Postado em 03/12/2004
Autor de sucessos como Carcará e Pisa na Fulô, João do Vale transformou em canção a experiência de uma vida dura, mas repleta de histórias memoráveis
Motivos para lembrar sua figura não faltam. João do Vale é daqueles compositores que têm músicas suas assobiadas por muitos, que não sabem identificar o autor. Carcará, canção que praticamente lançou Maria Bethânia, é dele. Pisa na Fulô também, gravada por Zé Gonzaga, irmão de Luiz Gonzaga, e que até hoje embala casais de universitários pelos forrós da vida. Mas por que será que tão pouca gente tem consciência de que esse maranhense de Pedreiras é responsável por parcela tão importante do cancioneiro brasileiro? Parte da explicação, é verdade, está na já tradicional falta de memória cultural da população, fenômeno que já injustiçou vários talentos ao longo da nossa história. Por outro lado, João do Vale – com seu temperamento festeiro e a visão de que “o que se leva da vida é a vida que se leva”, como diz o ditado – também aparece como responsável pelo esquecimento. “Diferentemente de cantores como Luiz Gonzaga ou Jackson do Pandeiro, que tinham pessoas que cuidavam de suas carreiras, João do Vale era muito amalucado”, explica o jornalista e escritor Márcio Paschoal, autor da biografia Pisa na Fulô, Mas Não Maltrata o Carcará – Vida e Obra do Compositor João do Vale, o Poeta do Povo (Editora Lumiar, 2000). “Ele não tinha nenhum cuidado com divulgação, com preparo, ele simplesmente cantava. Vivia sua carreira como se aquilo fosse uma grande alegria, uma mesa de bar.” O resultado é que, ao longo do tempo, João do Vale nunca se identificou com uma corrente. “Como aconteceu com o pessoal da Tropicália ou da Jovem Guarda”, exemplifica o biógrafo. “Por fim, o artista acaba não tendo tanto destaque quanto merecia.”
No entanto, deve-se considerar outros elementos que colaboraram para esse comportamento. João do Vale era filho de camponeses no interior do Maranhão e amadureceu em público. Começou a ganhar dinheiro e admiração com 18 anos, idade em que muitos nem sequer sonham com o sucesso.
João fugiu com o circo
João fugiu ainda menino para a capital. Em seguida, foi para Teresina, no Piauí, onde se juntou a um circo. Até a adolescência já tinha sido ajudante de caminhoneiro, mineiro em Teófilo Otoni, Minas Gerias, e pedreiro no Rio de Janeiro. Com 18 anos e já com muitas poesias guardadas na memória, uma vez que ele mesmo não sabia ler nem escrever, passa a perambular pelas rádios cariocas movido pelo desejo de que alguém transformasse em música a realidade que ele já tinha tornado poesia. O sonho era conhecer Luiz Gonzaga. E, na Rádio Tupi, nos anos 50, ele procura Zé Gonzaga, irmão de Luiz. No jogo de empurra, ele encontra Luiz Vieira [cantor e compositor já famoso na época], para quem declama suas poesias e que resolve ajudá-lo. O primeiro a gravar suas músicas é mesmo Zé Gonzaga. Mas João do Vale, muito jovem e desconhecedor dos mecanismos que movem a máquina do showbiz, nem sequer tomou conhecimento de que sua obra começava a virar música. “Até que ele é apresentado pelo Luiz Vieira à Marlene [cantora eleita a Rainha do Rádio em 1949], que grava Estrela Miúda”, explica Paschoal. “E com essa gravação começa a ter muito sucesso. Só que ainda era pedreiro e, na obra, quando a música tocava no rádio, ele ficava dizendo que a música era dele, mas os colegas, obviamente, não acreditavam. Diziam: ‘Vai trabalhar, neguinho, que tu tá é tomando muito sol na cabeça e ficando louco’.” No entanto, João começou a ganhar dinheiro com a música. Muito mais do que sonharia em ganhar empilhando tijolos. É quando ele larga a construção e começa a compor.
Muita gente esquecida
A carreira de João do Vale é pontuada por três grandes momentos de notoriedade. No início dos anos 60 ele conhece Zé Ketti, que o leva para o mítico Zicartola [bar criado em 1963 por Cartola e sua mulher, Dona Zica], “dizendo que João do Vale tinha de cantar”, conta Paschoal. A participação no famoso bar lhe rende um convite para o show Opinião, realizado em dezembro de 1964 e sua segunda grande oportunidade. “Ele é escolhido para representar os nordestinos”, diz o biógrafo. “Zé Ketti seria o samba carioca e Nara Leão a burguesia, a Zona Sul do Rio. Aí ele fica famoso e grava seu próprio disco.”
Outro grande marco na carreira são os anos do Forró Forrado, que ele fazia no Rio de Janeiro convidando músicos para as famosas canjas. O lugar tornou-se um point da época e por quatro anos ininterruptos praticamente toda a MPB passou por lá. “Ele chamava as pessoas e todos iam”, lembra Paschoal. “Todo mundo gostava muito dele, ele era muito sedutor, no sentido de ser um sujeito com o qual não tinha tempo ruim, ele ajudava todo mundo.” Entre os apadrinhados que começaram a carreira no Forró Forrado está Djavan. E, entre os já grandes que soltaram a voz no seu palco, aparecem Chico Buarque e Edu Lobo.
Mas em 1987 a sorte de João do Vale começa a mudar. Ele sofre o primeiro derrame, e a partir daí não consegue mais cantar. Iniciam-se, então, os tributos e shows beneficentes. Já sem ao menos um vestígio do dinheiro que ganhara ao longo da carreira, João do Vale morre, em 6 de dezembro de 1996, esquecido do público, na companhia dos filhos e da esposa, dona Domingas, que morreu dois anos depois dele. “Acho que as pessoas não dão a ele o valor que tem”, afirma Paschoal. “Digo isso porque vou constantemente a São Luís e vejo que lá ocorre o mesmo. E isso é triste. Mas não existe a memória no geral. E ele, por sua vez, como não cultivou muito esse lado, contribuiu para esse esmaecimento. Mas isso não acontece só com ele, não. Francisco Alves, hoje, ninguém mais sabe quem é, e Luís Peixoto, parceiro de Ary Barroso, também. Enfim, existe muita gente boa que não é lembrada.”
Festa para o João
Evento realizado no Sesc Santo André presta homenagem ao compositor maranhense
Se estivesse vivo, João do Vale teria completado 70 anos no dia 11 de outubro. Para lembrar a data, o Sesc Santo André organizou o evento João do Vale 70 Anos, composto de shows, rodas de conversa – bem ao estilo do homenageado –, das quais participou o amigo Luiz Vieira, e uma noite de autógrafos da biografia Pisa na Fulô, Mas Não Maltrata o Carcará – Vida e Obra do Compositor João do Vale, o Poeta do Povo, escrita pelo jornalista Márcio Paschoal. A festa serviu não só para lembrar as músicas do poeta, mas também para rememorar as divertidas histórias das quais ele foi protagonista, vividas com intensidade ímpar. “Os casos são um melhor que o outro”, conta o biógrafo. “Tem um que quem conta é Paulo César Pinheiro [músico e compositor presente na edição de outubro da Revista E com um depoimento], embora a MPB toda saiba que é de quando ele foi para Cuba, levado por Chico Buarque, em 1980”, continua Paschoal. “A alfândega cubana achou na bagagem dele umas quatro garrafas de Pitú, uma marca de pinga que tem um camarão, o tal pitu, no rótulo. João conseguiu convencer o funcionário da alfândega de que aquilo era suco de camarão. Ele até deixou uma garrafa do ‘suco’ para o homem.”
Outra dessas envolve o mesmo conhecido gosto de João do Vale pela bebida. Certa vez, em São Luís, João ficou incumbido de levar a cantora Miúcha e mais uns amigos para nadar em uma das praias da capital maranhense. A maré no local, quando seca, deixa um rastro de quilômetros e demora algumas horas para voltar. João sentou com o grupo num bar para esperar o mar “chegar” e, desnecessário seria dizer, pôs-se a beber para passar o tempo. Resultado: “Quando o mar chegou, três horas depois, já estava todo mundo bêbado”, diz Paschoal aos risos.
Mas João não era só engraçado. Tinha a música e a poesia mesmo nas veias. É o que revela outra passagem de sua vida, quando, num show no Espírito Santo, a luz da cidade na qual iria se apresentar foi cortada devido a uma briga política. João do Vale não se intimidou diante da adversidade. O músico acendeu uma vela e cantou assim mesmo. “Foi um dos shows mais emocionantes dele”, conclui Paschoal.
O dono da voz
Em cartaz no Sesc Vila Mariana até dezembro, espetáculo repassa a vida de Orlando Silva, o homem que ajudou a firmar a imagem do cantor popular brasileiro
O carioca Orlando Silva, vindo de família modesta, que por vezes passou por privações, entrou para o imaginário brasileiro como responsável por um dos capítulos mais fascinantes da história da música brasileira. Quando tinha apenas 3 anos, perdeu o pai, José Celestino da Silva, vítima da gripe espanhola. Viveu, junto com a mãe, Balbina, e o irmão, Raimundo, uma história tão triste quanto comum: mãe jovem, viúva, filhos para criar e sem poder sequer contar com a pensão do marido. No final da adolescência, Orlando sofreu um sério acidente ao tentar subir em um bonde em movimento e, por pouco, não perdeu o pé esquerdo. O acontecido deixou marcas, o jovem teve amputados quatro dedos do pé, o que o fazia mancar e o obrigava, segundo reza a lenda, a calçar um sapato normal no pé direito e uma alpercata no esquerdo. No entanto, se ao andar Orlando claudicava, quando cantava deixava a todos admirados por sua segurança. Na voz, era grande e perfeito.
Em 1934, foi parar no rádio, levado por outro cantor do panteão radiofônico, Francisco Alves, que acabou se tornando o grande incentivador de sua carreira e lhe ofereceu uma participação em seu programa. A primeira emissora era simples, chamava-se Cajuti, mas a estréia lhe rendeu 50 mil réis e uma “temporada” de sete meses no ar. O repertório do rapaz, então com 19 anos, era constituído de músicas já consagradas pela voz de outros. Entre os quais, o já famoso Sílvio Caldas. Ainda no fim daquele ano, Orlando Silva ganhou a oportunidade para gravar seu primeiro disco. O “bolachão” tinha a marcha Ondas Curtas (1934 – Kid Pepe e Zeca Ivo) no lado A e Olha a Baiana (1934 – Kid Pepe e G. A. Coelho) no outro – um 78 rotações que não fez sucesso, mas serviu para apresentá-lo ao grande público. Estava dada a largada para uma carreira meteórica e envolta em toda sorte de problemas. Em apenas sete anos, Orlando Silva conheceu as glórias de uma ascensão vertiginosa – com músicas como A Jardineira (1938 – Benedito Lacerda e Humberto Porto), Nada Além (1938 – Custódio Mesquita e Mário Lago) e Carinhoso (1937 – Pixinguinha e João de Barro) –, mas também dramas que foram do esquecimento do público a problemas com drogas e álcool. Sua vida, glamourosa em alguns momentos e triste em vários outros, comoveu o Brasil da época, e as músicas que interpretou o imortalizaram.
O cantor das multidões
No auge do sucesso, Orlando Silva chegava a reunir 10 mil pessoas em shows de praça. Um feito prodigioso, se levarmos em conta que estamos falando de uma era que não conhecia a televisão e seu poder de propaganda e na qual nem existia ainda a palavra mídia. Ele foi um “protagonista precoce do mito da urgência e da velocidade na cultura de massas (no pop, futuramente)”, como escreveu o crítico de música do jornal Folha de S.Paulo Pedro Alexandre Sanches, em análise do espetáculo Orlando Silva, o Cantor das Multidões, em cartaz no teatro do Sesc Vila Mariana até 19 de dezembro. O espetáculo traz o ator Tuca Andrada (foto) e tem texto de Antonio De Bonis – que também assina a direção – e Fátima Valença. Baseado no livro homônimo de Jonas Vieira, o musical tem ainda no elenco os atores Inez Viana, Marcello Caridade e Marcelo Vianna – neto de Pixinguinha, que interpreta Francisco Alves na peça –, e os músicos Marcelo Neves, Emílio Mendonça, Edson Ghilardi, Renato Consorte e Ulisses Rocha.
Em cena, a interpretação, a caracterização e até mesmo a voz do ator Tuca Andrada chamaram a atenção da crítica. “É realmente um grande prazer ouvir Tuca Andrada executando o repertório, musicalmente nada fácil, do Cantor das Multidões”, escreveu a crítica de teatro Bárbara Heliodora em sua coluna no jornal carioca O Globo. “Fisicamente, Tuca busca mais postura, andar, ritmo – e o resultado é muito bom.” Depois de aclamada temporada no Rio de Janeiro, o espetáculo que chega a São Paulo arrancou elogios de gente que entende, e muito, de música e voz. “Tuca conseguiu captar a essência de Orlando”, analisa a cantora Gal Costa. “Fiquei emocionada. Não é apenas uma imitação.” Já para Chico Buarque, que ouviu o CD com a trilha do espetáculo na voz do próprio Tuca, o ator “em alguns momentos realmente lembra o Orlando”. Tuca Andrada conclui resumindo a importância de resgatar uma história como a de Orlando Silva: “Ele era pobre, feio, tímido, manco e se envolveu com drogas no auge da carreira. É uma história vitoriosa”.
Orlando Silva, que entrou para a história da música como o cantor das multidões, morreu em 7 de agosto de 1978, aos 63 anos.