Fechar X

Entrevista

Postado em 01/03/2005

Fotos: Adriana Vichi

 

A psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora geral do Projeto de Sexualidade do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (ProSex-USP), esteve à frente de uma pesquisa, realizada em todo o Brasil com mais de 7 mil pessoas, que passou a limpo a saúde sexual do brasileiro. Os resultados, publicados no livro Descobrimento Sexual do Brasil (Editora Summus, 2004), desvendam os mistérios que rondam a questão da sexualidade ao tratar de temas como orientação sexual, fidelidade, desejo, orgasmo e doenças sexualmente transmissíveis. Em conversa exclusiva concedida à Revista E, a médica aborda alguns desses assuntos e destaca a importância de pesquisas na área, tanto para o desenvolvimento de políticas públicas, quanto para o bem-estar e qualidade de vida do indivíduo. “O sexo é a vitrine da saúde física e emocional, tanto do homem quanto da mulher”, explica. A seguir, alguns trechos da conversa.

 

A senhora acabou de organizar uma grande pesquisa. Vamos começar falando sobre ela.

Foi uma pesquisa realizada em todo o Brasil. Nós procuramos abranger o maior número possível de estados, acabamos visitando desde Belém do Pará até Porto Alegre, passando pelas mais diversas capitais, e por várias cidades do interior do estado de São Paulo também. No final, nós visitamos 18 cidades paulistas e 13 estados brasileiros. Não foram exatamente entrevistas, foi um questionário anônimo, auto-responsivo, entregue a 7.103 brasileiros – 55% de homens e 45%  de mulheres, todos entre 18 e 80 anos. Nós não queríamos menores de 18 porque a vida sexual descrita seria muito incipiente, não corresponderia à realidade da vida sexual de um brasileiro. Quanto às classes sociais, foram as mais diversas. O questionário era feito na rua, digo, praças, parques, praias, shoppings etc. E era um movimento absolutamente voluntário. As pessoas passavam, viam o banner do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas e queriam saber do que se tratava. Elas acabavam se deparando com o questionário e respondiam ou não, dependendo da sua disposição.

 

Qual o objetivo de uma pesquisa como essa?

Em 2000 eu fiz uma pesquisa populacional com 3 mil indivíduos, só que pegando mais a zona costeira do Brasil. Sendo assim, meu objetivo, agora, era ir mais para o interior do País, pegar, por exemplo, o Mato Grosso, o Pará e outros estados que não haviam sido cotejados com o estudo populacional de 2000. Mas por que um estudo populacional sobre sexualidade? Porque até 2000 nós só tínhamos dados importados acerca do assunto.

 

Mas em que dados o governo se baseou, por exemplo, para realizar campanhas como as de combate à Aids, controle de natalidade etc.?

O Ministério da Saúde faz um levantamento, mas esse também foi iniciado na época em que nós realizamos a nossa pesquisa, ou seja, por volta de 2000. Até então, tudo que se conhecia sobre sexualidade era importado de estudos internacionais. Foi quando resolvemos buscar nossos próprios dados, mesmo porque os povos são diferentes, claro. Queríamos saber quais eram as peculiaridades do brasileiro – até para poder iniciar um trabalho de tratamento e prevenção. Especialmente a prevenção, que é muito importante.

 

Sempre que se fala de sexualidade surgem os mitos. Por exemplo, o de que o homem brasileiro é, como se diz, machão. Quanto disso é verdade?

Olha, de fato o brasileiro é um povo altamente sexualizado. Isso acabou sendo confirmado, e não resta dúvida. A freqüência sexual do brasileiro é de duas a três relações por semana, em média, pegando uma população de 18 a 80 anos. Agora, quando você pega uma população mais jovem, nota-se que as relações sexuais são quase diárias. E a freqüência só não é maior porque falta privacidade – ou seja, as pessoas não estão morando juntas etc. Mas, mesmo na faixa dos 60 ou 70 anos, ainda há vida sexual.

 

E quais as diferenças entre homens e mulheres?

Das mulheres, 7,7% não fazem sexo nem sentem falta. No caso dos homens, 2,5% não fazem sexo. Em percentagens exatas, 95% da população fazem sexo e 96% consideram o sexo fundamental para a harmonia no casamento. O que revela que a importância do sexo no casamento é vista da mesma maneira tanto por homens quanto por mulheres.

 

Esses números nos colocam em alguma lista dos povos que mais ou menos fazem sexo no mundo?

O que se nota é que nós falamos de sexo de forma mais evidente, nossa forma de viver a sexualidade é muito mais tranqüila, nós não temos esse problema de fazer piada sobre sexo, por exemplo. Nós não somos tão rígidos. Porém, não somos um povo muito saudável sexualmente, não. Metade da população brasileira, tanto de homens quanto de mulheres, tem algum problema sexual. Os homens, especialmente, sofrem de disfunção erétil – antigamente chamada de impotência –, e ejaculação precoce. O estudo que acabamos de realizar mostra que aos 40 anos um em cada 100 homens tem falta completa de ereção. Aos 70 anos de idade são 13 homens a cada 100. Ou seja, dos 40 aos 70 anos, a dificuldade de ereção dos homens aumenta 13 vezes.  Já a ejaculação precoce está presente em qualquer idade, não é uma questão de doença física, não é uma questão de envelhecimento também, e é algo que acomete cerca de 26% da população masculina.

 

E quanto às mulheres?

Já, entre as mulheres, os principais problemas são a falta de desejo na mulher mais velha e a dificuldade para o orgasmo na mulher mais jovem. As mais jovens não têm experiência, ainda não se entenderam bem com o parceiro, têm dificuldade de colocar aquilo de que gostam e aquilo de que não gostam para que o ato sexual se dê também para satisfação delas. Então essa mulher acaba terminando o ato muito frustrada. Quando vai se tornando mais velha ela aprende a falar, a reclamar, a dizer do que gosta, e aí o ato sexual vai se tornando mais interessante para a mulher. Além disso, no caso das mulheres ainda, há a dor na relação sexual, que atinge 18% das mulheres. Ou seja, 1/5 das mulheres brasileiras tem dor quando faz sexo. Isso pode ser tanto de causa emocional quanto de causa física. Resultado: somando todos os problemas sexuais das mulheres e dos homens, a vida sexual de metade da população não está como as pessoas gostariam.

 

Mas a senhora mencionou também o aumento de experiência da mulher como fator benéfico. Ou seja, a idade está do lado da mulher?

A idade é uma grande conselheira da mulher. Ela vai se tornando mais desinibida. Tanto que a fase áurea do homem se dá logo no início da vida sexual, quando ele tem mais ereção, quando ele está mais vigoroso. Já na mulher é o contrário, ela vai melhorando por volta dos 30, 35 anos, que é quando está vivendo o seu maior vigor sexual, porque ela está mais à vontade, mais consciente do poder que tem, de sua condição de feminilidade. É quando a mulher se torna mais interessante.

 

E quais as causas, digamos, não físicas para esses problemas sexuais?

Uma delas é o desemprego, que leva as pessoas, tanto homens quanto mulheres, a ter duas vezes mais problemas sexuais do que a população empregada. Ao comparar 100 homens empregados com 100 homens desempregados, vemos que haverá duas vezes mais casos de disfunção erétil no grupo dos desempregados em relação ao que está empregado. Já, entre as mulheres, as que estão ociosas, que não têm como manter a casa – muitas vezes mulheres separadas – e que não têm um namorado apresentam duas vezes mais problemas sexuais do que as mulheres que estão trabalhando. Outro dado muito interessante é que, quanto mais instruído o indivíduo, melhor o seu desempenho sexual. Isso é um dado que destrói outro mito: o de que uma pessoa menos instruída seria sexualmente muito mais livre. Isso não é verdade. E é fácil entender o motivo. Uma pessoa que tem menos acesso à cultura e à educação acaba criando mais mitos pessoais, acumulando mais conteúdos errôneos, e isso tudo, cultivado, acaba dificultando o desempenho. Mulheres universitárias, quando comparadas a mulheres que têm só o nível primário ou secundário, são mais sexualizadas. Têm mais interesse em atividade sexual e fazem mais sexo.

 

E quanto à influência da religião no sexo?

Acho que a religião, em si, não atrapalha. Acho que acaba atrapalhando no caso de pessoas que já têm uma dificuldade sexual, que caminham para opções religiosas mais rígidas, com menos condições de liberdade sexual. É a própria pessoa procurando justificar sua dificuldade. E ela o faz por meio de uma educação religiosa mais compatível, que não aceita a perda da virgindade antes do casamento, que não aceita relacionamentos que não sejam os tradicionais. Ao passo que a medicina, hoje, considera a homossexualidade como uma forma de fazer sexo, não mais como uma doença. Isso revela um embate de opiniões entre a religião e a ciência.

 

É como se a religião fosse uma espécie de amparo?

Exato. A religião aparece como uma forma de justificar a sua dificuldade diante do sexo. E, como tudo na vida, as escolhas vão ser feitas com base em formas que satisfaçam suas limitações e suas possibilidades. Logo, a pessoa não vai escolher uma religião permissiva, aberta, porque, de repente, para a libido dela isso não é nada bom. Preferencialmente, vai escolher religiões que adotem posturas mais conservadoras. Hoje estamos vendo uma volta do incentivo à abstinência sexual. É uma tendência norte-americana que vem se alastrando e, inclusive, conseguindo adeptos no Brasil. Pessoas que pregam a abstinência sexual como uma forma de purificação, uma forma de se proteger das doenças, especialmente das doenças sexualmente transmissíveis, claro. Mas, acima de tudo, se trata de uma opção e não de uma falta de opção.

 

Como é o sexo na adolescência? Dormir em casa com o namorado, o chamado “ficar”...

Várias décadas atrás, uma garota chegava aos 15 anos já quase se casando. Ela tinha permissão para viver a sua vida sexual com o marido. Só que era um início da vida sexual “abençoado”, porque era dentro do casamento. Mas as mulheres começaram a se emancipar, trabalhar, estudar... Conclusão: adiaram o início da vida matrimonial e com isso o que acabou acontecendo é que não deu para segurar a vida sexual até o casamento, então a vida sexual começou a ocorrer fora do matrimônio. E, hoje, o que acontece? A iniciação sexual das meninas se dá na mesma época da iniciação sexual da minha avó. Só que minha avó com 16 anos já era mãe. A natureza deixa as pessoas prontas para o sexo a partir da pré-adolescência, quando os hormônios sexuais passam a ser produzidos e fazem toda uma transformação no corpo. No menino a barba começa a crescer, a voz engrossa, os músculos vão se desenvolver. Na menina, as mudanças se dão a partir da menarca [primeira menstruação], que ocorre por volta dos 12 anos. Cada vez mais cedo, na verdade. Hoje há meninas ficando menstruadas aos 10 anos de idade. O que é um sinal do quanto a cultura influencia a sexualidade tanto de homens quanto de mulheres. Mas nessa idade não dá para casar. Não vai viver a dois com o seu companheirinho, até porque a vida é mais longa hoje. Por que se casar aos 15 se nós vamos viver até os 80, até os 90, até os 100 anos? Afinal, antigamente se casava aos 15, mas se vivia até os 50. Nós dobramos o tempo de vida e dobramos a idade de casamento também, que agora se dá por volta dos 30 anos de idade. Então, o que não mudou é que com 10, 12, 13 anos as pessoas deixam de ser crianças e vão se tornando pouco a pouco adultos. Aí, então, o “ficar” nasceu de uma necessidade de fazer sexo, é fruto dessa mudança da sociedade.

 

E o sexo na terceira idade? O Viagra fez muita diferença para os homens?

Faz. E além disso está começando a surgir medicação para a mulher também. Reposições hormonais que dão à mulher a manutenção do desejo sexual por mais tempo, além dos medicamentos contra a depressão. Porque o que leva muitas mulheres a não querer fazer sexo é a depressão. Mulher fica deprimida muito mais facilmente que o homem. Há duas vezes mais mulheres em depressão do que homens, e a partir de uma certa idade ela é mais prevalente ainda na mulher. Por isso estão surgindo antidepressivos, reposição hormonal e medicamentos pró-sexuais para as mulheres.

 

Mas esses medicamentos para o desempenho sexual da mulher são mais recentes, não?

Bem recentes. Na verdade, uma coisa levou à outra. A partir do momento que existe um remédio que melhora a performance sexual do homem, a mulher começa também a querer que sua função sexual seja mais trabalhada. Com isso, há um prolongamento da atividade sexual que pode durar até o fim da vida. Se a pessoa tem saúde, não há por que não praticar sexo. O que inibe a sexualidade a uma certa altura da vida é que a doença leva suas conseqüências para a vida sexual, e às vezes elas são tão sérias que até inibem o desejo. E não havendo desejo não há o ciclo de resposta sexual, que se compõe de desejo, excitação, orgasmo e resolução.

 

E como se dá esse ciclo?

O desejo começa na cabeça por uma fantasia ou se inicia pelos órgãos dos sentidos. Olhar e acabar se interessando, se sentindo atraído. Ouvir uma música, ou a voz de alguém que traz uma lembrança erótica, ou um gosto de alguma comida que faz pensar em sexo. Ou até o toque de alguém que é profundamente agradável. Então os órgãos dos sentidos e o cérebro são os drives [trocadilho com os módulos periféricos de um computador por meio dos quais se pode importar dados e arquivos]. É onde começa a atividade sexual, que depois vai se desenvolvendo e tomando o corpo todo com o desejo, se transformando em excitação. A excitação leva à terceira fase do ato sexual, que é o orgasmo. Depois ocorre essa quarta fase, que é chamada de resolução. Trata-se de um relaxamento, uma volta às condições iniciais em que o corpo não estava tão acelerado como quando o ato sexual vai se desenrolando.

 

No que diz respeito a políticas públicas no campo da sexualidade, em que pesquisas como essa podem contribuir?

Eu costumo dizer que o sexo é a vitrine da saúde física e emocional, tanto do homem quanto da mulher. Cada um pode se avaliar se é ou não saudável, dependendo de como está sua vida sexual. Pratico sexo? Não pratico? Fico satisfeito? Consigo ter o sexo que eu gosto, que eu imagino que seja o mais interessante? Ou não? Não consigo, não tenho ereção, ou tenho, mas ela não é lá essas coisas? Já para a mulher: não lubrifico? Não relaxo? Não consigo ter vontade de fazer sexo? Passo meses sem pensar nesse assunto? Tudo isso deve ser valorizado como parâmetro de saúde geral. Não é mais só uma questão de saúde sexual. A falta de lubrificação da mulher, por exemplo, pode ser mesmo inibição, problema emocional, mas também pode ser diabetes, também pode ser hipertensão, também pode ser uma doença do coração. Assim como a disfunção erétil do homem. O tecido genital, a mucosa, é a mesma que existe no coração. Então, as mesmas dificuldades que o coração está vivendo podem estar se manifestando, por exemplo, no pênis. O tecido é o mesmo. Qualquer sofrimento cardíaco pode provocar disfunção erétil. E ela precede, às vezes, o problema cardíaco. Isso é algo interessante.

 

Sexo faz bem para a saúde?

Na verdade, quando as pessoas fazem sexo dizem sentir uma espécie de descarga, um alívio, uma sensação de prazer, e que é muito reconfortante terminar o ato sexual desde que se tenha conseguido ter o orgasmo. Em contrapartida, se o sexo é feito e não acontece um bom desempenho, o resultado é que a pessoa fica muito brava, decepcionada, e pode haver até uma sensação de que não valeu tanto a pena assim. Aí você me pergunta se o sexo faz bem para a saúde. Eu diria que é a saúde que faz bem para o sexo. É uma bola de neve: a saúde faz bem para o sexo, o sexo passa a fazer bem para a saúde. Explicando: quem tem saúde tem bom sexo, quem não tem saúde não vai conseguir ter bom sexo. Fazer sexo ajuda a preservar a saúde? Ajuda, claro. Claro que é muito satisfatório, é muito gratificante praticar um ato sexual, estar próximo de alguém que nos é atraente. Note que a diferença entre sexo e afeto vem se tornando cada vez mais clara para as novas gerações. Tanto que hoje um garoto de 15, 16, 17 anos sabe dizer que a menina o atrai, mas que ele não sente, além de atração, nada mais por ela.

 

A senhora diz “hoje”. Ou seja, isso nem sempre foi assim...

É a partir da década de 60 que as pessoas começaram a ser liberadas para o sexo erótico, sem necessidade de sexo reprodutor. Então, hoje, essas duas instâncias podem vir juntas como podem vir separadas. Por exemplo, ninguém é obrigado a ter filhos porque teve uma relação sexual. Assim como também pouco a pouco vai se estabelecendo que o sexo erótico pode vir acompanhado de sentimento ou não. Não tem nada mais agradável do que você fazer sexo com alguém a que você quer bem, com alguém por quem você tem profundo respeito, admiração e afeto. E é bem diferente daquele sexo que você faz mera e simplesmente por atração física. Podendo conciliar, está ótimo. Não podendo, as pessoas optam por fazer o sexo possível. Quando a pessoa quer fazer sexo e não consegue, com certeza ela vai se tornando mais irritadiça, mais arisca, mal-humorada. Isso deprime, sem dúvida. Mas nem todo mundo consegue um parceiro sexual num piscar de olhos ou num estalar de dedos, especialmente as mulheres. A pesquisa mostra que a mulher tem muito mais dificuldade de retomar a vida sexual depois de uma certa fase, depois que ela enviúva ou se separa, por exemplo. E é uma dificuldade muitíssimo maior que a masculina. Os homens a qualquer momento da vida conseguem novas parceiras. Mas aí surge a dúvida. Com que mulheres esses homens fazem sexo? Pois bem, ocorre que, quando o homem se separa, vai buscar parceiras mais jovens.

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)