Postado em 07/07/2005
Em entrevista exclusiva à Revista E, o escritor fala dos célebres tipos que já criou durante a carreira e de sua relação com a música
Fotos: Adriana Vichi
Filho do renomado escritor Erico Verissimo, Luis Fernando Verissimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre. Passou por escolas nos Estados Unidos durante o período em que viveu no país acompanhando o pai, que lecionava em uma universidade da Califórnia. “Por acidente”, como costuma dizer, seguiu o mesmo caminho do pai. A despeito dos motivos que o levaram à literatura, ao passar os olhos por qualquer lista de livros mais vendidos, nota-se que os leitores agradecem o imprevisto. Verissimo, um dos maiores best-sellers do País, é autor de Comédia da Vida Privada – série de crônicas transformadas em programa da TV Globo –, As Mentiras Que os Homens Contam (2000) e do personagem Analista de Bagé, criado para Jô Soares. Na entrevista concedida com exclusividade à Revista E, o escritor fala da infância, de suas desilusões políticas e da predileção pelo humor. A seguir, os melhores trechos.
A lembrança mais remota que tenho é a de querer ser aviador. Garoto ainda. Depois pensei muito em ser arquiteto. Queria estudar arquitetura. Mas acabei não estudando nada. Só com mais de 30 anos é que comecei a trabalhar em jornal, escrever. Foi quando percebi que tinha vocação para isso. A minha educação foi meio complicada porque nós viajávamos bastante. A primeira escola que freqüentei foi nos Estados Unidos. Praticamente me alfabetizei em inglês. Depois fui para os Estados Unidos outra vez, para o high school – que corresponderia ao nosso ensino médio, na época chamado de clássico ou científico. Quando nós voltamos dos Estados Unidos, eu estava com 18 ou 19 anos e parei de estudar. Tinha horror a escola. Não gostava de estudar.
Não. Nenhuma idéia de escrever. Só tinha feito algumas coisas para a escola. Mas fora isso não tinha nenhuma intenção de ser escritor. Lia muito, mas escrever, nada.
Todos. Olha, eu lia de tudo. Era um leitor voraz. Devorava tudo. Mesmo livros de aventura e tal. E em casa tinha a biblioteca do pai. Quer dizer, livro era o que não faltava. Livro de tudo quanto é jeito. Foi uma progressão mais ou menos natural. Lia história em quadrinhos, depois livro de aventura, de Tarzan. E eventualmente coisas mais sérias.
Eram quadrinhos do Tarzan ou eram as histórias do Edgar Rice Burroughs [autor que criou o personagem Tarzan]?
Eram as histórias. Eram editadas aqui no Brasil. Editora Nacional, se não me engano. Tinha toda a coleção de Tarzan. Era uma maravilha.
Bom, o pai tinha aquela ligação com a Editora Globo, em Porto Alegre. Comecei a trabalhar lá. Quando eu decidi que não ia mais estudar, estava como um vagabundo dentro de casa, me botaram a trabalhar. Comecei a trabalhar no departamento de arte da Editora Globo, fazendo capas e desenhos e coisas para a vitrine da loja. Eu trabalhava com o diretor do departamento, meio como que aprendiz.
Gostava. Tinha jeito para desenhar. Trabalhei na secretaria da editora também. Fazia planejamento gráfico dos livros. Bem mais tarde resolvi sair de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Meu sonho era ir para a Europa, para Londres. Fazer alguma coisa em cinema, estudar cinema. Mas fiquei no Rio, lá me casei.
Desde 1964. Casamos na época da revolução de 64. Já vai para 42 anos. Nasceu nossa primeira filha, no Rio de Janeiro, e eu estava sem nenhuma perspectiva, sem emprego, sem nada. Tinha tentado alguma coisa no Rio que não tinha dado certo. Resolvemos voltar para Porto Alegre. Lá encontrei um amigo nosso, do pai, que trabalhava no Zero Hora e me convidou para trabalhar no jornal. Naquela época não precisava ter diploma de jornalismo. Fiz de tudo na redação. Naquela época era bem precário, não é o que é hoje. Preparei copidesque, fui editor, cobri a parte cultural, fui editor de nacional e internacional. Tinha carreiras vertiginosas dentro do jornal, que era muito pequeno. O principal cronista saiu, passou para o jornal rival, que era o Correio do Povo. Foi quando me convidaram para entrar no lugar dele. Eu passei a ser só daquele espaço assinado. Comecei no jornal em 1966. Eu tinha 30 anos.
Quem lê muito, como é o meu caso – eu sempre li muito, desde garoto –, aprende lendo. Aprende com os outros. Não que vá imitar os outros. Quando começa, já sabe mais ou menos. Principalmente quem começa a escrever com 30 e tantos anos. Depois de passar tanto tempo lendo, já está mais ou menos pronto. Depois a gente aprende fazendo. Aprende quando começa a escrever. Mas a parte principal a gente já sabe. Depois de ler muito, a gente já sabe.
E o estilo? Como é o processo de depurar, chegar a um estilo? O que você se recorda disso?
Foi importante o fato de aprender a ler em inglês. Acho que de certa maneira determinou a minha maneira de escrever. Um estilo mais despojado, informal. Seria diferente se eu tivesse uma formação só de português. Mas a gente por certo vai depurando. Às vezes revejo coisas que escrevi tempos atrás e me surpreende o tamanho. Como era mais prolixo! Hoje consigo fazer uma coisa mais concisa e curta.
Como você descobre o humor como estilo, como gênero? De que maneira isso aparece na sua carreira?
É mais uma questão de técnica. Sempre me interessei muito por humor. Nunca fui um humorista natural, que tem uma piada pronta para a situação, ou que tem uma reação humorística para as coisas. Pelo contrário, sou mais para o lado depressivo que propriamente piadista. Sou um desastre para contar uma piada. Quando comecei a coluna assinada, a coisa mais leve, mais próxima do humor, é a que tinha mais resposta. Meio que fui para esse lado. Mas não sou um humorista natural, espontâneo.
Desse universo de humor, quem você sempre leu? Quem é importante na sua formação?
Rubem Braga um pouco mais. Paulo Mendes Campos, mais literário. E o Antônio Maria, principalmente, que eu acho que foi um dos melhores deles todos, mas está meio esquecido hoje.
Eu gostava porque ele aproveitava de tudo para fazer uma crônica. Ele pegava pequenos anúncios classificados no jornal e inventava uma história em cima. Qualquer coisa daria ponto de partida em uma crônica. Ele também tinha seu lado mais sério. Toda a coisa da infância dele em Pernambuco, que é muito bem vivida. Ele também sabia escrever letra de música. Era um cara que fazia de tudo. Fazia bem. Naquela época também tinha o Sérgio Porto. Um grande humorista.
Eu acho que consigo produzir muito justamente porque não sou muito organizado. Não tenho rotina certa. Depende muito das discussões do momento. E outras coisas ficam em segundo plano. Eu não sou de planejar muito trabalho, mas, quando sento ali na máquina, decido o que vou fazer, escrever. De que maneira vou escrever. Às vezes tem um assunto que está no ar e a gente se obriga a comentar. Um acontecimento da política ou qualquer coisa assim. Ou não. Tem vezes em que sento ali, sem idéia nenhuma, e invento uma história. Isso a crônica tem de bom. Ela pode ser o que a gente quiser que ela seja. Pode ser até uma ficção, um conto, uma coisa meio experimental, um exercício de estilo. Pode ser um comentário político, sobre futebol. O que quiser e sempre continua sendo crônica. O fato de não estar limitado a um gênero ou tema ajuda bastante.
Cada um teve um começo diferente. Por exemplo, o Analista de Bagé foi um personagem que criei para o Jô Soares, na televisão. Na época eu participava da equipe de criação do programa dele. Inventei um gauchão que era garçom num restaurante francês, fino. Era um contraste entre o tipo do gauchão grosso e o restaurante fino. O Jô Soares aproveitou esse personagem algumas vezes. Ele tinha gostado de fazer, então passei a aproveitá-lo em crônicas. Só que mudei: em vez de ele ser um garçom grosso num restaurante fino, era um gaúcho grosso psicanalista. Outro personagem foi a Verinha de Taubaté. Ela surgiu para fazer uma crítica política na época do governo Figueiredo. O ministro da Fazenda era o Delfim Netto. Ninguém acreditava mais no governo. Aquele personagem era a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo. A intenção era fazer crítica bem-humorada ao governo. O Ed Mort foi uma paródia à literatura policial americana. Uma versão brasileira daquele tipo de investigador americano, ou ao policial americano de cinema também. Crítica de costumes: pelo fato de ele ser brasileiro, nada dava certo. Não conseguia resolver nenhum caso. Quando ele resolvia um caso, pagavam-no com cheque sem fundo. Coitado. O Ed Mort era um desastre.
Eu já me interessava por política desde quando comecei a escrever, na época brava. Tinha censura. Criticar governo, criticar militares era assunto proibido. Lá em Porto Alegre não havia censura ostensiva à imprensa. Os próprios jornais é que se autocensuravam para evitar problemas. Portanto, certos assuntos eram proibidos de ser abordados. Mas depois acabou a censura e se podia escrever sobre tudo. Mas sempre escrevi sobre política. Minha participação na página de opinião do Jornal do Brasil coincidiu com o começo do governo do Fernando Henrique [Cardoso]. Eu escrevia lá diariamente. Foi quando apareceu mais aquela posição que era importante para o jornal. E eu já saí criticando o Fernando Henrique quando todo mundo estava a favor. Por isso teve uma certa notoriedade no que eu fazia. Mas na verdade eu sempre fiz isso. Não foi só naquela época, não. O que teve foi aquela coincidência de eu começar na página de opinião do Jornal do Brasil na época em que ainda era um veículo importante, quando iniciou o governo do Fernando Henrique.
Você acha que o tempo corroborou suas críticas ao governo de Fernando Henrique Cardoso?
Hoje a gente pode fazer o mesmo tipo de crítica ao Lula: essa política econômica voltada ao capital financeiro e tudo mais. Mas eu acho que estava certo. Fernando Henrique teve oportunidade de fazer um governo bem mais progressista do que foi. O Lula também. Foi eleito para mudar principalmente a política econômica e continua a mesma coisa. Talvez até mais rigorosa do que antes.
Eu sempre me considerei um cara de esquerda, embora nunca tenha participado de nenhum tipo de ativismo ou pertencido a partidos. A minha formação política foi muito determinada, de novo, pela experiência americana. Naquela idade em que as pessoas começam a ter atividade política, na adolescência, com 16 até os 20 e poucos anos, eu estava nos Estados Unidos. Fui muito condicionado pela política de esquerda americana. Liberais americanos, antimacarthismo [postura contrária ao macarthismo, movimento anticomunista americano dos anos 50, dirigido pelo senador Joseph McCarthy], anti-racismo, e não tanto a realidade brasileira. Muita gente da minha geração estava na rua apanhando de polícia, em manifestações e tal. Disso eu nunca participei. Mas sempre me considerei um homem de esquerda.
Sim. A minha geração seria o Fernando Henrique. Não era de extrema esquerda, mas sempre foi um homem identificado com a esquerda. Tinha um diagnóstico certo, mas, quando teve o poder na mão, não fez o que devia fazer. Muitas concessões e tal. Nesse sentido, a minha geração quando chegou ao poder não deu certo. Não fez o que a gente esperava.
O problema é que a história do povo brasileiro tem sido a mesma desde sempre. A elite, desde a época do descobrimento do Brasil, da escravatura, sempre manteve seus privilégios e poderes. E essa é a mesma elite que está aí hoje. O povo brasileiro nunca foi sujeito da própria história. Sempre acompanhou a história sendo feita pelos outros. A independência do Brasil foi uma questão de família. Dom Pedro I se rebelou contra o pai e decretou a independência. A escravatura acabou aqui por influência de fora, dos ingleses e tudo mais. O Brasil foi o último País do mundo a abolir a escravatura. Sempre foi pela conveniência da elite, dos poderosos. É a história do Brasil. Sempre foi assim e continua sendo. O Lula, com toda aquela coisa que ia mudar, finalmente um partido popular no governo, cara de origem humilde, sindicalista e tal, identificado com a massa, e no entanto ele foi cortado pela elite brasileira. Quem é que manda hoje na política brasileira? O capital estrangeiro. Foi assim no governo Fernando Henrique, foi assim em todos outros.
E o futebol? Esse êxodo de jogadores, todo esse dinheiro, você é otimista em relação a isso?
O Brasil é tão fértil em matéria de produzir bons jogadores de futebol! É um contra-senso: o melhor futebol do mundo na verdade não consegue se manter economicamente. Não consegue manter os bons jogadores, seus clubes, não tem sido bem recebido pelas empresas e tal. Aqui se produzem os melhores jogadores do mundo, que jogam o melhor futebol do mundo, há um público imenso, apaixonado pelo futebol, e economicamente é uma atividade que não dá certo no Brasil. O clube vive de vender os seus melhores jogadores. Vivem endividados. É um contra-senso. Isso tem muito a ver com essa nova administração esportiva. E, obviamente, o pessoal vai para o mundo rico, já que aqui não dá certo.
A maioria dos meus livros é de crônicas já publicadas. São feitos com a tesoura. Tem de escolher as crônicas de mais interesse, fazer uma seleção e juntar. É trabalho feito, em grande parte, pela própria editora. E, no meu caso, os romances que escrevi, que são quatro até agora, também foram mais ou menos realizados assim, como um trabalho jornalístico, em que os espaços foram encomendados. Em alguns casos, o próprio tema já estava definido. Há romances que fazem parte de séries brasileiras. Teve a série dos pecados capitais [série Plenos Pecados, da Editora Objetiva, para a qual Verissimo escreveu Clube dos Anjos, de 1998], depois escrevi Borges e os Orangotangos Eternos (Companhia das Letras, 2000), para a série Literatura ou Morte. E o último que eu escrevi – a idéia é que cada escritor escrevesse sobre um dedo da mão – é sobre o polegar. Mas acho que não importa muito como nascem os livros. Importante é se o livro é bom ou ruim. O que a gente faz com a idéia.
Eu acho que foi Clube dos Anjos. Foi o que eu gostei mais. Uma história que envolve o pecado da gula. Esse livro está mantendo uma carreira internacional interessante. Está saindo em todo o mundo. Até em lugares estranhos, como Sérvia, Rússia, Grécia. E Borges e os Orangotangos Eternos também está tendo uma boa carreira. Até ganhou um prêmio na França, no ano passado. Melhor livro latino-americano traduzido para o francês.
Já me chamaram a atenção para o fato de que escrevo muito sobre casais se separando, se desentendendo, se divorciando. É algo completamente oposto à minha experiência pessoal, casado há 40 e tantos anos. Acho que relacionamento desse tipo sempre tem uma história. Geralmente é uma história de desencontros, de desentendimentos. No fim fazem a reconciliação e tal. São histórias sobre os problemas de amor. Ou de personalidade, diferenças. Não me havia dado conta de que escrevia tanto sobre casais se desentendendo. Mas depois notei que é verdade. Não deixa de ser uma escrita sobre o amor.
Houve uma época em que você morava metade do ano no Brasil, metade fora. Foi isso mesmo?
Foi. Era época em que as crianças estavam crescendo. Moramos, certa vez, quase um ano com as crianças em Nova York. Depois a mesma coisa em Roma. Depois Paris. O tipo de trabalho que eu faço pode ser feito teoricamente em qualquer lugar do mundo. Dava para ter uma experiência. Principalmente por se tratar de cidades de que eu gostava muito. Nova York, Roma e depois Paris. Foi muito bom. A gurizada interrompia os estudos aqui. Havia estudos nas cidades a que íamos. Não atrapalhou os estudos deles. Foi uma experiência.
Mas você sempre acaba voltando para Porto Alegre. Nunca desejou voltar a morar no Rio? Ou morar em São Paulo?
Eu moro na casa em que me criei, a casa que era do meu pai. Tenho essa ligação forte com ela, essa base emocional que acho importante. Meu pai também ficou conhecido e tal, mas continuou morando em Porto Alegre. Acho importante ter essa estabilidade emocional.
Ah, Roma. Tem um trânsito terrível. Eu tinha um carro lá. E coisas assim como ir ao banco, pagar conta eram dificílimas em Roma. Já Paris é uma cidade que ao mesmo tempo tem o pitoresco de Roma e é uma cidade que funciona, o transporte funciona. Nova York também tem o seu charme, mas é outro tipo de coisa. É muito bom lá. Se tivesse de escolher entre as três, escolheria Paris. A gente tem voltado sempre.
Não, mas deveria tocar. Instrumento de sopro a gente teria de dar uma assoprada todos os dias. Mas eu não consigo, não tenho tempo. Mas eu toco numa banda lá em Porto Alegre. Uma banda muito boa. São todos músicos de verdade. Chama Jazz 6. Eu sempre digo que são cinco músicos e um metido a músico. É uma atividade regular. A gente toca praticamente uma vez por semana, às vezes mais. Tocamos no interior do estado, já tocamos em São Paulo, Salvador. Ainda vamos chegar a Nova York, um dia. Sempre gostei muito de música.
Eu acho que não. Já tentei fazer um paralelo. Por exemplo, uma crônica com o jazz. Aquela coisa de estabelecer um tema, depois fazer variações de improviso e voltar ao tema no fim. Mas acho que é uma analogia um pouco forçada. Não funciona. São coisas diferentes. Pensamentos diferentes.
Do que todo mundo gosta. Chico Buarque, Caetano Veloso. Gosto de samba mais antigo, também. Cartola, aquela turma, Paulinho da Viola. Eu gosto de todo tipo de música. Eu era muito mais ligado em jazz. Sabia tudo sobre jazz. Mas eu gosto de tudo.
Eu acabo botando jazz e todo o pessoal mais antigo. Não confio em nenhum músico que não esteja morto há pelo menos uns três anos. Tem um saxofonista americano que eu gosto muito, o Zoot Sims, que já morreu há 20 anos, mas continua bom.