Postado em 04/03/2005
“Manhã de sábado (1876). Caro Senhor (...) encontro-me em situação delicadíssima, sem um tostão, e sem saber onde arranjá-lo neste momento. Passei o dia de ontem sem nada conseguir, dirijo-me portanto mais vez ao senhor, pedindo-lhe que me desculpe o atrevimento. Dois esboços no gênero e no tamanho de sua ponte por 150 francos. Caso gostasse dos dois, isso resolveria de momento meus problemas. Desculpa não ir pessoalmente, mas receio abusar, e tenho vergonha, peço-lhe a gentileza de mandar a resposta pelo portador. Mais uma vez, perdão.
Do seu, Claude Monet.”
“Manhã de terça, 6 de março de 1877
Caro Senhor Viatte, (...). Amanhã tenho que pagar uma grande quantia e se V. me quisesse ajudar poderia agora concluir o pagamento do ‘Caminho de Ferro’ que escolheu, visto que já me entregou 200 francos. Peço-lhe sempre para me pagar antecipadamente, mas faço-lhe um preço tão baixo que o dinheiro não chega para nada. Desculpe-me, e até breve.(...)
Claude Monet.”
Durante a leitura de um livro, que posteriormente foi tema de meu mestrado, deparei-me com várias cartas do pintor impressionista francês Claude Monet e que me causaram um forte impacto emocional. As duas cartas acima transcritas me tocaram profundamente, e pensei no artista tão talentoso e homem sensível, cuja obra ficaria como patrimônio da humanidade, passando também por tantas privações e humilhações para sobreviver.
Grande surpresa quando anos mais tarde deparo-me com a correspondência de Monet no Museu Marmottan, em Paris. Ao retomar o tema da literatura epistolar, pude refletir um pouco mais sobre a diversidade e riqueza de seu conteúdo. Embora vivamos a época da chamada cultura tecnológica, o ato de escrever cartas ainda permanece atual, embora os suportes e os equipamentos tenham se transformado através dos tempos: papiro, papel, caneta-tinteiro, máquina de datilografia, telefax, impressão a laser, correio eletrônico.
As cartas são registros de memória que tornam pública a trajetória de vida de indivíduos comuns, de personalidades ilustres, de intelectuais e de artistas de épocas e nacionalidades distintas. Elas testemunham afetos e desafetos, expressam pensamentos, utopias e ideais, documentam descobertas, pesquisas científicas, falam de poesia, política e ficção. Mas também denunciam a opressão, a intolerância, a dor do exílio, as torturas e as violências, e muitas delas serviram ainda como estratégias e senhas de guerras. A solidão das prisões, dos hospitais, dos hospícios faz parte do mundo da correspondência.
O revolucionário Karl Marx escreveu carta ao amigo Kugelmann: “(...) No momento, estou mais preocupado com a economia privada do que com a pública. Engels ofereceu-se para dar fiança a um empréstimo meu de £100-£150, a 5% de juros, a primeira metade devendo ser paga em janeiro, a segunda em julho. Até agora, no entanto, não fui capaz de achar o emprestador (...)”.
Existem exemplos de fiéis apaixonados pela epistolografia em todos os tempos: Pero Vaz de Caminha, Marco Pólo, Padre Antônio Vieira, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, James Joyce, Machado de Assis, Mário de Andrade, Freud, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Hannah Arendt, Oscar Wilde e Kafka são alguns deles. A força e a magia da correspondência estão presentes no filme Nunca te Vi, Sempre te Amei, que retrata a troca de cartas entre um livreiro londrino e uma americana aficionada por livros. Dali surge a paixão entre os dois, sem que nunca eles tenham se encontrado.
Nenhuma tecnologia conseguirá substituir a deliciosa sensação da chegada do carteiro à porta, da abertura do envelope e do frio na barriga quando nos deparamos com a escrita manual ou digitada da carta do amigo, de um familiar ou do amor distante. Mãos à obra com as cartas.