Postado em 29/09/2005
Ilustrações: Marcos Garuti
O jovem que baixa um arquivo de música pelo computador ou copia o capítulo de um livro exigido na escola está cometendo um crime? Por outro lado, como preservar os direitos do músico e do escritor? Casos que envolvem a violação do direito autoral costumam desembocar num campo que separa o justo do legal nas decisões judiciais. Para discutir um assunto tão delicado quanto atual – principalmente na era da internet –, o jornalista Diogo Moyses e o advogado Ronaldo Lemos abordam, em artigos exclusivos, os meandros do tema.
Qual o filme mais procurado na internet no final de maio de 2005? Se você respondeu Guerra nas Estrelas – Episódio III, errou. Na verdade, por vários dias o filme mais procurado foi, sim, Guerra nas Estrelas, mas o episódio Revelations, um filme de 40 minutos realizado por um grupo de fãs da série ao custo de 20 mil dólares. A história se passa entre o Episódio III e o Episódio IV e conta desventuras de uma classe de guerreiros paranormais, os seers, que surgiu após a destruição dos jedis e que zelaria pelo seu retorno.
O filme impressiona, especialmente pelos efeitos especiais sofisticados. Os atores não são lá dos melhores, mas a história é interessante e os duelos de sabre de luz estão lá. Não por acaso o filme obteve várias críticas favoráveis. A revista Slate, por exemplo, louvava o filme a ponto de fazer um apelo público para que George Lucas abdicasse dos direitos da série em favor dos fãs.
Isso ilustra o surgimento da mais importante forma de produção de conteúdo do século 21. Se no século passado dependíamos de uma estrutura centralizada para a produção e disseminação da cultura, isso não acontece mais. A nova cultura, a que realmente interessa, é livre, produzida de muitos para muitos e pronta para ser remixada e transformada em algo diferente. Os exemplos estão aí, inelutáveis. Desde o Orkut, cujo conteúdo é produzido 100% pelos usuários e que hoje ocupa grande parte do tempo gasto na internet no Brasil, até módulos alternativos de videogames, que hoje se tornaram mais importantes que as versões originais (como é o caso do Dota, uma versão criada pelos fãs do popular jogo Warcraft).
O único problema é que existe uma pedra no meio do caminho que impede a realização do potencial econômico da cultura do remix, o surgimento de modelos de negócio abertos e a disseminação ampla e descentralizada do conhecimento. Essa pedra consiste na visão que se dá atualmente à propriedade intelectual, tal qual forjada no século 19 e em prática até hoje.
Durante todo o século 20, a propriedade intelectual funcionou como um sistema propulsor para produção e circulação da cultura. Ela permitia a alguns, por exemplo, recuperar os capitais investidos em equipamentos, em redes de distribuição e em recursos de produção. Mas o que acontece quando capitais significativos não são mais necessários nem para a compra de equipamentos, a produção, ou para a distribuição? Faz sentido que a propriedade intelectual se mantenha da mesma forma?
Ao assistir aos desdobramentos dos últimos 15 anos, a resposta é não. Com o surgimento da tecnologia digital, a bandeira da pirataria tornou-se desculpa para que a propriedade intelectual, em vez de se adaptar aos novos tempos, fosse ampliada de formas nunca imaginadas. Com modificações no plano nacional e internacional, aprovação de tratados e mudanças legais, hoje se vislumbra um mundo em que tudo é de alguém. O espaço do domínio público, daquilo que é de todos (os commons), desaparece.
Essa ânsia expansiva da propriedade intelectual, que tudo quer privatizar, busca agora proteger bancos de dados, mesmo que compostos somente de fatos, medidas de proteção tecnológica (como a proteção anticópia de CDs e DVDs), métodos de negócio, conhecimentos tradicionais e estruturas biológicas.
O resultado é a criação de uma cultura da autorização: para utilizar qualquer informação, para fins econômicos ou não, é preciso antes obter a permissão de seu respectivo dono. É a morte da cultura do remix ou, em outras palavras, sua condenação à marginalidade perpétua. Essa marginalidade não ocorre por acaso. Ela atende ao anseio da indústria cultural, sobretudo norte-americana, de assegurar a manutenção da mesma estrutura da indústria cultural do século 20. E não só. Faz da propriedade intelectual instrumento para ocupar as novas mídias, impedindo sua descentralização, democratização e surgimento de novos meios de negócio livres. Em outras palavras, a cultura produzida descentralizadamente, a cultura do remix, é o maior concorrente dessa indústria cultural.
Por isso, causa espanto quando uma das operadoras de celular anuncia com grande alarde que seus serviços de terceira geração se resumem ao download de vídeo e de áudio produzidos pela indústria norte-americana tradicional. É como se o celular se transformasse na extensão da televisão a cabo. Tudo isso é estarrecedor porque o celular é por essência um canal bidirecional. O potencial de criação interativa e descentralizada de conteúdo é imenso. O celular pode ser o epicentro dessa nova forma de produção da cultura. Basta querer.
Apesar de tudo, iniciativas globais estão por toda parte tendo por objetivo a retomada dos commons, de um domínio público intelectual disponível a todos para acesso e transformação. A principal dessas iniciativas é o projeto Creative Commons (www.creativecommons.org/licenses/by/2.0/br), hoje presente em mais de 30 países. Trata-se de uma rede global que cria as ferramentas necessárias para que qualquer criador possa dizer ao mundo que não se importa que sua obra seja utilizada para certos usos. Cabe ao criador decidir quais são esses usos.
O Creative Commons permite a autonomia de criadores intelectuais para decidir se sua obra pode ser remixada, distribuída, com fins comerciais ou não. Trata-se de substituir o regime do “todos os direitos reservados” pelo modelo de “alguns direitos reservados”. Escritores como Cory Doctorow, bandas como os Beastie Boys e The Rapture, instituições de ensino e professores como o MIT [Massachusetts Institute of Technology] e o antropólogo Marshall Sahlins, todos estão unidos pela utilização das licenças Creative Commons em suas obras.
No Brasil o Creative Commons amplia-se a cada dia. Sua presença é governamental, como no Ministério da Cultura e da Educação. A cidade de Olinda, eleita a primeira capital cultural do Brasil, quer agora o título de primeira capital Creative Commons do mundo. Quer gerar um universo cultural livre, a partir do seu manancial extraordinário, que passa pelo teatro popular, pela música, pelo patrimônio histórico e pelo carnaval. Tudo a ser documentado e disponibilizado on-line, para o mundo remixar e distribuir. Sua presença é também maciça na sociedade. De música a quadrinhos, de cinema a fotologs, inúmeras são as obras hoje licenciadas em Creative Commons no Brasil.
Em síntese, a cultura do remix, apesar de ser a cultura do futuro, é ainda um fenômeno de base. Sofre com os interesses que lutam para que continue marginal, como mera brincadeira, não concretizando seu potencial econômico, de geração de negócios, empregos e democratização. Apesar disso, de baixo para cima, a cultura do remix vai mostrando sua força. É uma batalha curiosa, que envolve advogados, poder econômico, emancipação e arte. Batalha entre centralização e descentralização. Entre acesso ao conhecimento e o império da propriedade. Entre a preservação do passado e transição para o futuro.
Ronaldo Lemos é mestre em direito pela Universidade de Harvard e doutor em direito pela Universidade de São Paulo. É diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade e do Creative Commons no Brasil. Seu último livro, Direito, Cultura e Tecnologia, foi publicado pela Editora FGV
O acesso ao conhecimento, à cultura e à informação é fundamental para o desenvolvimento de qualquer sociedade. Todos hão de concordar que, quando uma nação é privada dos bens culturais, das fontes de informação e do conhecimento, fecham-se as portas do desenvolvimento econômico, social, cultural e político.
Mas o que isso tem a ver com o “direito de autor”? Quando ouvimos algo sobre o tema, é habitualmente para condenar a “pirataria”, especialmente de CDs, livros e softwares. Os “piratas”, produtores ou consumidores, são tachados de “contrabandistas”, “criminosos”, adjetivos que, no plano jurídico, podem ser entendidos como “violadores do direito de autor”. Mas, afinal, que direito é esse? E o que isso tem a ver com o acesso ao conhecimento pelas pessoas e pela sociedade?
O direito de autor pode, de maneira genérica, ser dividido em dois. O primeiro é o “direito moral”, aquele pelo qual o autor de uma obra, ou artística ou literária, tem o direito de ter o nome citado todas as vezes em que a obra for publicada, copiada, veiculada ou citada. É um direito irrenunciável, inalienável, que reconhece que a obra (uma música ou um livro, por exemplo) é atributo da personalidade do autor.
O segundo é o “direito patrimonial”, que garante ao titular do direito autoral o monopólio da exploração material das obras, ou seja, confere a prerrogativa de se auferirem vantagens econômicas com a utilização da obra. Tal exploração pode ser realizada pelo próprio autor ou pela pessoa a quem ele cede os direitos.
Se, de um lado, o direito patrimonial dá ao autor a exclusividade de ganhar dinheiro com suas obras, de outro, impõe que os cidadãos tenham de pagar para ter acesso às criações. A questão torna-se mais espinhosa pelo fato de que a “cessão de direitos”, do autor para o intermediário (como uma gravadora ou uma editora), acaba por transformar as obras em meras mercadorias. De criação artística, acadêmica, cultural, que pela sua própria essência tem por objetivo ser socializada, passa a ser tratada exclusivamente como um bem privado, como se tivesse sido feita somente para gerar lucros.
As conseqüências desse processo são visíveis: ao mesmo tempo em que se concentram os grupos com capital para financiar a produção de informação e cultura, cresce a necessidade de controle da circulação dessa produção. Assim, pode-se garantir que o fluxo desses bens será unicamente regido por uma relação de mercado. O fato de a propriedade intelectual, e mais especificamente do direito autoral, ter passado recentemente a fazer parte de acordos comerciais multilaterais da Organização Mundial do Comércio (OMC) é símbolo desse novo paradigma, que transforma os direitos do autor em “direitos da indústria”.
Na indústria fonográfica, por exemplo, os produtos “piratas” respondem por 63% das vendagens. Diante do fato, impõe-se que a pirataria seja pensada sob o prisma da realidade. Nesta, comprar um simples CD “legalizado” não é possível para a maioria das pessoas, pelo menos com regularidade ou em quantidades “médias”. Diante dessa impossibilidade, o que deve fazer o cidadão? Que direito deve ser respeitado, o do intermediário, no caso a gravadora, ou o do cidadão, que é o de poder fruir da cultura? A diferença fundamental, no caso, é que o primeiro tem um direito ordinário, comum, mas o segundo tem um direito humano.
Mas não são somente os preços inacessíveis que fazem da indústria fonográfica uma das vilãs do acesso à cultura: as grandes gravadoras também contribuem decisivamente para o desvirtuamento das funções públicas dos veículos de radiodifusão (rádio e TV). As majors utilizam-se ininterruptamente do “jabá” que, na prática, trata-se da compra de espaço nos veículos de radiodifusão para a inserção dos artistas cujos direitos de exploração das obras foram a ela cedidos. Para ter uma idéia do impacto do jabá, basta dizer que atualmente os “produtos” das grandes corporações do setor musical ocupam 97% da radiodifusão pública, apesar de ser responsáveis por apenas 16% dos discos de música brasileira lançados. Mais do que um meio imoral e ilegal de promover as vendas, o jabá é uma forma intolerável de censura à cultural nacional.
No caso das fotocópias de livros, em especial no uso relacionado à educação, há uma pressão crescente das organizações de editores para que as universidades proíbam as cópias de obras acadêmicas e literárias. O objetivo das pressões é reduzir as reproduções completas ou de grandes trechos de livros, já que, segundo pesquisa, para cada livro vendido, quatro são copiados.
Felizmente, não há, pelo menos na maioria das universidades públicas, um entendimento que a cópia de livros seja um ato ilícito. Muitos docentes, até mesmo, estimulam a prática com as chamadas “pastas de professor”. Entretanto, a realidade do ensino privado, onde está a maioria dos que superam o “degrau” social da universidade, é bastante diferente: atualmente, devido à pressão das editoras, as copiadoras dessas faculdades privadas não estão permitindo sequer a cópia de uma página de livro. A proibição, evidentemente, não faz com que os alunos passem a comprar os livros indicados pelos professores. Afinal, não se trata de uma questão de “economia”, mas de viabilidade. Nessas universidades, a saída tem sido encontrar um “jeitinho” para que os alunos consigam cópias fora do espaço da instituição e, assim, não tenham um prejuízo irreparável em seu processo educacional.
Aqui, abrindo um parêntese: a lei de direitos autorais, de 1998, estabelece que não constitui ofensa ao autor a “reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que seja feita por esses, sem intuito de lucro”. Esta definição, que autoriza a cópia de “pequenos trechos”, “em um só exemplar”, “para uso privado do copista”, como apontam diversos estudos de legislação comparada, pode ser considerada uma das mais restritas do mundo, além de imprecisa. Em termos práticos, representa barreiras muito altas de acesso à informação, ao conhecimento e, portanto, à efetivação de direitos humanos, em especial o direito à educação.
Estes dois exemplos revelam que, para a construção de um regime equilibrado de partilha do conhecimento, o direito garantido no artigo 5º da Constituição Federal – de exploração comercial das obras pelos autores ou por aqueles a quem o direito foi cedido pelo autor – deve ser considerado juntamente com outros direitos humanos igualmente presentes na Constituição, como o direito à educação e à cultura. Com todo o respeito, o direito autoral não é absoluto.
Há que se ter claro que, enquanto não forem radicalmente superadas as desigualdades sociais e econômicas do País, não será possível alcançar um regime ideal de partilha e acesso igualitário às obras e criações. Mas, enquanto isso, é preciso que se reconheça que as aspirações da indústria do direito de autor são inviáveis. Urge que a indústria repense seu negócio, da mesma forma que é imperativo reformular o marco regulador do direito de autor. Do jeito que está, quem sai perdendo é a sociedade.