Postado em 01/09/1997
Inimiga das coisas fúteis, a poetisa e romancista Clarice Lispector deixou marcas indeléveis de inspiração e beleza
CECÍLIA PRADA
Há 20 anos - no dia 9 de dezembro de 1977, isto é, na véspera do seu 57º aniversário - Clarice Lispector deixava este mundo, completando o ciclo vivencial que a trouxe, estranha, diferente, única, à história da literatura de um povo que não era o seu, de uma terra cujas raízes assimilou profunda e apaixonadamente, de um tempo em que inscreveu sua presença de maneira muitas vezes incômoda e cruel, mas sempre bela.
Judia nascida na Rússia e emigrada aos três meses, com os pais, para o Brasil, onde a família se estabeleceria no Recife, se ressentiria sempre dos que insistiam em dizê-la estrangeira, e com muita razão. A mera circunstância do nascimento não significava grande coisa para a menina que descobria o mundo ao seu redor - mestiço, tropical, luxuriante - como dádiva maior, festival de cores, sons, sensações fortes demais que perduraram na escritora madura, uma "nostalgia da infância como uma dimensão trágica". Coisa inteiramente diferente, porém, é a aura de estraneidade que sempre a envolveu, ultrapassando o mero "choque de culturas" que muitos quiseram ver, atribuindo sua originalidade à mera superposição das camadas que a faziam brasileira e tropical sobre um sedimento da ancestral e milenar cultura judaico-européia.
Razão teve, para defini-la, Antonio Callado: "Clarice era uma estrangeira. Não porque nasceu na Ucrânia. Criada desde menininha no Brasil, era tão brasileira como não importa quem. Clarice era estrangeira na terra. Dava a impressão de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há uma greve geral de transportes" (in Nádia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta, Editora Ática, São Paulo, 1995).
A Clarice se aplica, mais do que a nenhum outro escritor brasileiro, aquilo que em si próprio detectava Julio Cortázar como um estranhamento, el sentimiento de no estar del todo. Aquela sensação de não-pertencer, assim descrita por Clarice: "Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer... de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada nem a ninguém... Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma".
O desajustamento crônico às pessoas, ao círculo social, às correntes literárias, ao casamento, ao próprio amor, foi uma constante na vida da pequena russa exilada que se transformou, voluntariamente, numa grande brasileira, numa grande expressão artística da nacionalidade. Foi também um complexo que a perseguiu sempre, até o final, quando chegou a dizer: "Perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie de solidão de não-pertencer começou a me invadir como heras num muro".
Um furacão chamado Clarice
Nos primeiros anos, no Recife, a menina triste, de luto aos 9 anos pela morte da mãe, já escrevia suas historinhas, sistematicamente recusadas pelo "Diário de Pernambuco", que no entanto dedicava uma página exclusivamente a composições infantis. Ao contrário das histórias das outras crianças, as de Clarice não tinham enredo e fatos - somente sensações. Sua literatura erigia-se já em torno do desejo de descer em profundidade no ser humano, à procura de uma coisa que sempre lhe escapava, a essência do ser.
Quase meio século mais tarde, pelo mesmo motivo seria sumariamente despedida do cargo de cronista do "Jornal do Brasil" - suas crônicas eram rarefeitas demais para o gosto do público. Mas, entre as duas pontas, processou-se uma carreira profissional constante, como escritora e como jornalista. Aos 20 anos, transferida a família Lispector para o Rio de Janeiro, já encontramos a moça, inteligente e belíssima, na Agência Nacional e no jornal "A Noite", ganhando a vida no meio quase exclusivamente masculino do jornalismo da época e publicando esparsamente seus contos.
Logo mais, em 1943, surge o primeiro romance, Perto do coração selvagem - obra saudada pelos amigos e por um bom número de críticos, entre eles Antonio Candido, como "genial, assombrosa, invulgar". Francisco de Assis Barbosa, que lia os capítulos à medida que a escritora os terminava, confessa ter sido tomado desde o início "pelo ímpeto Clarice, o furacão Clarice" - a certeza de que estava diante de uma extraordinária revelação literária.
Há realmente nesse primeiro livro a marca do ser que parece vir pronto a este mundo. Acusada por Álvaro Lins - a quem nunca perdoaria a miopia - de seguidora de Joyce (se é que disso se pode ser acusado...), Clarice afirmava que nunca lera o autor irlandês antes, e que o título do livro, sim, era uma frase solta dele, de que se havia apropriado: "Tudo estava guardado dentro de mim", diz.
Para se ter uma idéia do valor em si desse primeiro livro - e uma avaliação da riqueza de recursos literários já presentes naquela moça de vinte e poucos anos - basta ver a análise demorada de todos os seus discursos, na obra didática do professor Massaud Moisés, A criação literária (Prosa).
Durante mais de 30 anos, sem esmorecer, Clarice se dedicaria à literatura, alternando os livros de contos - em que é mestra incomparável - com estranhos romances, crônicas que detestava fazer diariamente, livros infantis, criados com muito amor para os filhos. Mais concretos, seus contos situam-se, no entanto, na proposição geral, inconsciente, a que a compelia a sua estraneidade: personagens sempre surpreendidos por uma modalidade diversa do insólito, no meio da banalidade cotidiana; uma revelação que descasca a realidade e impossibilita-lhes continuar a viver e a reagir da maneira de antes.
Transposta a pauta para os grandes romances - A maçã no escuro e A paixão segundo G. H. -, Clarice conseguiria neles ultrapassar os limites do romance psicológico, fundindo o fluxo narrativo com os processos poéticos e criando obra metafísica - um marco literário e, segundo Alfredo Bosi, uma renovação "por dentro" do ato de escrever que a situa, com Guimarães Rosa, na categoria especial dos criadores de "romances de tensão transfigurada".
Essas duas grandes obras são uma profunda reflexão da artista sobre a linguagem: Martim, personagem de A maçã no escuro, acreditando ter matado a mulher, foge do convívio social e das convenções e tenta "organizar sua alma" numa linguagem própria, redescoberta pós-silêncio, para assim reinserir-se no mundo e nos sentimentos. No sentido inverso, a escultora que em A paixão segundo G. H. descobre uma barata no quarto da empregada desveste a palavra e a ação banal de suas aparências, esgota a via-crúcis do desentendimento e caminha para a loucura, que é a desistência da linguagem: "O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu".
Objeto gritante
Terminado cada livro, o refluxo sempre, o esgotamento, a depressão - aquela indagação ansiosa de quem só sabia estar viva quando escrevia: e agora? Quem sou eu, agora? O que farei? que se ia derramando por textos os mais variados, contos, livros infantis, fragmentos, crônicas e reportagens. Muitas vezes a revolta, pela obrigação de escrever por dinheiro - até páginas femininas, assinadas com pseudônimo, até livros eróticos encomendados pelo editor: "O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada... Sou um objeto. Objeto sujo de sangue... mas se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita" (Água viva, 1973).
Mas o último romance, A hora da estrela, escrito num período de grande sofrimento, constitui - como diz Nádia Battella Gotlib - um momento extraordinário de síntese, de ajuste de contas com o próprio destino, catarse da infância nordestina e também de um sofrido passado racial judaico. Sua Macabéa - imortalizada também no filme de Suzana Amaral - é ao mesmo tempo pura e idiota, cômica e trágica, provocando no leitor uma reação dúbia e contraditória. Diz Nádia: "... provoca o riso e logo depois o arrependimento por haver rido. Embarca-se na falta de jeito da personagem para se concluir, depois, que, assim, não tem jeito mesmo: nesse Brasil, o pobre não tem vez".
Somente a mulher que renunciara voluntariamente, por excesso de autenticidade, à vida acolchoada e fútil do meio diplomático, ao conforto do casamento, para enfrentar a dureza de um cotidiano de luta e trabalho, acentuado pelo problema com o filho esquizofrênico, somente a artista que nunca conseguiu se encaixar em esquemas, e que fez da sua solidão instrumento constante de vigília e ascensão espiritual, alcançaria uma síntese tão perfeita: A hora da estrela consegue ser ao mesmo tempo romance metalingüístico, sofisticado, e romance social. Uma história, enfim, cheia de fatos, como queria escrever, sem conseguir, aquela meninazinha recifense que via todos os seus contos recusados pelo jornal.
Marcos de uma existência
Clarice Lispector nasceu no dia 10 de dezembro de 1920, na aldeia ucraniana de Tchechelnik, por onde a família passava, em fuga. Chegou ao Recife dois meses depois. Em 1930, perdeu sua mãe.
Na primeira infância, sua leitura preferida era "Aladim" e "O patinho feio".
Por volta de 8 anos, divertia-se com as "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato. Aos 13 anos leu "O lobo da es-tepe", de Hermann Hesse, e aos 15 anos "Felicidade", de Katherine Mansfield.
Por volta de 1932, a família Lispector mudou-se para o Rio de Janeiro. Entre 1939 e 1943, Clarice cursou a Faculdade Nacional de Direito.
Em 1940, começou a trabalhar como tradutora e jornalista profissional na Agência Nacional e no jornal "A Noite". Até o fim da vida trabalharia como jornalista.
Também em 1940, ano da morte de seu pai, começou a publicar contos em jornais e revistas.
Em 1943 casou-se com o colega de faculdade e diplomata Maury Gurgel Valente. No mesmo ano escreveu seu primeiro romance publicado, "Perto do coração selvagem".
Entre 1944 e 1959 acompanhou o marido nos postos diplomáticos, em Nápoles, Berna, Torquay (Inglaterra), Washington. Nesse período escreveu "O lustre" (1946), "A cidade sitiada" (1949) e "Alguns contos" (1952).
O primeiro filho, Pedro, nasceu em 1948, em Berna. Paulo veio ao mundo em Washington, em 1953.
Em 1959 separou-se do marido, voltando ao Brasil com os filhos.
Em 1960 publicou "Laços de família", um livro de contos, seguido do romance "A maçã no escuro" (1961).
Novos contos surgiram em 1964 ("A legião estrangeira"), ano em que escreveu também "A paixão segundo G. H."
Em 1967, quando escreveu "O mistério do coelho pensante" (infantil), sofreu um grave acidente com fogo, permanecendo alguns dias entre a vida e a morte. Sofreria muito com a seqüela das queimaduras.
Outro livro infantil surgiu em 1969 ("A mulher que matou os peixes").
Em 1969 voltou ao romance ("Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres"), seguido, em 1971, de "Felicidade clandestina" (contos).
Em 1973 publicou três livros: "Água viva" (romance), "A imitação da rosa" (contos) e "A vida íntima de Laura" (infantil).
Em 1974 foi a vez de "A via crucis do corpo" e "Onde estivestes de noite", ambos livros de contos, gênero que continuaria a cultivar no ano seguinte com "Visões do esplendor" e "De corpo inteiro".
Em 1977, ano em que morreu, no dia 9 de dezembro, publicou o romance "A hora da estrela".
Após sua morte teve ainda cinco livros publicados: "Um sopro de vida" (poesia), "Para não esquecer" (poesia), "Quase de verdade" (infantil), "A descoberta do mundo" (crônicas) e "Como nasceram as estrelas" (lendas brasileiras).
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