Postado em 01/11/2004
Boris Kossoy
O fotógrafo e professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) participou da reunião do conselho editorial da Revista E, e falou, entre outras coisas, sobre as imagens que povoavam sua imaginação na infância, do livro no qual esmiuçou as imagens secretas do Departamento de Ordem Política e Social (Deops), da repercussão internacional de sua pesquisa comprobatória da experiência precursora de Hercules Florence com a fotografia, contemporânea à dos seus inventores na Europa. A seguir os principais trechos da conversa.
Formação multidisciplinar
Minha primeira formação foi em arquitetura, tendo cursado a Universidade Mackenzie entre 1961 e 1965. Depois vieram aqueles anos complicados [a ditadura] e eu fui fazer minha pós-graduação, parte na PUC, mais tarde completando na Escola de Sociologia e Política. A fotografia sempre fez parte da minha vida: como fotógrafo, como pesquisador da história da fotografia e da iconografia brasileira, como teórico, propondo conceitos e metodologias de análise e interpretação nas áreas de comunicação, história e ciências sociais e, ainda, como professor. Os estudos históricos e sociológicos sempre me impulsionaram para uma melhor percepção da natureza da imagem e da fotografia. Interessava-me, também, tentar compreender o valor, o alcance e os limites da fotografia, ou seja, em que medida ela pode ser um documento válido e de que maneira a iconografia pode se prestar à recuperação das informações.
Vertentes de investigação e expressão: a teoria e a práxis
O que me interessava mesmo naqueles momentos dos anos 70 era elaborar metodologias visando ao emprego da imagem fotográfica como documento histórico e perceber seu valor do ponto de vista simbólico. Os estudos teóricos seriam aprofundados, entretanto, nos anos 80 e 90. Em dois livros, basicamente, reuni um conjunto de conceitos, do qual decorre minha proposição metodológica para a análise e interpretação da imagem fotográfica. São eles Fotografia & História (Ática, 1988, e uma segunda edição, pela Ateliê Editorial, em 2001) e Realidades e Ficções na Trama Fotográfica (Ateliê Editorial, 1999, hoje na terceira edição). No primeiro deles, a ênfase está no documento e na busca de um modelo para o estudo das imagens. No segundo, tento demonstrar a submissão do documento à representação, a explicitação dos componentes técnicos, culturais, estéticos e ideológicos codificados em todas as representações e, portanto, a natureza ficcional da chamada “realidade fotográfica”. Um outro livro nessa linha está a caminho, que completará essa trilogia teórica.
Trabalho a muitas mãos
O livro A Imprensa Confiscada pelo Deops 1924-1954 (Ateliê Editorial/Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2003), em co-autoria com a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da USP, foi elaborado a muitas outras mãos com nossos alunos de graduação e pós-graduação. Maria Luiza é a coordenadora-geral dessa documentação [do Deops] que felizmente foi aberta. Aliás, a força para que isso acontecesse foi maior aqui no estado de São Paulo. Nada menos que 154 mil prontuários, milhões de documentos e milhares de fotografias compõem essa extensa documentação produzida ao longo de aproximadamente 60 anos. Eu coordeno a parte de imagem dessa pesquisa. Já são cerca de 15 livros publicados por alunos, que trabalham com recortes temáticos dentro desse vasto material. O livro citado foi organizado por nós e mostra os jornais da esquerda e da direita, órgãos de divulgação das idéias progressistas e também das integralistas, fascistas, anticlericais etc. É um material que faz parte dos prontuários e está lá para ser visto por quem quiser. A obra reproduz cerca de 70 desses jornais, mas existem centenas de outros – o que nos faz ter contato com uma história que não é a dos vencedores, e nos dá a oportunidade de dar a palavra aos vencidos. Essa é a ideologia que move o trabalho: obviamente trazer à luz do conhecimento um lado desconhecido da história política do Brasil. A construção do conhecimento histórico se faz com novas descobertas, à medida que interpretamos esse material, hoje aberto a outras interpretações.
E nasce um dicionário
Enquanto trabalhava nessas referências e buscando situar as pessoas no tempo, jamais pensei que pudesse transformar esse material em um livro e muito menos em um dicionário com tudo que pressupõe esse tipo de publicação: princípios, métodos e muitas referências [o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro (Instituto Moreira Sales, 2002)]. Comecei com uma relação de autores que supriam a necessidade que eu tinha de falar da fotografia em alguns estados brasileiros. Percebi que era realmente impossível. Mesmo uma bolsa para financiar um trabalho desses sendo uma idéia absurda – é possível conseguir uma bolsa por dois anos, mas não por 18 anos, que foi o tempo que levou essa pesquisa. Comecei, então, a despertar o interesse de um grupo de jovens pesquisadores e, de repente, estava com uma rede informal de correspondentes.
Com a fotografia, a imagem do homem se democratiza. A idéia desse dicionário é justamente poder mostrar que o elemento principal dentro da linha da nova história é o anônimo, e isso me encanta muito. Essas pessoas construíram a imagem deste País. Esse trabalho serve como referência para outras pesquisas. Fico muito satisfeito ao constatar o aproveitamento que pequenas e grandes instituições fazem do dicionário. Tornar esses documentos visuais úteis à sociedade e ao conhecimento é o melhor retorno que um pesquisador pode receber de sua obra.
Nos primórdios da fotografia
Duas edições do livro Hercules Florence, a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil foram esgotadas, a primeira, pela Faculdade de Comunicação Social Anhembi, em 1977, e a segunda pela Livraria Duas Cidades, de 1980. A obra trata da investigação que desenvolvi entre 1972 e 1976, na qual foi possível comprovar histórica e tecnicamente a ocorrência de uma descoberta independente da fotografia no Brasil (e nas Américas) por Hercules Florence (1804-1879), francês de Nice que aqui aportou em 1824 e participou como desenhista da famosa Expedição Langsdorff, que percorreu boa parte do território brasileiro. Radicado na Vila de São Carlos (Campinas), Florence realizou uma série de pesquisas em busca de métodos simples e práticos de impressão gráfica, que pudessem suprir os lugares desprovidos de máquinas tipográficas e equipamentos gráficos. Informado das propriedades químicas dos sais de prata de enegrecerem com a ação da luz, Florence começou a pesquisar nessa direção e, a partir de 1833, já obtinha exemplares de escritos e desenhos. Todas as suas experiências com materiais fotossensíveis foram anotadas numa série de diários, fonte primária que fundamentou nossas pesquisas. O anúncio “oficial” da descoberta de Daguerre, pela Academia de Ciências de Paris se deu no ano de 1839. A partir da divulgação dos resultados dessa investigação houve uma repercussão internacional considerável no âmbito acadêmico e institucional: a obra precursora de Florence passou a ser gradativamente assimilada nas obras de referência da história da fotografia. Nisso se passaram quase 30 anos. O fato novo é a publicação de uma edição revista e ampliada do livro, numa versão em espanhol – Hercule Florence, el Descubrimiento de la Fotografía en Brasil –, pelo Instituto Nacional de Antropologia e História do México, justamente neste ano em que se comemora o bicentenário de nascimento de Hercules Florence. Sinto-me muito feliz que um público especializado tenha, finalmente, um conhecimento mais aprofundado desta descoberta que permaneceu encoberta, sem comprovação científica, por cerca de 140 anos. No momento se estuda também uma terceira edição do livro em português.