Postado em 09/11/2004
Comunidades do Parque Nacional do Jaú lutam pela sobrevivência
MAURÍCIO MONTEIRO FILHO
(Colaborou Gustavo Fernandes)
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As dificuldades do percurso, porém, são compensadas pelo magnífico cenário. No auge da cheia, no mês de julho, são raras as porções de terra firme. A água reina soberana, seja na forma de igarapés estreitos, por onde mal passa uma canoa, seja em rios de largura impressionante. Nesse período, acima da superfície praticamente restam apenas as copas das árvores. Quando chega a época da vazante, entre outubro e novembro, o solo da floresta ressurge e, com ele, as pedras que formam corredeiras e cachoeiras, o que complica a navegação.
Essa unidade de conservação (UC) - expressão que designa todas as áreas protegidas pelo Ibama - é famosa pelos peixes que habitam seus rios, como o pirarucu, o ameaçadíssimo peixe-boi, além do jaú, um dos maiores do país, que dá nome ao parque. Espécies valiosas como essas e a fartura da pesca atraem amadores e grandes empresas pesqueiras, que marcam presença na região. Mas essa não é a única atividade predatória. Até hoje é freqüente a caça de quelônios, como tartarugas, cágados e tracajás, cujos ovos e carne servem de alimento às populações locais, além de o casco ter alto valor comercial. Por essa razão, esses animais ainda são perseguidos por gente de dentro e de fora do PNJ, principalmente na época de desova.
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Foi justamente para impedir que ameaças como essas colocassem em risco o equilíbrio natural da região que, em setembro de 1980, foi criado o Parque Nacional do Jaú, com 2,27 milhões de hectares. Localizado entre os municípios de Barcelos e Novo Airão, tem como limites, ao norte, o rio Unini e seu afluente Paunini, e, ao sul, o rio Carabinani.
É indiscutível a importância do PNJ, cuja principal característica é proteger toda a bacia do rio Jaú, incluindo ambientes representativos dos ecossistemas amazônicos. Por essa razão, em dezembro de 2000, o parque foi eleito Sítio do Patrimônio Natural Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Por mais válidas que sejam as iniciativas de preservação ambiental da área, porém, elas esbarram na presença de comunidades tradicionais, cuja subsistência depende da caça, da pesca e do cultivo de lavouras. Há, atualmente, 920 ribeirinhos que vivem dentro do parque sob a constante ameaça de perder suas terras, sua fonte de alimento, sua história, enfim.
Passados 24 anos da criação da UC, as famílias que ali permanecem travam uma verdadeira batalha na busca de solução para sua situação, que poderia vir na forma de indenização ou reassentamento. Até mesmo para os funcionários do Ibama que atuam na área essa realidade é insustentável. "Esse longo período de indefinição rebaixou a auto-estima dos moradores", afirma Marcelo Bresolin, atual chefe do PNJ.
"Existe um conflito de interesses legítimos na área: a proteção do meio ambiente e a sobrevivência dos ribeirinhos", afirma Izabella Brant, procuradora da República do Ministério Público Federal em Manaus. Os choques entre o governo federal e as populações ali presentes começaram por volta de 1985, quando o poder público passou a atuar realmente na área, por intermédio do extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão que, em associação com outras entidades, deu origem, em 1989, ao Ibama.
Naquela época, Claudionor Ramos Nogueira morava com a família na foz do rio Jaú. "Meu lugar era ali. Tinha peixe, banana, cará. Mas eles [o IBDF] se apossaram. Diziam que, se eu não saísse, iam derrubar a casa e tocar fogo." Hoje, na área em que Claudionor morava, está localizada a única base do Ibama em todo o PNJ.
A presença do Estado na área, naquele período, provocava nos moradores um sentimento de ameaça e exclusão, que só principiou a mudar nos últimos anos. "Até hoje carregamos esse passivo. Só conseguimos começar a revertê-lo a partir de 2002", explica Daniel Rios, analista ambiental do Ibama e ex-chefe do PNJ.
Essa é também a opinião dos moradores. "Antes, quando alguém falava em Ibama, a gente corria pro mato. Agora, melhorou", confirma Evilásio Gonçalves, presidente comunitário de Terra Nova, às margens do rio Unini.
Populações tradicionais
Nas longas viagens de barco - única forma de deslocamento na região -, é preciso estar atento para perceber, em meio à floresta, os telhados de sapé das moradias. São apenas esses os elementos que denunciam a presença humana no parque.
Gilberto Rodrigues, de 49 anos, mora próximo à comunidade do Patauá, às margens do rio Jaú. Sua trajetória se confunde com a da maioria das famílias que vivem no PNJ. Nascido em Envira, na divisa com o Acre, chegou ali acompanhando o padrasto, "soldado da borracha". Antes, pelo caminho, "cortou seringa" nas várzeas de vários rios da região. "O patrão não queria saber se o empregado tinha filhos que precisavam estudar. Queria era produção", relembra. Foi assim que Gilberto se tornou um desses "soldados" que trocaram a escola pela extração de látex.
Com o colapso da borracha, no final da década de 1960 os trabalhadores passaram a se fixar na terra e buscaram outras formas de ganhar o sustento. Assim, além da alternativa do extrativismo, a lavoura de mandioca se consolidou como a principal atividade econômica dos moradores do PNJ.
Com 79 anos, Erasmo Leocádio de Souza, nascido em Tefé (AM), chegou à região em 1957. Orgulhoso, exibe a carteira de trabalho assinada, raridade naquelas terras. Trocou a cidade pelo rio Jaú, onde se dedicou exclusivamente à produção de mandioca e à educação dos filhos. Chegava a gastar duas latas de querosene a cada três meses com o lampião que usava para dar aulas improvisadas na própria casa. "Para quem tem família, a roça é melhor", afirma ele.
Entretanto, com a criação do PNJ, tudo ficou muito difícil para os moradores. Antes, o abastecimento era feito por "regatões", barcos que trafegavam pelos rios carregados de mantimentos para vender aos ribeirinhos. Além disso, essas embarcações transportavam a farinha para ser comercializada na cidade. "Agora, não temos para quem vender", reclama Evilásio Gonçalves. Isso porque, com o parque, foram proibidos os "regatões". Atualmente, para escoar a produção, os moradores dependem de barco próprio, as "rabetas", o que implica um gasto significativo com combustível e viagens demoradas.
Dessa maneira, a lavoura dos moradores passou a destinar-se basicamente à subsistência, complementada com a caça e a pesca. As únicas atividades voltadas exclusivamente para a venda são o extrativismo e o artesanato. "Tenho de andar até duas horas e meia para encontrar o cipó [principal produto coletado]", diz Gilberto Rodrigues.
Batalha e soluções
As mais de duas décadas de espera por um encaminhamento quanto à situação fundiária do PNJ foram tempo suficiente para que cinco antigos moradores do parque tenham falecido sem presenciar uma solução definitiva.
Segundo a política oficial de preservação ambiental praticada no Brasil, norteada pela lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), devem ser garantidos "às populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos".
Dessa maneira, a solução do problema dos ribeirinhos depende de um acordo quanto à compensação financeira pelas terras que serão desapropriadas. E esse processo pode se arrastar indefinidamente. "Nem a situação fundiária do primeiro parque nacional do Brasil, o de Itatiaia, criado em 1937, está regularizada", explica Daniel Rios.
Na realidade, em 1989, quando o Ibama se tornou responsável pela gestão do parque, foram oferecidas indenizações aos moradores, que as recusaram por considerar o valor muito baixo. Desde então, o processo não evoluiu. Entretanto, as restrições ao uso dos recursos do parque permaneceram, criando uma situação insustentável, já que os ribeirinhos não têm acesso a alternativas de geração de renda.
Nesse período, em razão da falta de meios de subsistência, muitas famílias deixaram o PNJ. Foi o caso de Ivanilda Gonçalves, que, em 1995, abandonou a comunidade em que vivia no rio Jaú e se mudou para Novo Airão. Atualmente, ela faz parte da Comissão de Ex-Moradores do PNJ, cuja intenção é criar uma representação das famílias que saíram da UC. Hoje, o grupo conta com sete representantes.
Em 2002, Aldenor Barbosa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Novo Airão, foi procurado pela comissão para utilizar sua experiência de sindicalista em favor da causa dos moradores. Antecipando-se ao Ibama, Aldenor e os ex-moradores, auxiliados por pesquisadores de São Paulo, inventariaram o valor de parte dos lotes ocupados do PNJ. Para a elaboração da lista, foi empregado o conceito de posse agroextrativista. Segundo essa modalidade de cálculo, o valor final da terra incorpora não só as benfeitorias construídas, mas também os recursos naturais disponíveis, como pomares, árvores que representem alguma forma de riqueza extrativista e lavouras. Com isso, o valor de alguns terrenos ultrapassou R$ 30 mil, bem acima das indenizações que se costumam pagar nesses casos. "Nós não estamos negociando um produto. Mas queremos ouvir uma contraproposta do Ibama", desafia Aldenor.
Sobre as possíveis cifras das indenizações, Boris Alexandre César, coordenador-geral de Regularização Fundiária do Ibama, responde: "Os valores de terra ou de benfeitorias só são determinados no instante final da regularização fundiária, com base em ampla pesquisa de mercado. Quaisquer estimativas anteriores gerariam falsas expectativas ou poderiam ser tendenciosas".
Diante de tamanha indefinição, o desalento é geral entre as populações das nove comunidades do rio Unini - Aracu, Vista Alegre, Floresta, Manapana, Tapiira, Democracia, Frausino, Terra Nova e Lago das Pedras - e das quatro do rio Jaú - Tambor, Lázaro, Patauá e Seringalzinho. Ao desejo de partir mistura-se a incerteza quanto à vida fora dali. "A gente nasceu e se criou no rio. Fica difícil sair assim. Não tenho saber pra viver em outro canto", afirma Evilásio Gonçalves.
Apesar disso, há certa diferença de atitude entre as populações que permanecem no parque. Os moradores das comunidades do Jaú apresentam uma tendência maior a abandoná-lo, uma vez que estão totalmente impedidos de praticar a pesca, a caça e o extrativismo, ao contrário dos habitantes do Unini, para os quais basta atravessar o rio para estar fora da área onde vigoram essas restrições.
É o que comprovam dados referentes à dinâmica populacional na área, compilados pela Fundação Vitória Amazônica (FVA) no livro Janelas para a Biodiversidade no PNJ, extenso levantamento de toda a riqueza biológica e humana do parque, publicado em 2004. Em 1992, a população residente na UC era de 979 pessoas, reduzindo-se para 920 em 2001. Entretanto, se observada a contribuição de cada um dos rios nessas estatísticas, percebe-se que a ocupação do Jaú caiu 33%, de 377 para 251 ribeirinhos. A diminuição no total de habitantes do PNJ só não foi maior porque no rio Unini foi registrado aumento de 11%.
Essa tendência também se evidencia no fato de os moradores da área do Jaú não contarem com nenhuma forma de integração comunitária, ao contrário do que acontece com os que vivem às margens do Unini.
Antenor Anicácio, morador de Seringalzinho, no rio Jaú, é um bom exemplo do cotidiano enfrentado por quem vive dentro do PNJ. Ele chegou a trabalhar como "mateiro", abrindo trilhas para pesquisadores e turistas que passavam pela comunidade, mas foi proibido pelo Ibama de continuar com a atividade, sob a alegação de que geraria impacto ambiental. "Agora, com o cipó e a roça, ganho R$ 100 por mês." Ele é casado e tem seis filhos. Diante dessa situação, pensa em abandonar o parque. "Na cidade, tem muita marginalização. No interior, é mais fácil. Mas, se continuar assim, vou sair no fim do ano", desabafa.
Outra razão para a diferença no desenvolvimento das duas áreas pode estar na presença institucional. A maior parte do Unini está no município de Barcelos, onde, com o estímulo da FVA, vêm se estabelecendo parcerias. Na construção de escolas, por exemplo, o governo municipal cede a estrutura, enquanto a instituição capacita os professores e se encarrega do material didático. Por estarem localizadas em área de proteção integral e mais sujeitas à fiscalização do Ibama, as comunidades do rio Jaú não recebem o mesmo atendimento. "Por mais que eu ache um absurdo, não é possível autorizar o funcionamento de uma escola dentro do parque, pois isso estimula as pessoas a continuar morando no PNJ", declara Daniel Rios.
Ambiente versus humano
"Só preservam o jacaré, a onça, mas se esquecem de que existem o homem, a mulher e a criança, que também devem ser preservados", diz Sebastião Ferreira de Almeida. Ele era professor no tempo em que morava no Jaú e atualmente vive em Novo Airão. Está desempregado há dois anos.
Sua revolta poderia facilmente ser estendida contra toda a política oficial de preservação ambiental praticada no Brasil. Da lei que instituiu o Snuc, aprovada em 2000, após oito anos de tramitação no Congresso, constam os objetivos das UCs, os órgãos responsáveis pela defesa do meio ambiente e as regras para a gestão das diferentes áreas de relevância ambiental. O PNJ, como todos os parques nacionais, enquadra-se entre as chamadas unidades de proteção integral, sobre as quais incide o maior número de restrições. Nelas, deve ocorrer a "manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais", segundo o texto da lei. Por "uso indireto" entende-se "aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais". "Oficialmente, as populações têm de ser retiradas", afirma Daniel Rios - o que ainda não aconteceu devido à falta de recursos do Ibama.
"Esse raciocínio reflete um paradigma vigente até a década de 70, em que imperava o preservacionismo", diz Antônio Carlos Diegues, antropólogo e diretor científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub). No prefácio do livro Etnoconservação: Novos Rumos para a Preservação da Natureza nos Trópicos, coletânea de textos de diversos autores do mundo sobre o tema, Diegues estabelece uma distinção conceitual entre duas correntes do pensamento ambiental: o preservacionismo e a ecologia social.
Nesse âmbito, a primeira corrente defenderia a separação radical entre homem e natureza, considerando a interferência sempre negativa.
Em contraposição, "no Brasil, um novo movimento começa com os seringueiros, como Chico Mendes", explica Diegues. Essa maneira de conceber a proteção do meio ambiente pode ser chamada de ecologia social. Entre seus partidários, estão o Conselho Nacional dos Seringueiros, o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento dos Pescadores Artesanais e os grupos indígenas organizados. "Para essas entidades, de conotação social e ambientalista, há necessidade de se repensar a função dos parques nacionais, incluindo os interesses e modos de vida de seus moradores tradicionais", conclui o antropólogo em seu texto.
Entre os principais argumentos da ecologia social estaria a noção de que há "áreas de alta biodiversidade decorrente do conhecimento e do manejo tradicional realizado pelas populações (...) indígenas e não-indígenas".
É justamente essa compreensão que, em sua simplicidade, os moradores do Jaú expressam. "Nós, que preservamos, perdemos o direito", como diz o professor Sebastião.
Manejo participativo
Em 1998, após cinco anos de elaboração, foi publicado o Plano de Manejo do PNJ, uma parceria do Ibama com a FVA. O documento estabelece as regras para gestão dos recursos do parque, bem como serve de inventário de toda a biodiversidade da UC.
Para Marcos Pinheiro, coordenador de políticas públicas da FVA, "só serão bem-sucedidas as UCs que atuarem com as organizações não-governamentais (ONGs) parceiras e de forma participativa". Dessa maneira, a entidade tem procurado envolver a comunidade na discussão do futuro do parque. "Temos de promover o salto emancipatório desses povos. Se eles tiverem de sair [do PNJ] um dia, sairão cidadãos, que sabem brigar pelo coletivo."
Para Pinheiro, um motivo de orgulho para a FVA, na busca de autonomia para as populações do Jaú, foi ter participado da constituição da Amoru (Associação de Moradores do Rio Unini), em 2001. "Hoje, a associação nos defende", comemora Nice Santos, professora de ensino fundamental de Terra Nova.
A partir da criação da Amoru foi possível viabilizar uma das maiores reivindicações dos ribeirinhos do Unini: a regularização da pesca nesse rio. Com acompanhamento do Ibama e da FVA, a associação firmou um acordo com as colônias de pescadores da região e com as empresas de turismo. Segundo a resolução, foi realizada a divisão do rio em três segmentos, um destinado à pesca comercial, outro à esportiva e um trecho restrito ao uso dos moradores das comunidades.
Além do zoneamento, foi limitada a atuação dos "geleiros", grandes embarcações pesqueiras. "Antes entravam uns 40 barcos por ano. Com o acordo de pesca, só será permitida a entrada de 12 por temporada, apenas entre agosto e dezembro", informa a professora Nice.
Existe também a proposta de que parte da mão-de-obra dos "geleiros" seja obrigatoriamente composta de habitantes das comunidades, de forma a garantir, ao menos durante um período do ano, oportunidades de geração de renda.
A contribuição do Ibama no acordo seria a instalação de um novo posto de fiscalização, até dezembro deste ano, no rio Unini. "Queremos fazer valer o acordo de pesca", garante Marcelo Bresolin.
Já os ex-moradores do parque, cansados de esperar por uma ação concreta do órgão federal, acionaram o Ministério Público Federal. Com isso, no início de 2004, a instituição ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Ibama e a União.
Segundo a procuradora Izabella Brant, entre as propostas da ACP estão a indenização, levando em conta a posse agroextrativista, ou o reassentamento dos moradores em áreas que mantenham as mesmas características naturais do PNJ. "Outra medida prevista na ACP é a formação de um grupo de trabalho que identifique as famílias que merecem a indenização", afirma ela. Isso porque há casos de moradores do parque que chegaram ao PNJ após sua criação, e, portanto, não poderiam ser compensados financeiramente.
Quanto ao reassentamento, a reivindicação da comissão, segundo Aldenor Barbosa, é que as famílias "fiquem no campo para não perder a cultura". Para isso, está sendo estudada a criação de uma Reserva Extrativista (Resex), UC que permite o uso sustentável dos recursos naturais e manutenção das populações tradicionais no local. A Resex seria estabelecida na margem esquerda do rio Unini. Para Boris César, "a criação de uma reserva extrativista poderá levar à solução de parte do problema fundiário".
Segundo ele, enquanto não for possível dar um encaminhamento final a essa questão, a legislação permite a "elaboração de termos de compromisso para a permanência da população por tempo determinado".
Exilados ambientais
Ainda que todas as iniciativas que visem à solução da questão da presença de moradores no PNJ sejam louváveis - e que a legislação esteja abrindo espaço para a negociação -, nem indenizações, nem reassentamento são capazes de preencher todos os anseios da população. Isso porque, associados à terra, estão todos os valores e costumes que integram a cultura desses povos.
Enquanto não ocorre a realocação das famílias, Novo Airão, uma cidade ilhada pela preservação ambiental, continua recebendo ex-moradores do parque. Além do PNJ, o município é vizinho das Áreas de Proteção Ambiental das margens esquerda e direita do rio Negro, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Amaná, do Parque Estadual do Rio Negro e da Estação Ecológica de Anavilhanas, maior arquipélago fluvial do mundo. Com isso, 85% de sua área está comprometida com UCs.
O problema é que essa cidade se tornou um verdadeiro abrigo de exilados ambientais, destino de 90,4% dos que abandonam o rio Jaú. Pelas restrições a que o município está sujeito por estar localizado no entorno de UCs, seu desenvolvimento econômico e alternativas de geração de renda e emprego são muito limitados.
Assim, os ex-moradores do PNJ deparam-se com uma realidade muito pior do que a do PNJ. "Na cidade, a menina-moça engravida e o homem começa a beber", constata Ivanilda Gonçalves.
Mãe de dez filhos, para ela, a falta de ocupação não é o maior problema. "No interior a gente tem costumes. Na cidade, perdemos tudo." Ivanilda fala ainda das parteiras e das plantas medicinais abundantes no rio Jaú.
Mas o que os moradores e ex-moradores do PNJ não dizem é que, mais do que a cultura, eles perdem direitos. O principal deles, a noção do valor de seus próprios conhecimentos na preservação do meio ambiente. A ponto de se esquecerem da importância da narrativa de suas próprias vidas. "A gente aqui não tem história. Falta desenvolver mais o conhecimento para ter história", afirma Gilberto Rodrigues, com um sorriso incerto no rosto.