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Teatro

Postado em 01/11/2004

Criador e criatura

 

O dramaturgo Samir Yazbek fala de sua trajetória no teatro

 

Em seu último romance, Noite do Oráculo (2004), o americano Paul Auster trouxe ao público as inquietações e as angústias do processo de criação de um escritor. O leitor acompanha Syd Orr, personagem central do livro, pelos tortuosos caminhos dos inventores de histórias, numa jornada angustiante. Aqui no Brasil, o dramaturgo Samir Yazbek, autor de A Entrevista, em cartaz no Sesc Santo André, bem que poderia ter sido um personagem de Auster. Aos 37 anos, o filho de uma tradicional família libanesa, vencedor do Prêmio Shell de 1999 de melhor autor pela peça O Fingidor – e prestes a estrear um novo espetáculo, A Máscara do Imperador, no Sesc Belenzinho –, falou com exclusividade à Revista E sobre, entre outras coisas, a difícil tarefa de gestar uma história e como a dramaturgia o salvou da própria introspecção. A seguir os melhores trechos:

 

Sou o caçula dos cinco filhos de uma família de imigrantes libaneses que veio de Beirute com o velho sonho de “fazer a América”. Herdei de meu pai o espírito empreendedor e de minha mãe, que era uma pessoa muito sensível, a veia artística. Embora fosse uma família tradicional no sentido de valorizar bastante o dinheiro, a estabilidade e a segurança, havia na minha casa uma certa noção das artes. Meu irmão mais velho, o escritor Mustafa Yazbek, também foi de grande importância para que eu optasse pelo caminho das artes. No entanto, essa não foi uma decisão tranqüila de ser tomada. Meu primeiro contato com o teatro foi na escola. Mas, antes de me tornar dramaturgo, estudei física, filosofia, para então cursar cinema na Faap [Fundação Armando Álvares Penteado]. A arte também é para mim a melhor maneira de colocar pra fora tudo que minha personalidade introspectiva produz aqui dentro. A dramaturgia foi a ponte entre a introspecção e o mundo externo, era a melhor maneira de conseguir me manifestar, e de fazer dessa saída um canal com o outro.

 

Primeira vez

A primeira vez em que pus os pés num palco foi por pura necessidade escolar, quando tive de substituir um aluno numa peça do colégio. Eu representava o papel de Deus numa peça que contava a história do mundo. Subi no palco, falei três palavras e ri o resto do tempo. Foi um fracasso absoluto. Mas a adrenalina e a possibilidade de me expor para dizer alguma coisa em voz alta me instigaram. Iniciei no teatro para representar, passei a dirigir, até que comecei a me envolver mais com a escrita. Com o tempo, eu fui deixando de trabalhar como ator, depois, de trabalhar como diretor e, de uns anos para cá, tenho me dedicado cada vez mais não somente à palavra escrita, mas à palavra teatral. A primeira peça que estreei como autor foi Uma Família à Procura de um Ator, em 1989. O título é uma inversão do texto Seis Personagens à Procura de um Autor, do dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Ao mesmo tempo em que é também a inversão de um sentimento muito pesado que vinha de minha família, que não aprovava minha vocação.

 

Influência

Somada à desaprovação familiar, havia ainda uma certa hesitação minha em relação ao teatro. Meu tortuoso caminho acadêmico é fruto disso. Mesmo quando fui cursar cinema na Faap, onde encontrei grandes professores que foram muito importantes nessa trajetória, eu tinha certa resistência a “academizar” a minha criatividade. Tinha medo de perdê-la se cedesse, tinha medo que uma faculdade me deixasse padronizado. Então, aos 22 anos eu ingressei no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), do Sesc Consolação, que é dirigido por Antunes Filho. Fiquei lá por sete anos e essa passagem foi fundamental na minha carreira. Foi quando percebi que a dramaturgia estava se tornando algo forte na minha vida e que eu queria me transformar num dramaturgo. Uma das características mais marcantes na personalidade do Antunes é a inquietude. Ele é um homem extremamente inventivo, criativo, original, explosivo nessa originalidade, e, ao mesmo tempo, um homem absolutamente obsessivo pelo rigor, pelo conhecimento, pela racionalidade. Eu o vejo como um homem que se debate no meio desses dois extremos, mas faz isso com muita propriedade. O resultado é um processo de criação eficaz e um trabalho de impacto sobre a comunidade. Esse episódio na minha carreira foi importante também porque me identifiquei muito com esses dois extremos; o da inquietude e o do rigor. Essa era justamente a questão que me atormentava: como impor rigor à arte? Aprendi com o Antunes. Ele me recebeu de braços abertos, houve uma empatia imensa entre nós, muita facilidade de relacionamento, embora ele fosse tão duro comigo quanto é com qualquer aluno dele. É uma pessoa que ao longo desses anos sempre acompanhou o desenvolvimento de meu trabalho. Até hoje, temos um convívio muito bom.

 

Da introspecção aos holofotes

Sinto grande fascínio pela dramaturgia porque se trata da arte do diálogo por excelência. Essa foi a melhor saída para um menino tão introspectivo como fui, que conversa muito consigo e muito pouco com os outros. A dramaturgia serviu como um desafio, era a forma de percorrer esse trajeto de mim para o outro. De certo modo, é esse ainda o foco de meu trabalho até hoje. Uma de minhas maiores preocupações é o eco que meu trabalho terá na sociedade.

O processo de criação de cada peça é muito diferente e, para mim, trata-se de algo muito lento, que normalmente nasce de um estímulo, a partir de uma experiência, de uma leitura ou de uma observação. É como se houvesse um estímulo em um dia, um estímulo em outro, depois um outro em outro dia, até que, em uma bela hora, essas coisas se encontram, acontecendo um curto-circuito. A partir daí, vem a fase de construção da peça, de descobrir o que eu quero, e também é muito lenta. No fim de tudo, o espaço percorrido desde o primeiro estalo até a obra pronta tem de estar muito claro na minha cabeça, pois o espectador não pode ter dúvida de onde veio aquilo, por onde passou e aonde vai dar. Posso levar até um ano escrevendo uma peça, mas gostaria de conseguir escrevê-la em três dias. Às vezes esse tempo de criação é o mesmo no qual a peça esteve em cartaz, pois não paro de remexer, de reescrever, enfim, é difícil sossegar. Isso já foi mais intenso, chegava ao extremo de uma pessoa vir me parabenizar pela peça e eu perguntar quando ela havia assistido ao trabalho, pois já podia ter mudado tudo, a ponto de ter quase uma segunda versão. Agora eu relaxei um pouco, pois percebi que existe o meu processo e o do público. E, às vezes, esses processos não se encontram.

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