conversar, ouvir algumas pessoas que fazem parte da reserva moral do País.
A razão do grande sucesso de O Diabo e o Bom Deus foi sua direção?
Acho que não. Também nunca sabemos direito por que se faz sucesso e ainda mais esse tipo de êxito, sem mídia. Talvez eu tenha um mérito: ter lembrado de O Diabo e o Bom Deus, porque ali Sartre fala das razões da guerra. Isso me motivou por eu ter uma ferrenha atitude contra a guerra do Iraque e de Israel contra os palestinos. Outro mérito meu foi transformar um texto sério numa coisa que qualquer um pode entender. Faço teatro para o ator fazer feliz e o espectador ver sentido em ir ao teatro. O Maciel [diretor de teatro Luiz Carlos Maciel] diz que faz um “sucesso genuíno”. Levanto a hipótese de que muitas pessoas estão cansadas do banal e que a maior parte delas gostaria de ir ao teatro, mas não tem recursos para isso. Quando eu e o produtor resolvemos colocar o preço da peça a 10 reais, e ainda tinha um preço menor para comerciários e terceira idade, facilitou.
Existe um site do evento Sartreanas [www.sescsp. org.br/sesc/sartre]. Qual o objetivo desse braço virtual do projeto?
O site é para informar as pessoas sobre a comemoração e estimular e despertar os jovens e as pessoas para atividades significativas para a cultura. Sartre é considerado o maior pensador do século 20, sua obra é enorme e ainda escreveu peças de teatro lindas. Uma delas é essa com a qual surpreendentemente fazemos muito sucesso, O Diabo e o Bom Deus, em que sete atores e uma atriz representam 17 personagens.
A senhora percebe ainda nos dias de hoje a repercussão da obra dele no teatro e no meio intelectual?
Penso que as idéias de Sartre têm e terão sempre repercussão sobre a vida, que afinal é o mais importante. E qual era a idéia principal? A questão da liberdade. Para Sartre o homem é livre para escolher. Sua escolha será sempre um gesto político, portanto, tem conseqüências e você é responsável por isso. Decidir é um ato consciente. A atualidade dessa idéia é extraordinária. Vejamos a questão ética na vida brasileira. É uma escolha. Ser corrupto, vulgar, oportunista ou digno é um gesto de liberdade. Sartre não estava na academia, mas teve uma formação clássica. A esquerda só o criticou em poucos momentos e a direita faz seu papel, criticar a nós, da esquerda, principalmente se existe um cara tão genial de esquerda. Já pensou quanta inveja?
Como João Ubaldo atendeu a esse convite, se ele quase não comparece a eventos?
Primeiro, nós somos amigos há cerca de 40 anos. Desde a juventude, na Bahia. Eu estreava no teatro e ele era jornalista, já escrevia. Vivi em dupla com Glauber Rocha, seu maior amigo, junto com Luiz Carlos Maciel. Até já interpretei textos curtos, políticos, escritos pelos três. Ele veio por essa amizade sólida e também porque sabe que me dedico a coisas sérias com as quais ele se identifica.