Postado em 01/09/2004
Uso de motos para transporte de passageiros: risco ou solução?
CAIO CAVECHINI, FRANCISCO DE SOUZA e IVAN PAGANOTTI
Foto: Francisco de Souza
Foi para atender à demanda de passageiros como Carla e sem nenhum planejamento prévio por parte da prefeitura que o mototáxi se instalou em Franca, cidade de 300 mil habitantes localizada no interior do estado de São Paulo. Para o passageiro, ele trouxe rapidez, bom preço e atendimento porta a porta. Para os mototaxistas, representou uma chance de emprego.
A partir de 1997, esse meio de transporte ganhou adeptos rapidamente, e hoje está presente não só em Franca, mas em outras cidades médias, pequenas e até em capitais brasileiras, como no Rio de Janeiro e em Fortaleza. Segundo a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), os mototáxis respondem por 32% do transporte informal em todo o Brasil, ficando atrás apenas dos veículos que funcionam como lotação.
Segundo o professor de Engenharia de Transportes da Universidade de São Paulo (USP) Jaime Waisman, a principal característica dos mototáxis é suprir a demanda por locomoção das classes mais baixas, que não têm acesso a outros meios mais eficientes e podem assim se deslocar para lugares que não são atendidos por ônibus, seja pela falta de pavimentação, pela violência ou porque estão fora de itinerários formais.
A NTU apresentou uma proposta de integração com modalidades alternativas, de maneira que estas funcionassem como alimentadoras de trens, metrôs e ônibus. A associação, porém, não vê no mototáxi condições para isso. "Além de ser totalmente irregular, é inseguro. Por essa razão, estamos patrocinando ações judiciais contra o serviço em estados que o aprovam, como Santa Catarina e Minas Gerais", afirma Marcos Bicalho, diretor da NTU. A seu ver, é preciso distinguir a regulamentação, que envolve organização, controle e respeito a regras definidas pelo poder público, da mera legalização.
Ao contrário dos lotações, os mototáxis atuam sem linhas definidas, levando os passageiros ao destino que desejam. Por isso, da maneira como estão estruturados, não se pode dizer que funcionem como alimentadores de outras modalidades. Segundo Bicalho, serviços como esse se aproveitam das partes lucrativas do sistema e inviabilizam economicamente o transporte público formal. Para exemplificar, ele cita o fato de que não atendem a demandas de portadores de necessidades especiais, crianças e gestantes, nem oferecem descontos a estudantes e idosos.
Para Marcelo Ferreira, secretário de Urbanismo e Meio Ambiente de Franca, o mototáxi "não tem atrapalhado em nada" os outros serviços de transporte da cidade. "Nosso sistema de ônibus é muito bem aceito pela população, e a cada dia vem atraindo mais passageiros." Ele pondera que os taxistas reclamam da situação, mas acha que "há espaço para todo mundo", já que o número de mototaxistas é limitado por lei. Além disso, a concorrência fez diminuir o preço cobrado pelos táxis, o que é uma vantagem para a população.
Regulamentação
Segundo Orivaldo Donzelli, ex-assessor da prefeitura de Franca para a área de transportes, a institucionalização dos mototáxis nesse município partia do pressuposto de que era impossível acabar com essa atividade, e que, dessa forma, melhor seria garantir um mínimo de segurança e planejamento ao serviço, por meio da regulamentação, que acabou ocorrendo em 1998.
É comum que, após uma pequena organização dos mototaxistas, os municípios aprovem essa modalidade de transporte. Mas, se para as prefeituras a regulamentação aparece como única forma de manter algum controle sobre a atividade, esse processo envolve também uma certa dose de improviso. "No começo, ninguém tinha conhecimento sobre esse tipo de serviço", afirma Gustavo Urquiza, coordenador de Trânsito de Franca.
Na esfera federal, porém, a legalidade do mototáxi nunca foi clara. Ainda em 1997, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) classificou a motocicleta como um veículo inapropriado para o transporte de passageiros. Apesar disso, o órgão executivo da área, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), repassou no ano seguinte a responsabilidade pela implantação desse serviço aos municípios.
Em 2002, o Supremo Tribunal Federal julgou esse meio de locomoção inconstitucional, pois "não propicia as condições mínimas de saúde e segurança a seus potenciais usuários". O Ministério das Cidades também tem se posicionado contra esse tipo de transporte. Em setembro de 2004, uma resolução do Conselho das Cidades, que é presidido pelo ministro Olívio Dutra, determinou que fossem tomadas medidas que proibissem o mototáxi. Mesmo assim, ainda hoje muitas cidades usam brechas no Código de Trânsito Brasileiro para respaldar legislações locais sobre esse serviço.
Na metrópole
A segurança é a principal questão levantada quando se cogita a hipótese de legalizar esse meio de transporte na capital paulista, que já vive uma explosão no número de motocicletas e de acidentes em que elas estão envolvidas. As estimativas são de que a cada dois dias morre um motociclista na cidade. Para o urbanista e vereador Nabil Bonduki, seria interessante para as metrópoles um meio de transporte público que, como os mototáxis, tivesse custo reduzido e ocupasse pouco espaço nas vias. Mas ele não acredita que o sistema implantado no interior seja apropriado para a capital.
Jooji Hato, também vereador em São Paulo, vai ainda mais longe. Ele chegou a propor, em 2001, um projeto de lei que proibia o transporte de passageiros nas garupas de motos nos dias de semana. "É um projeto que salva vidas e diminui o número de ocorrências", afirma. A lei chegou a ser aprovada pela Câmara Municipal, mas foi vetada pela prefeita Marta Suplicy.
Para os mototaxistas (ver texto abaixo), vencer o desafio de conquistar novos clientes depende, antes de tudo, de afastar a idéia, freqüente, de que existe uma associação entre a profissão e o crime - principalmente o tráfico de drogas -, além de ter de enfrentar a concorrência dos colegas, manter o instrumento de trabalho em boas condições e mostrar eficiência e segurança.
A engenheira Rafaella Violato realizou uma pesquisa sobre mototáxis em Lins, no interior de São Paulo. Segundo seus dados, cerca de 42% dos usuários ganham em média R$ 360. Aproximadamente 70% não estão habilitados a dirigir e 83% não possuem automóvel. "Essas pessoas não têm independência para se locomover", afirma Violato. "Esse meio satisfaz as necessidades de quem não pode ficar esperando pelo ônibus sem saber se ele vai passar em cinco minutos, meia hora ou duas horas", explica.
Enquanto aguarda na fila do terminal de ônibus de Franca, Eliana Cristina confirma a avaliação da engenheira. "Eu uso o mototáxi porque é mais rápido. Mas, quando não estou com muita pressa, prefiro o ônibus, que é mais confortável e menos perigoso", conta ela. "Eu prefiro um veículo mais seguro do que a moto. A gente não sabe quem é responsável", pondera Ednamar Cristiane, usuária do sistema de ônibus da cidade.
Cabeça de pára-choque
O professor Jaime Waisman reitera que, ainda que possa ser rápido e barato, o mototáxi não é um meio seguro. "Quando você dirige uma moto, o pára-choque é a sua testa", define. "Motos não foram feitas para transportar passageiros."
Os fabricantes, por sua vez, garantem que as motocicletas são projetadas para carregar duas pessoas. "O mototáxi pode ser um serviço de transporte como outro qualquer, desde que o profissional esteja preparado, com treinamento especial, e saiba orientar o passageiro, principalmente nas curvas", diz Moacir Alberto Paes, diretor executivo da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas (Abraciclo).
"Os mototaxistas pilotam muito bem, dominam a máquina com mais eficiência que os outros motoqueiros", explica o tenente Antonio Carlos da Silveira, do Corpo de Bombeiros de Franca. Na sua opinião, no entanto, esses profissionais não procuram prevenir as situações de risco. Se os motociclistas de modo geral são ousados no trânsito, trafegando em alta velocidade entre os veículos, os mototaxistas, para poder realizar mais viagens, aceleram ainda mais. "A segurança precisa ser melhorada, e o caminho é a educação do trânsito e a fiscalização", conclui Silveira. Ele acredita que, satisfeitos esses requisitos, o transporte será seguro.
Mas a polêmica já começa no primeiro e mais óbvio acessório para esse tipo de transporte, o capacete. Muitos usuários reclamam da falta de higiene, já que um mesmo capacete é destinado a todos os passageiros. Algumas cidades exigem toucas descartáveis, para prevenir a disseminação de doenças e de parasitas. Mas, na pressa, é difícil encontrar um passageiro que peça por elas.
A situação é ainda pior em cidades próximas da linha do equador, como acontece em Camocim, ensolarada cidadezinha do litoral do Ceará. A lei exige o capacete, mas muitos sentem uma falsa impressão de segurança no trânsito calmo da cidade e preferem carregá-lo no braço, devido ao calor. Segundo o mototaxista Saturnino Araújo, quase um terço dos seus clientes parou de andar de mototáxi por causa da obrigatoriedade do capacete.
Há também outras exigências que podem diminuir o grau de improviso desse tipo de transporte, como protetores de escapamento - para evitar queimaduras na perna do passageiro -, cursos com aulas de legislação e de primeiros socorros, e até antenas que evitem que o piloto seja degolado por fios de pipa. Uma idéia que não fez sucesso foi a do inusitado "agarradinho", um cinto com alças laterais para que o usuário pudesse firmar-se melhor, sem o constrangimento de ter de segurar-se no corpo do condutor.
Em Franca, a exigência de um seguro causou polêmica entre os mototaxistas. As reclamações baseavam-se no fato de que a apólice só cobriria casos de morte e invalidez, e teria preço abusivo. Alguns até conseguiram liminares que os liberaram do encargo, uma vez que apenas uma seguradora se ofereceu para o serviço.
Estimular a organização dos mototaxistas em cooperativas e associações representativas pode ser um meio de diminuir a informalidade e aumentar a segurança. Mesmo quando não há mais como abolir a oferta desse serviço, ainda é possível adotar medidas para preservar passageiros e motoristas.
Grande parte dos mototaxistas está nesse ramo de atividade por absoluta falta de opção. Idade considerada avançada no mercado de trabalho, antecedentes criminais e baixa escolaridade são os principais empecilhos para que consigam um emprego formal.
Marcos Rafael Veronez, ex-operário de uma indústria de calçados de Franca, é um exemplo: "Apesar dos riscos, não tenho alternativa para sustentar meus três filhos". Ele chega a trabalhar mais de dez horas por dia para conseguir R$ 450 por mês, e nem sempre a renda é suficiente para cobrir suas despesas.
A falta de perspectivas atinge até mesmo aqueles que conseguiram estudar. Miguel Resende cursou dois anos de direito, mas teve de abandonar a faculdade por não ter como pagar as mensalidades. "O problema é que não posso parar de trabalhar para procurar emprego, senão morro de fome", lamenta ele.
Mas há, ainda, dificuldades adicionais. Segundo a engenheira Rafaella Violato, no imaginário popular a atividade do mototaxista está relacionada a criminalidade, irresponsabilidade e violência. Miguel Resende explica que o profissional sério também acaba pagando o preço da discriminação: "Por causa de alguns, todos são tachados de marginais. Existem pessoas que não utilizam o serviço por preconceito ou vergonha. E a gente, quando procura outro emprego, se disser o que faz, nem é recebido".
"A fiscalização é fraca. Pessoas com antecedentes criminais não deveriam trabalhar aqui no ponto. Mas há um sujeito que foi algemado na nossa frente, portando pedras de crack", conta o mototaxista Teodoro*, sem se intimidar com a presença do colega, distante apenas alguns metros. "A polícia só precisava de duas testemunhas para botá-lo na cadeia, mas ninguém aqui quis fazer isso." Hoje ele se arrepende de não ter testemunhado e, revoltado, diz que será diferente da próxima vez.
Relutante, Joelmir* vai revelando aos poucos as tentações da profissão e como caiu nelas: entregar drogas fez triplicar seu faturamento mensal. No início, ele temia os riscos que envolviam o transporte dos viciados até o ponto-de-venda e a espera do seu retorno. Para ganhar mais, e com mais segurança, começou a comprar e levar até os usuários.
* Nomes fictícios.
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