Postado em 09/12/2004
Oswald de Andrade, um nacionalista autêntico e incompreendido
CECÍLIA PRADA
Foto: reprodução
Quem, como os da minha geração, o conheceu velho, doente e pobre, amargurado pelo ostracismo em que viveu seus últimos anos, amaldiçoado e combatido pelos que foram seus irmãos de ideologia por uns tempos – os comunistas –, não podia ignorar a força de sua personalidade nem deixar de ser constantemente lembrado de sua histórica importância. Como diz Décio Pignatari em seu artigo "Marco Zero de Andrade", era freqüente vê-lo então circulando com a cabeça enfaixada – sofrera uma raspagem subcutânea – e de chapéu ou boné, nos eventos culturais paulistanos, apoiado na companheira extraordinária, Maria Antonieta d’Alkmin, a qual, não resistindo à sua perda, se suicidaria, alguns anos mais tarde. Não deixou nunca, até o fim, de participar de debates, onde quer que se realizassem: erguendo-se, rotundo e de dedo em riste na platéia do Teatro Municipal, após a encenação da peça Desejo, de Eugene O’Neill, como conta Décio Pignatari; ou no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, discutindo música dodecafônica com o maestro Hans Joachim Koellreuter, como o vi. E sempre, nessa época, cercado de jovens, entre os quais procurava interlocutores que os da sua geração não mais proporcionavam. Vencido pela doença, era ainda um gigante que procurava situar-se dentro de todos os movimentos novos, embora, no dizer de Pignatari, houvesse deixado "de bater cabeça por paus-brasis e por idades de pedra e pedrada". O jornalista Frederico Branco, autor de uma das últimas entrevistas com Oswald – publicada no "Correio Paulistano" dois dias após sua morte –, descreve-o como "um velho dragão que já perdera as garras e os caninos", pois "da férula antiga só restavam vestígios". E que descrevia a si próprio como "um velho e alquebrado toureiro, sem direito a aposentadoria, empunhando apenas a capa em farrapos e condenado a enfrentar, dia e noite, o negro touro da morte".
Atividade intensa
Nos dez anos que antecederam a Semana de 22, o jovem Oswald conseguiu abalar a pasmaceira intelectual do país com seus artigos em várias revistas e nos principais jornais, como "A Gazeta", "Correio Paulistano" e "Jornal do Comércio" – órgãos para os quais passou a escrever regularmente de 1921 a 1924. Simultaneamente liderou reuniões de amigos, em São Paulo e no Rio de Janeiro – onde conseguiu a adesão de Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda e Di Cavalcanti ao movimento modernista. Defendeu a pintora Anita Malfatti por ocasião de sua pioneira exposição de 1917, atacada por Monteiro Lobato como "paranóia ou mistificação". Teve o mérito de lançar Mário de Andrade, com um artigo, "Meu Poeta Futurista", no "Jornal do Comércio", em 1921. Os dois Andrades, unidos, se tornariam as principais figuras da Semana de 22, durante a qual, no dia 15 de fevereiro, Oswald leu, sob vaias intensas, um trecho de seu romance Os Condenados (primeiro volume de sua Trilogia do Exílio). Há quem diga que essa pateada teria sido encomendada por ele próprio, para dar ao evento o que hoje chamaríamos de "visibilidade". E deu.
Mas como escritor Oswald não teria muita sorte entre público e críticos – revolucionárias demais, ressentindo-se de uma programática vanguardista forçada e cerebral, suas obras não tiveram a fortuna crítica que Mário de Andrade, por exemplo, alcançaria. Seu primeiro poema modernista, escrito em 1912, "O Último Passeio de um Tuberculoso, pela Cidade, de Bonde", foi destruído por ele após ter recebido acerbas críticas dos próprios amigos. A mesma incompreensão pesou sobre seus trabalhos iniciais – hoje ainda as opiniões divergem, muito embora nos anos 60 a crítica estruturalista tenha definido Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande (respectivamente de 1924 e de 1933) como realmente "fundadores" da moderna prosa de ficção brasileira. Enquanto Haroldo de Campos traça um paralelo entre o Ulisses, de James Joyce, e essas obras, Décio Pignatari considera Oswald, com Machado de Assis e Euclides da Cunha, um dos raros escritores-pensadores que tivemos e diz que ele "rabelaisou, carnavalizou, o não-pensamento brasileiro". Reconhecida é a influência do primeiro desses romances sobre Macunaíma, de Mário de Andrade, escrito em 1926 e publicado em 1928. Em carta de 1923 a Manuel Bandeira, Mário falava no regresso de Oswald ao Brasil, depois de temporada na Europa, e dizia: "Oswald traz um romance (Miramar), segundo me contam interessantíssimo, moderníssimo, exageradamente de facção. Morro de curiosidade". Mais tarde Mário diria, desse tipo de prosa criado por Oswald, que era "a mais alegre das destruições".
No dizer do ensaísta norte-americano Kenneth Jackson, a prosa de Miramar, caracterizada por descontinuidade, desarticulação, ironia e sátira, levou adiante de modo consistente as duas principais preocupações do movimento modernista: a criação de um novo estilo poético baseado na realidade brasileira e a redefinição do caráter e dos objetivos nacionais.
Dialética
O eixo da vida de Oswald como escritor e pensador incorpora um movimento dialético constante que o fez alternar entre adesões ideológicas absolutas (na juventude chegou a ser católico fanático e mais tarde se tornaria comunista) e uma instintiva rebeldia que lhe possibilitava, repentinamente, renegar o que acatara ainda na véspera, brandir armas contra os amigos de há pouco, buscando sempre coerência apenas consigo próprio. Nascido em família extremamente conservadora e burguesa em 11 de janeiro de 1890, teve na infância e na adolescência, em casa "sob as ordens de Mamãe" ou no Ginásio São Bento, uma educação rígida e religiosa. Mas em 1912 a primeira viagem à Europa, que a abastada situação familiar lhe proporcionou, serviu para colocá-lo em contato com figuras exponenciais da vanguarda parisiense e dar-lhe a capacidade de se situar fora e acima do seu meio, para poder melhor analisá-lo, "devorá-lo como os canibais haviam feito com o bispo dom Sardinha" – metáfora maior do movimento antropofágico que criaria mais tarde. Ao retornar ao Brasil trazia na bagagem dois manifestos que iriam nortear sua vida e fazer a cabeça de sua geração: o Manifesto Futurista, de Marinetti, e o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx.
Toda a sua vida, dali por diante, seria marcada pela dupla militância, a política e a artística. Comunista que não se pejava de exibir para seus refinados hóspedes "um corcunda preto e ritual para servir o leite espumoso de uma jersey, com cognac velho, trazido pessoalmente de Bordeaux, em frente ao terraço senhorial da minha fazenda". Que teve todo o ócio garantido pela fortuna do pai – loteador do bairro de Cerqueira César, na capital – para dedicar-se integralmente à sua carreira de escritor e pensador da nossa realidade social. Mas que sofreu também reveses da fortuna, e problemas resultantes do ostracismo em tempos em que, ele próprio dizia, distribuía autógrafos somente "aos pregos e aos bancos". Foi bem aquele "homem sem profissão" (título que daria ao seu primeiro volume de memórias, publicado em 1954) e por isso mesmo constrangido às atividades mais díspares para sustentar suas próprias extravagâncias, ou as mulheres e filhos que foi acumulando pela existência – quatro filhos, cinco casamentos e muitos romances. Como diria em uma pequena biografia de 1950: "Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, casei, enviuvei, casei, divorciei, viajei, casei... Já disse que sou conjugal, gremial e ordeiro. O que não me impediu de ter brigado diversas vezes à portuguesa e tomado parte em algumas batalhas campais. Nem ter sido preso 13 vezes".
Como jornalista, era impiedoso até mesmo com seus amigos e sofria críticas, como a de Sérgio Milliet: "Temperamento vulcânico, desmetodizado, arreliento... Sua obra se ressente dessa convulsão temperamental". Denunciava sem cessar as mediocridades laureadas, entrava em polêmicas intelectuais e debates políticos, granjeava inimigos a torto e a direito. Melhor seria dizer: à direita e à esquerda. Confessava: "O divisor de águas de 1930 me jogou do lado esquerdo, onde me tenho conservado com inteira consciência e inteira razão". Célebres, porém, tornaram-se suas divergências com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – desiludido com a atitude de Luís Carlos Prestes e seus camaradas da Comissão Nacional de Organização Proletária (CNOP), censurava-os abertamente por se comportarem como fantoches dos grupos que, afastados do que ficou estabelecido na 3ª Internacional Comunista, encarnavam um ideal comunista obreirista, antiintelectual e "atrasado", na sua opinião. A ruptura de Oswald com Prestes e a CNOP deu-se em 1945.
Em 1943 e em 1945 publicou os primeiros dois romances de temática abertamente social (A Revolução Melancólica e Chão), da série que tinha o título geral de Marco Zero – mas que não completou. Apresentou-se algumas vezes em concursos para uma cadeira na Universidade de São Paulo (USP), onde chegou a ser livre-docente. Desse último período de sua vida resultaram também ensaios literários e filosóficos – como A Arcádia e a Inconfidência e A Crise da Filosofia Messiânica.
Escreveu também várias peças no decorrer de sua vida, mas somente teve sua obra compreendida e encenada após sua morte, na década de 60. Em 1916 escreveu e publicou, com Guilherme de Almeida, duas peças em francês, Mon Coeur Balance e Leur Âme. De 1933 a 1937 são A Morta, O Homem e o Cavalo e O Rei da Vela, que não puderam ser encenadas durante o Estado Novo. A última delas, O Rei da Vela, alcançaria somente em 1967 um grande sucesso de público, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina de São Paulo. Segundo Sábato Magaldi, "o espetáculo fez uma assunção tropical do Brasil, com uma audácia criadora que não tinha paralelo em nenhuma montagem anterior" e "José Celso encontrou uma linguagem cênica que de súbito revelava a esfuziante teatralidade anárquica de Oswald". Levado ao Festival de Nancy, a Paris e ao Maggio Fiorentino, O Rei da Vela foi consagrado pela crítica francesa e pela italiana.
Haroldo de Campos, na apresentação, "Miramar na Mira", que fez em 1962 para a reedição de Memórias Sentimentais de João Miramar, declara: "Houve mesmo, durante muito tempo – e com reflexos até nossos dias –, uma campanha sistemática de silêncio contra Oswald, que resultou na minimização, se não na voluntária obliteração, da importância da bagagem literária oswaldiana". Como o próprio escritor não cansava de denunciar, ressaltando o poder de uma "fraternidade Jorge Amado", que, endeusando o escritor baiano querido do PCB, o denegria: "Criou-se então a fábula de que eu só fazia piada e irreverência, e uma cortina de silêncio tentou encobrir a ação pioneira que dera o Pau-Brasil, donde, no depoimento atual de Vinicius de Moraes, saíram todos os elementos da moderna poesia brasileira. Foi propositadamente esquecida a prosa renovada de 22, para a qual eu contribuí com a experiência das Memórias Sentimentais de João Miramar".
Pau-Brasil
Com o movimento da poesia pau-brasil, cujo manifesto foi lançado em 1924 – complementado em 1928 pelo Manifesto Antropófago –, Oswald assumiu a liderança absoluta de um nacionalismo que insistia na exportação da cultura brasileira autêntica e contrariava o habitual servilismo de importação de uma periclitante cultura européia. No grande número de artigos que escreveu durante a vida toda, e nas entrevistas que concedeu, manifestou sempre a mesma "ferocidade antropofágica" – assimilação e digestão da cultura européia, valorização dos elementos nacionais, de uma forma até exagerada. Essa constante pode ser seguida nas antologias Ponta de Lança (artigos) e Os Dentes do Dragão (entrevistas), que fazem parte da obra completa reeditada pela Editora Globo.
Como exemplo vemos, em entrevista de 1925 a "O Jornal", do Rio de Janeiro, como declarava a si próprio e a seus companheiros modernistas "fatigados de cultura, fatigados de sabença", não nascidos para saber mas para acreditar, e pesquisando apenas "nosso instinto que é excelente, quase maravilhoso". Assim, dizia, entendia e realizava o momento brasileiro. Criticava abertamente o "intelectualismo postiço" de figuras como Graça Aranha. E definia a poesia pau-brasil como "o contrário da parlapatice léxica do senhor Coelho Neto e da cantata decassílava (sic) de Bilac. A tolice, se quiserem, mas diferente da do senhor Medeiros e Albuquerque, que essa é professoral e bem dirigida. O que os primeiros cronistas descobriram, o que nossas grandes orelhas infantis ouviram e guardaram em nossas casas". Uma poesia cujo momento fundador era a própria carta de Pero Vaz de Caminha, reveladora de um "estado de inocência que o espírito sorve nas notícias dos cronistas sobre ananases, rios e riquezas e nos casos de negros fugidos e assombrações trazidos a nós pela tradição oral e doméstica", mas que não se resumia no passado, pois sua inspiração continuava nos jornais de todo dia, nos fatos da existência comum. E, sobretudo, no progresso do século, na urbe inteligente e dinâmica em cuja Avenida Paulista, segundo o verso de Menotti del Picchia, "até as colunas de mármore são de cimento armado!"
Antropofagia
Oswald foi homem de manifestos – verdadeiros gritos em que expressava de roldão seus sentimentos e idéias, usando a estética do choque contra a burguesia e inventariando toda a beleza selvagem e bárbara do Brasil, de sua cultura, em face da decadente e anêmica cultura européia importada.
Em 1924 lançou o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", que começa assim:
"A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
"O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança".
Em 1928, ano por ele consagrado como "Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha", lançou no primeiro número da "Revista de Antropofagia" o seu "Manifesto Antropófago", que começa assim:
"Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
"Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
"Tupi or not tupi that is the question…"
E assim termina:
"
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama".Oswaldianas
Obra-prima de paródia, "Memórias Sentimentais de João Miramar", segundo Antonio Candido, "sobre ser um dos maiores livros de nossa literatura, é uma tentativa seriíssima de estilo e narrativa (...) Miramar é um humorista pince sans rire que procura kodakar a vida imperturbavelmente, por meio de uma linguagem sintética e fulgurante, cheia de soldas arrojadas, de uma concisão lapidar". Eis alguns exemplos:
Gatunos de crianças – "O circo era um balão aceso com música e pastéis na entrada. E funâmbulos cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de pau com gente em redor. Gostei muito da terra da Goiabada e tive inveja da vontade de ter sido roubado pelos ciganos".
O pensieroso – "Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
– O Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido vermelhava.
– Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim de Mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém".
Felicidade – "Napoleão que era um grande guerreiro que Maria da Glória conheceu em Pernambuco disse que o dia mais feliz da vida dele foi o dia em que eu fiz a minha primeira comunhão".
Velhos paulistas – "Apagavam-se como se uma vergonha dos antigos fios de barba os amarrasse no confronto sírio-itálico com a ricada vitoriosa e gritante sem pais nem leis. Botinas de elástico.
Compensadores piratas gordos prometiam-lhes genealogias fascículas com avoengos retratos".
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